O conflito na Faixa de Gaza, apesar de múltiplos apelos à paz, prossegue na sua escalada de violência; e em Portugal, pese embora o conjunto de medidas anunciadas, são cada vez mais os cidadãos com dificuldades no acesso à habitação e ao combate aos efeitos da inflação. Este é o cenário para a entrevista Ecclesia/Renascença, com o presidente da Comissão Diocesana Justiça e Paz de Coimbra
Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
Depois de múltiplos apelos à paz, à criação de condições humanitárias, o Papa Francisco insiste que “nada se resolve com a guerra” e defende a existência de dois estados na Terra Santa, Israel e Palestina. Onde e como está a falhar a comunidade internacional na procura de soluções para este conflito?
Bom, a comunidade internacional está a falhar neste conflito como está a falhar nestas últimas duas décadas. Se nós formos ver, o apelo à violência é uma constante, nas últimas décadas.
A intervenção da ONU, a intervenção da mediação internacional, tem diminuído constantemente, tem declinado. Em contrapartida, se nós formos ver, os conflitos ao redor do mundo têm aumentado exponencialmente.
Olhamos, vemos Nagorno-Karabakh, vemos a Ucrânia, vemos o Sudão, vemos a Etiópia, vemos agora o Médio Oriente, os conflitos repetem-se. Portanto, há aqui uma falha da comunidade internacional, e nomeadamente da ONU. O papel da ONU e do Conselho de Segurança apagou-se e não há uma tentativa realmente de recuperar esse papel que é fundamental.
E quem é o grande responsável por isso? É o Secretário-Geral das Nações Unidas?
Não, de forma alguma. Aliás, eu penso que há duas entidades neste momento
que se esforçam realmente por dar um pouco de lucidez neste mundo perplexo que nos rodeia, que é o Papa Francisco e é o António Guterres. São duas vozes lucidas.
Mas realmente, nós temos a pouca sorte neste momento, que quando olhamos para as lideranças a nível internacional verificamos que são lideranças fracas, frágeis, de gente inconstante. Por exemplo, Israel. Israel teve primeiro-ministro como o Shimon Peres, como o Isaac Rabin, como a Golda Meir, inclusive. Hoje tem o Netanyahu. No momento que é crucial para a história de Israel, temos um homem que teve necessidade, para conservar o poder, de se aliar aos ultraortodoxos, conduzindo, de certa forma, a uma situação que vem a desembocar também naquilo que sucede hoje.
Portanto, eu diria que há aqui a responsabilidade de todos. Mas, indo concretamente ao caso do conflito presente, é evidente que tudo começa, sem estar a procurar explicações históricas; tudo começa realmente com um ato bárbaro por parte do Hamas, em 7 de outubro. Aliás, esse ato bárbaro repercute-se depois na manutenção da situação dos reféns e na utilização da população civil de Gaza como camuflagem da atividade do próprio Hamas.
Por seu turno Israel, na minha perspetiva, tem direito ao exercício do direito de legítima defesa, mas esse direito de legítima defesa deve ser exercido de acordo com aquilo que são as leis da guerra.
Tem de haver proporcionalidade, não é?
É aquela questão da chamada guerra justa. Quer dizer que tem de haver proporcionalidade nos meios, tem de haver uma intervenção militar, tem de haver a proteção das populações civis. É evidente que quando há um quartel-general ou uma instalação militar que está oculta no meio de civis, posso dizer, bom, os fins justificam os meios. Não justificam. Atualmente, Israel é fortíssimo nisso e tem o Shabak, tem a Mossad, e há uma noção precisa dos riscos que tem uma operação militar. E eu, quando pretendo atingir um determinado alvo, e sei que com isso corro o risco de matar dezenas ou centenas de civis, tenho de ponderar e não aceitar esse risco.
Ao fim, e ao cabo, tudo se reduz à questão do objetivo que eu pretendo atingir e ao custo que tenho para o atingir. E Israel está a falhar também aqui neste aspeto. Penso que está, de alguma forma, a falhar na forma como as coisas estão a ser reconduzidas.
Ainda, o principal responsável das Nações Unidas na faixa De Gaza, dizia que tinha visitado pela primeira vez a região depois dos ataques e revelava que nas escolas que eram ministradas pelas Nações Unidas, tinha encontrado crianças a suplicarem água e por pão. Isto não é admissível.
O abastecimento, a satisfação das necessidades básicas, é imperioso e é possível neste momento. Há centenas de veículos que estão à espera de entrar na faixa de Gaza.
Há aqui um aspeto interessante nesta questão, que penso que é pouco ventilado pela comunicação social, que tem a ver com o seu papel. É muito importante a comunicação social estar presente e também tem muita importância as imagens.
Repare, no conjunto de massacres de que temos conhecimento. Todos nos lembramos do massacre de populações civis, por exemplo de Grozni, na Chechénia, do massacre dos Tutsi, no Ruanda… falamos, em milhentas situações em que as populações civis foram massacradas.
A chegada da imagem do que se passa ou passou a todo o mundo, dá-nos outra proximidade, dá-nos outra compaixão perante o sofrimento alheio. É dessa importância da imagem que se está a verificar também aqui em Gaza e Israel.
Olhando em concreto para este conflito, identifica alguma personalidade internacional com capacidade de mediar efetivamente esta situação de guerra?
Não. Não vejo. A não ser que haja uma aproximação de posições. Os Estados Unidos continuam a ter um papel fundamental, e há o papel que podem desempenhar os Estados Árabes moderados. Estamos a falar da Jordânia, a Arábia Saudita não é propriamente um Estado moderado, mas tem interesse em que não haja uma escalada na guerra. Mas há aqui um problema nesta situação. Israel que tinha de fazer alguma coisa entrou em Gaza, mas já Kissinger (Secretário de Estado Norte Americano entre 1973-1977) dizia que quem entra numa guerra, quem tem uma estratégia para entrar numa guerra, deve ter também uma estratégia para sair dela.
E perguntamos: Como é que Israel vai fazer relativamente à faixa de Gaza quando tiver de a abandonar? E como é que vai abandonar? Será uma força das Nações Unidas que vai lá ficar?
A pergunta é exatamente essa, se isso deve ser uma preocupação de Israel ou da comunidade internacional?
Acho que sim, acho que é fundamental, porque senão isto não tem fim. Acho que a preocupação neste momento é realmente o dia seguinte. É encontrar uma solução, e essa solução pode passar pela colocação de uma força formada pelos Estados moderados – nomeadamente o Egito, a Jordânia. Pode ser uma solução; uma força de paz das Nações Unidas, mas nós não podemos esquecer que toda esta situação relativamente aos próprios ocupantes de faixa de Gaza vai ter uma consequência. Na ‘Foreign Affairs’, que é uma revista americana que segue estes assuntos, há um estudo, uma sondagem que foi feita muito antes do conflito, foi feita em agosto, e é curioso que o Hamas não tinha a implantação que tinha, por exemplo, a Fatah. Isto é, o Hamas não tinha a maioria da população com eles. Aquilo que sucedeu agora, ou que está a suceder, vai colocar toda esta gente com um desejo de vingança, de ódio relativamente a Israel.
Precisamente, essa é também uma preocupação que eu lhe queria colocar, e que tem a ver com Portugal, e com os discursos mais radicalizados sobre este conflito. Devemos estar preocupados com a radicalização do discurso também em Portugal? O que é que espera das autoridades nacionais sobre esta questão?
Espero ponderação e bom senso. Ponderação e bom senso. Nós somos um país que, historicamente, tem alguma tendência para conseguir aproximações, conseguir entendimentos, até porque não somos um país com ambições, pelo contrário, e aqui, neste conflito de gestão por trás há grandes interesses. No Mundo multipolar dos grandes interesses – China, Rússia, e, Estados Unidos – nós podemos ser aquela voz de entendimento de bom senso. Aquilo que se está a verificar aqui, é que as pessoas estão a transpor a questão Israel/Hamas, para a dicotomia esquerda, direita. Isto é, interpretam este conflito de acordo com as suas pré-convicções, com as suas convicções, com os seus estereótipos, o que não pode existir.
E isso verificas já na sociedade em Portugal?
De alguma forma, e em algumas franjas. Mas, por exemplo, há alguns comentadores, que eu ouço com regularidade, nomeadamente o António Barreto, e vejo uma procura de ponderação e de ver realmente, o que está aqui em causa, e a tentar realmente descortinar o que está certo e o que não está. Porque aqui também há o bem e o mal, e o bem e o mal não é só algo que esteja só de um lado. Está dos dois lados, não é monopólio de um lado só, está dos dois lados, digamos.
Queria agora passar um pouco para a atualidade nacional. A Comissão Nacional de Justiça e organismos de 10 dioceses assumiram uma nota sobre a crise na habitação, que sublinha o impacto desta situação na vida das pessoas, das famílias. Pergunto se encontra janelas de esperança nas políticas que estão a ser adotadas ou se considera que ainda estamos longe de responder verdadeiramente a este problema?
Que estamos longe, estamos. A situação no mercado da habitação modificou-se substancialmente desde 2015. Por acaso estive a ver ontem um estudo acerca da evolução das condições da habitação e o custo da casa, o custo da habitação subiu cerca de 94% entre 2015 e 2022. Nós fomos o quarto país da Europa onde a habitação subiu mais.
Nós, a nível da doutrina social da igreja, a nível das comissões, defendemos não só o direito à habitação como um direito essencial inerente à própria dignidade da pessoa, como também defendemos o direito de propriedade. Penso que esta procura da finalidade social e o tentar encontrar habitação para quem necessita dela, é uma tarefa do Estado também.
Mas é uma tarefa do Estado e também de todos nós. Isto é, o Estado tem de criar as condições para ele próprio, de uma forma direta, criar habitação social, habitação corporativa, criar condições fiscais, e dou-lhe um exemplo: a possibilidade de o arrendatário de até um certo montante, poder descontar no IRS, o montante da renda que paga.
Porque é curioso verificar que ao longo destes anos as pessoas procuraram sobretudo comprar casa.
E muitas vezes compraram habitação sem ter em consideração que muitas vezes
a taxa de esforço que lhes vai ser exigida é demasiado elevada para aquilo que podem pagar.
Ora, penso que isto não sucederia se existisse um mercado de arrendamento a funcionar
em condições de oferta e de procura.
O que sucede é que o mercado de arrendamento também implodiu. Atualmente há muito menos casas para arrendar. É necessário que o Estado intervenha diretamente criando condições, criando habitação, criando políticas fiscais que premeiem e incentivem a possibilidade de arrendar.
E como é que isso é possível? Se nós formos ver, nesta última década, quando a taxa de juro era muito baixa era mais fácil comprar casa e pagar uma prestação do que estar a arrendar. Hoje isso modificou-se substancialmente.
E esta conflitualidade entre Presidência e Governo sobre este tema também cria provavelmente ruído e dificuldade à adoção das melhores soluções, ou não?
Acho que sim, mas repare esta conflitualidade, para mim, são jogos de sombras chinesas. O que é necessário é que as nossas lideranças tenham uma visão estratégica para o futuro deste país. E eu penso que isso falha. E falha, nomeadamente, relativamente a dois setores essenciais. Falha relativamente aos pobres e falha relativamente aos jovens.
Nós estamos a formar um país assimétrico, em que temos uma classe média que vai aguentando; temos gente que pode muito, e temos uma larga camada da população que não pode, ou que pode com muita dificuldade.
Aliás, é curioso que se nós olharmos para a pobreza verificamos que muitos dos pobres hoje, são gente que trabalha. Trabalha, mas não tem o suficiente para se conseguir aguentar.
E esta crise de inflação que estamos a viver ainda vai acentuar mais estas desigualdades?
Sim, sim. A pobreza que nós temos é uma pobreza estrutural. Nós temos 20% da população que se pode considerar pobre. E seria muito mais se não houvesse as transferências sociais, isto é, os subsídios, as pensões, tudo isso seria muito mais grave.
Nós temos um país estruturalmente desequilibrado. E sobretudo, o que eu penso é que é necessário criar esperança. Somos um país em que muitos de nós estão desesperançados.
E não dá esperança a recentemente aprovada Estratégia Nacional de Combate à Pobreza?
São tantos papéis, são tantos papéis. Eu não gosto de burocracia. Quando vejo muita estratégia, vejo as estratégias passadas e aquilo que elas deram e, enfim…
Ainda assim, temos de ser justos também. Nos últimos anos, a taxa de pobreza diminuiu, pouco, mas diminuiu. E isso é fruto da estratégia, mas também é fruto do trabalho das instituições de solidariedade social. Se não fossem as instituições de solidariedade social…. Eu lembro, por exemplo, a título lateral, que aqui em Coimbra há uma instituição, que é a Cozinha Económica da Rainha Santa Isabel, que fornece refeições. E serviu, no ano passado, em setembro e outubro, mais de 5 mil refeições por mês. São estas instituições, realmente, que muitas vezes fazem a diferença. O Estado tem a expectativa que a estratégia tenha algum sentido, mas, muitas vezes, as coisas ficam meramente no papel e não passam daí.
Quando gravamos esta entrevista, um conjunto de deputados entrega no Tribunal Constitucional um pedido de fiscalização sucessiva da lei que despenaliza a eutanásia.
Considera que ainda há questões por esclarecer nesta matéria?
As questões estão praticamente todas esclarecidas. Na altura acompanhei o tema e para mim, há uma questão que é básica, e que, por muitos rodeios que se façam, não está esclarecida.
É que a Constituição garante o direito à vida. O direito à vida é um bem jurídico essencial. E a eutanásia não é. A eutanásia é o contrário disso, na minha opinião, na minha perspetiva. E essa questão não está respondida nos acordos do Tribunal Constitucional, nem sequer nas perguntas que o Presidente da República formulou, apesar de não ter visto ao pormenor o documento.
E essas perguntas não foram devidamente esclarecidas pelo Tribunal Constitucional?
Esta, em concreto, para mim, não foi devidamente esclarecida. É a contraposição entre aquilo que diz a Constituição e aquilo que representa a eutanásia. E tanto é assim, que quem efetivamente tem por dever procurar defender a vida na doença, que são os médicos, e que na sua grande maioria opõem-se à eutanásia.
Depois, há uma questão aqui uma outra questão lateral, mas que tem de ser colocada. A nossa Assembleia da República decidiu aprovar a eutanásia, mas os cuidados prévios, os cuidados paliativos, a assistência realmente a quem está neste espaço terminal, será que ela atingiu um expoente de excelência? Ou será que isso foi descurado realmente, enveredando-se pela solução final da eutanásia?
E estamos a viver uma situação na saúde também de enorme crise, que também potencia situações de maior risco, provavelmente, não é?
Esta situação é um pouco o fruto de alguma falta de visão estratégica na condução do país. Porque, vamos lá ver, não é só a questão dos médicos, que é uma questão que se arrasta. Esta questão está relacionada com todas as carreiras profissionais da administração pública. Uma administração publica que engrossou substancialmente nos últimos anos, e em dois anos, penso que foram admitidos mais 15 mil funcionários públicos.
Nós temos um Estado que tem de satisfazer as necessidades e tem uma série de profissões e de ordens e de corporações à volta, e não pode atuar sectorialmente relativamente a cada uma. Tem que haver uma visão estratégica, de como é que nós vamos tratar o conjunto de pessoas que estão na administração pública, sabendo nós que isto é um Estado pesado e que só consegue subsistir com um peso fiscal enorme que nos atrapalha e que nos corta o crescimento. Tem de haver uma visão global. Nós tratamos agora a questão dos médicos, mas esta falta de visão estratégica refletiu-se logo quando se diminui as horas de trabalho para toda a gente.
Lembro-me que na altura o senhor Presidente da República disse que promulgava o diploma, mas revelou que se isso tivesse custos económicos, se arrogava no direito de voltar a ver o assunto. Os custos económicos estão aí; são manifestos. E, todavia, não houve mais ninguém que se pronunciasse. Não há coragem política para agora estar a dizer, olhe não podem ser 35 horas de trabalho, mas são 40. Isto parece um pouco aquilo que eu lhe disse há pouco: Neste momento nós temos uma parte da nossa sociedade que vai tentando retirar do Estado o máximo que pode, temos muita gente que tenta sobreviver e lutar contra as adversidades; entre as quais muitas empresas, e depois temos muita gente que vive de uma forma a raiar a sobrevivência. Tudo isto tem de ser repensado e reformulado. Este país que temos, neste momento, é um país em que há muita desesperançada, sem esperança. E isto prende-se necessariamente com as lideranças.