Em 2025, os Franciscanos celebram os 800 anos do Cântico das Criaturas, composto por São Francisco de Assis antes da sua morte. O ano jubilar franciscano iniciou-se a 11 de janeiro e conta com várias iniciativas em Portugal. Este é o tema da nossa conversa com o Frei Hermínio Araújo, religioso da Ordem dos Frades Menores, o convidado desta semana da Renascença e da Agência Ecclesia
Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
LAUDATO SI’, mi’ Signore – Louvado sejas, meu Senhor», cantava São Francisco de Assis. «Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa e produz variados frutos com flores coloridas e verduras». É assim que começa a encíclica ‘Laudato Si’ (2015), do Papa Francisco. É uma prova de que este Cântico das Criaturas mantém a sua atualidade, oito séculos depois?
Sim, realmente mantém a atualidade, desde logo pelos temas, pelas problemáticas que aí são abordadas, quer nesta encíclica, quer depois em muitos outros textos, nomeadamente a ‘Fratelli Tutti’, mas também outras intervenções que são simbolicamente muito significativas do Papa Francisco, onde ele vai evidenciando as diversas problemáticas, a partir dos temas, podemos assim dizer, que vão aparecendo no Cântico.
Esse é um dos tópicos, um dos pontos da nossa conversa, mas diria que há algo que vale a pena também e que sugiro que depois possamos ir focando, que é o que está na base disso tudo, que eu diria de uma forma simples, para todos entenderem, que é a dimensão poética da experiência de Francisco, consolidada precisamente no poema, porque o Cântico é um poema.
Há uma ideia de que o Cântico é uma espécie de uma ode à natureza, mas ele é de facto um espanto perante a existência e tudo o que nos rodeia…
Exatamente. Diria logo assim, para início de conversa, que é preciso ter muito cuidado para não ler o Cântico apenas como uma espécie de manifesto de sustentabilidade ou de manifesto ecológico – também tem essa vertente, sem dúvida, não quero desvalorizar esse aspeto que tanto entusiasma as pessoas, crentes e não crentes mesmo, as diferentes sensibilidades religiosas, as diferentes comunidades religiosas, mesmo os não crentes, por ser realmente, podemos dizer, um manifesto, mas não podemos ler apenas nessa perspetiva: os temas, as problemáticas que vão aparecendo no Cântico, esta preocupação de Francisco de incluir tudo, sem deixar nada de fora.
Importa sobretudo fazer uma segunda leitura, a atualidade poética do Cântico das Criaturas. Não apenas até deste Cântico, porque está inserido numa obra poética de Francisco: São Francisco legou-nos uma regra, um conjunto de textos legislativos que fazem a ordem e a família franciscana, um corpo doutrinal, sobretudo doutrina espiritual, um conjunto de exortações, de cartas que são textos muito interessantes; e legou-nos uma obra poética. Nem sempre isto é evidenciado, e aqueles que mais conhecemos, que mais vamos falando de Francisco, ou mesmo os franciscanófilos, focamos muito o Cântico das Criaturas, sobretudo nestes últimos séculos, mas há um conjunto de outros textos, poéticos – a maior parte dizemos que são orações, mas têm toda esta carga muito forte poética -, inclusivamente um célebre poema, ‘Os Louvores a Deus’, que nasce no contexto do Monte Alverne, da estigmatização. Está muito em linha com o Cântico das Criaturas e serve de chave de leitura do Cântico – no início foi dito que o escreveu pouco antes da morte, e eu sublinhava, até para percebermos este fundo do Cântico das Criaturas, num contexto pouco antes da morte. A primeira fase da redação foi em 1225, por isso é que estamos a saber aos 800 anos, e as últimas estrofes foi já na proximidade da morte – São Francisco morreu no dia 3 de outubro de 1226. Eu diria que foi escrito num contexto de sofrimento, de enfermidade, aliás, no Códice mais antigo, o 338 de Assis, o copista tem o cuidado de dizer exatamente isto: este é o Cântico das Criaturas, Os Louvores das Criaturas, que o bem-aventurado Francisco compôs quando estava enfermo, em São Damião.
Esta mensagem de admiração pela natureza, tem conseguido ultrapassar as barreiras da Igreja Católica. Isso também ajuda a explicar o sucesso, digamos assim, a figura de São Francisco de Assis?
Sem dúvida. Esta atitude contemplativa, que é uma experiência espiritual de crentes e não crentes, inspira muitíssimo as mais diversas expressões artísticas. É a admiração, o espanto, esta atitude… por isso é que o Papa Francisco, a certa altura na encíclica ‘Laudato si’ diz que o mundo não é apenas um conjunto de problemas a resolver, é uma realidade para admirar, contemplar na alegria e no louvor, por isso até este refrão ‘Laudato si’. Tem a ver exatamente com esta atitude de admiração, de espanto, o Cântico das Criaturas é o canto do espanto, é o poema do espanto, do maravilhamento perante todos os seres, é o cântico dos seres unidos ao Ser supremo, ao Altíssimo, como ele diz – é a primeira palavra-, que revela esta atitude de profunda admiração.
Olhando para o texto vemos, como já disse, uma grande obra poética da língua italiana, além de ser um símbolo da proteção da criação. É preciso superar uma leitura algo ingénua, de São Francisco, e aprender a ler em profundidade também a sua mensagem…
Exatamente, e eu até pegava nisto com exemplos. Quando ele diz ‘louvado sejas Senhor pela irmã água’, se eu vou dizer isto num contexto de uma catástrofe natural, em que acabam de morrer pessoas e vidas destruídas e tudo de destruição… eu não posso dizer ‘louvado sejas Senhor pela irmã água’. Num contexto, por exemplo, de um fogo, ‘louvado sejas Senhor pelo irmão fogo’… ou uma mãe que acaba de perder um filho num acidente de viação, ‘louvado sejas Senhor pela nossa irmã a morte corporal’. O que é que isto significa? Não é a realidade em si, mas aquilo que ela significa, aquilo que ela representa. Por isso é que, se fazemos uma primeira leitura algo ingénua, nós dizemos que isto pouco interessa, é uma coisa quase para ler e deitar fora. Não! Francisco diz logo no princípio, a propósito do sol, que é a significação do Altíssimo, é símbolo do Altíssimo, mas não é apenas o sol, o irmão sol, é toda a realidade, todas as realidades que são ali incluídas, como símbolo.
Podemos olhar para todas as realidades da vida em muitas perspetivas, a partir do Altíssimo ou a partir só de uma realidade mais parcial. Como diz a Sophia, uma realidade inteira, este é um ponto essencial para mim na leitura do Cântico: a poesia é uma via que nos conduz à realidade inteira, como diz Sophia, à realidade toda, e não a realidades parciais. Por isso é que o texto, a sua atualidade poética, é tão significativa.
Funciona como elemento unificador de uma realidade muito dispersa?
Exatamente, queiramos ou não, nós vivemos numa cultura muito fragmentada. Gosto muito de ler e de reler, por exemplo, Edgar Morin, naquela metodologia que ele propõe sempre da transdisciplinaridade, que no fundo consiste em reunir as diversas partes de verdade, de realidade, na aproximação, reunir conhecimentos, perceber que numa realidade fragmentada tem de haver este esforço de aproximação para uma verdade cada vez mais total e mais plena.
Há uma marca cultural e espiritual do cântico das criaturas que se tem vindo a cimentar ao longo dos séculos. É também um desafio para a criação artística nos dias de hoje?
É, porque esta originalidade de Francisco parte muito da sua experiência de profunda liberdade perante Deus, perante tudo, perante todos, desencadeia esta atitude também do artista, sempre este fundo poético, porque a poesia é liberdade. A poesia é abertura ao essencial, e é muito interessante, toda a produção artística, de todos os tempos, e concretamente na contemporaneidade, há quase como uma necessidade de valorizarmos cada vez mais isso, face à realidade. Nós vivemos extremismos complicados, radicalismos complexos, ideologias, e esta ligação à expressão artística é algo de muito significativo e provocador até para os artistas dos nossos dias, face a uma cultura tão polarizada.
Historicamente tivemos posições teológicas que subjugavam a natureza à vontade do ser humano – defendendo que a natureza existe para ser explorada pelo ser humano, como a criatura superior, sem a visão positiva de todas as criaturas do Cântico. Isto é algo que o Papa retoma na ‘Laudato si’: é um ensinamento para uma sociedade marcada por esta exploração dos recursos e pelos nossos excessos de consumo?
Eu diria que a base de tudo isto, da experiência de Francisco e na relação com a atualidade, e tendo presente leituras que são pouco consistentes, incluindo do texto bíblico, o que eu sublinharia, sobretudo, é este aspeto de Francisco de viver desapropriado, “sem próprio”.
Onde é que estão as fontes no fundo do Cântico das Criaturas? Ele inspirou-se na Bíblia, naturalmente, no texto de Bíblia, nos Salmos, etc., mas inspirou-se, não nos podemos esquecer disso, na poesia trovadoresca, nos trovadores e dos jograis do sul da França, que nós conhecemos também, e até aprendemos no Liceu a poesia do século XII, século XIII. Também isto influenciou a Itália, a zona de Francisco, concretamente, a Úmbria, onde ele, ao ler, ao contactar com os textos dos trovadores, percebe que é possível amar sem possuir.
Os célebres cânticos do amor impossível, do amor longínquo, etc., portanto, é possível amar sem se apropriar, amar sem possuir.
Mas esse é o tipo de relação que teologicamente hoje é proposta, em relação à natureza, por exemplo…
É possível amar sem possuir. Por isso é que o Papa coloca como grande linha inspiradora da ‘Laudato si’, precisamente, este texto de Francisco. É possível amar sem possuir. É possível amar sem destruir. É possível amar sem se apropriar.
É muito bonito, Francisco usa o termo pobreza, mas o termo mais original dele até nem é propriamente pobreza. Nós professamos a obediência, a castidade e “sem próprio” (sine proprio), sem nos apropriarmos. É uma forma muito específica de Francisco de Assis dizer a pobreza. Inspirando-se, portanto, nesta tradição, quer bíblica, quer da poesia trovadoresca.
E não subjugar a natureza à vontade de ser humano…
Exatamente.
São muitos os receios sobre a forma como os Estados Unidos da América se irão posicionar em relação, por exemplo, à questão das alterações climáticas. Donald Trump toma posse já no dia 20 de janeiro. Os tratados e os acordos de defesa do ambiente correm sérios riscos. Há razões para temer para o futuro, frei Hermínio?
Eu acho que há razões para temer em relação ao futuro, sim. Claro que uma coisa é o otimismo e outra coisa é a esperança. Há razões até para sermos algo pessimistas. Agora, vistas todas estas coisas numa perspetiva mais abrangente, há avanços e recursos, certamente. Francisco tem esta proposta, há visões pouco em sintonia com esta proposta, sim. Mas fica sempre, de facto, esta mensagem. É sempre uma semente de esperança que podemos ir lançando com este Cântico.
Mas esta visão de Trump aproxima-se de forma substancial desta posição da subjugação da natureza à vontade do ser humano?
Sim, sim. Aliás, a gente conhece alguma fundamentação, mesmo antropológica, cultural, religiosa. Há visões religiosas nada em sintonia com esta visão, podemos dizer, teológica de Francisco e do Papa Francisco.
Falava há pouco da ‘Fratelli Tutti’. Num mundo marcado pela tecnologia, esta descoberta também do outro como irmão é uma mensagem central?
É uma mensagem central e também do Cântico das Criaturas.
Porque se fala sempre em irmão, irmã…
Exatamente. A ‘Laudato si’ toca um aspeto do Cântico, mas a ‘Fratelli Tutti’ vem completar muitas outras coisas que também estão lá, nomeadamente o ser humano, porque se na primeira parte da intervenção do Papa Francisco, com a ‘Laudato si’ é toda a parte inicial, digamos assim, o cuidado da casa comum, a ‘Fratelli Tutti’ é o cuidado do ser humano, a fraternidade humana, nas mais diversas dimensões.
Aliás, é um documento muito próximo da declaração de Abu Dhabi, aquela célebre carta da fraternidade, que é incluída depois também na ‘Fratelli Tutti’. A declaração de Abu Dhabi é quase um compromisso, digamos assim, inter-religioso pela fraternidade, em favor da fraternidade entre católicos e os muçulmanos. E há um outro texto também que eu gostava neste contexto de evidenciar, que é o discurso do Papa Francisco em Ur em 2021, aquando da visita ao Iraque. Ur é a pátria de Abraão, na Mesopotâmia. O Papa disse que, tal como o Abraão, nós temos de nos deixar interpelar pela sua atitude, olhar para o céu, contemplar as estrelas, para caminhar de uma forma mais consistente sobre a terra. Isto é muito significativo, porque nós não podemos falar de irmãos sem pai. E vem sublinhar um aspeto, por exemplo, no último capítulo da Fratelli Tutti, em que já se aborda a questão da transcendência, da experiência da transcendência, na relação com a fraternidade. Esta dialética, podemos assim dizer, entre transcendência e imanência, a experiência da paternidade a Deus e da fraternidade humana.
Nesse contexto, nesse discurso de Ur, o Papa Francisco vem sublinhar e consolidar, digamos assim, todo este pensamento, quer da ‘Fratelli Tutti’, quer da ‘Laudato si’.
Como é que vai ser assinalado este ano jubilar dos franciscanos em Portugal, até no contexto do Ano Santo, que a Igreja Católica está a viver a nível mundial?
Sim, a partir da família franciscana, nós podemos dizer que este duplo jubileu, e de uma forma muito bonita, o Cântico das Criaturas é o grande cântico da esperança. Ajuda-nos de uma forma muito situada, e para quem quiser, quer ao nível da família franciscana, mas quem quiser connosco fazer esta caminhada do ano jubilar, que é também de esperança, com as diversas atividades que temos, as diversas propostas que vamos fazendo.
Eu sublinhava, por exemplo, uma iniciativa em Lisboa, no Centro Cultural Franciscano: a abertura vai ser com o padre João Lourenço, no dia 23 de janeiro, acerca do poema da criação no Cântico das Criaturas; no dia 20 de fevereiro, a criação na tradição hebraica e islâmica, com a Miriam Assor e Kalid Jamal. Isto é um exemplo, entre muitas outras coisas que nós vamos procurar promover.
Gostava de sublinhar, quase desafiar a todos os que nos ouvem: celebrar este ano, no dia 21 de março, Dia Mundial da Poesia. A nossa proposta é fazer com que o Cântico das Criaturas, o texto, chegue ao maior número de pessoas possível. É uma das iniciativas concretamente, mas entre muitas outras que estamos a pensar.
Como é que estão a pensar fazer isso? Fazer chegar a toda a gente?
Das mais diversas formas, procurando aliados aqui e ali, desde declamá-lo na rua, até, no sistema mais tradicional, passar uma espécie de pagela de uns aos outros, pelas redes sociais, fazer com que nas diversas redes vá aparecendo nesses dias, aqui e ali, sistematicamente, o texto do Cântico.
A penúltima estrofe do Cântico das Criaturas exalta o perdão e a paz – aliás, diz-se mesmo que terá conseguido impedir uma guerra civil – e parece ganhar cada vez mais atualidade, infelizmente, olhando para a realidade que nos rodeia. Esta mensagem de Francisco de Assis, deve chegar a quem tem o poder de travar as guerras?
Deve chegar, sim, claro. Eu diria, utilizando palavras de Edgar Morin, que há pouco já referi, ele diz que “a invasão da hiperprosa cria, em meu entender, a necessidade de uma hiperpoesia”. Há esta linguagem de invasão, desta hiperprosa, desta narrativa de guerra. Queremos chegar ao maior número de pessoas, sensibilizar a partir do Cântico das Criaturas, nesta hiperpoesia, nesta dinâmica de um outro olhar para a realidade. É claro que no tempo de Francisco havia guerras, entretanto, tivemos guerras terríveis, o século XX foi um século de guerras e agora as guerras continuam. Há esta dialética entre a lógica do mundo do Cântico das Criaturas, o mundo de Francisco e do Cântico das Criaturas, e o mundo da guerra, mas, persistentemente, esta mensagem de paz é uma possibilidade.
Seria uma boa sugestão de leitura, frei Hermínio, do Cântico das Criaturas por parte dos líderes mundiais?
Sem dúvida nenhuma. Dos líderes e de todos aqueles que, como nós, querem fazer com que esta mensagem vá passando cada vez mais e mais.