I República e Igreja no Algarve

Entrevista ao padre Afonso da Cunha Duarte, sacerdote e investigador, director do Arquivo Diocesano do Algarve e autor da obra «A República e a Igreja no Algarve», destacando a figura de D. António Barbosa Leão (1860-1929), bispo local entre 1908 e 1919

O padre Afonso da Cunha Duarte, sacerdote e investigador, director do Arquivo Diocesano do Algarve, considera que a implantação da República nesta região do país, fez com que “tanto os frades como o clero diocesano” fossem “perseguidos”.

Autor da obra «A República e a Igreja no Algarve», este especialista revela que, na imprensa do início do século XX, a Igreja era rotulada como “«jesuítica», «inquisitorial», «ultramontanista» e «miguelista»”.

“A catequese política abundava na imprensa regional”, acrescenta.

O sacerdote refere, em entrevista à Agência ECCLESIA, que os conflitos com a Igreja se avolumavam e “os distúrbios eram frequentes, de modo particular nos enterros de alguns republicanos mais exaltados, declaradamente inimigos públicos da Igreja”.

Após uma investigação de 15 anos, o padre Afonso da Cunha Duarte destaca a figura de D. António Barbosa Leão (1860-1929), bispo do Algarve entre 1908 e 1919, um monárquico constitucionalista que manteve sempre o distanciamento na luta partidária.

A Lei da Separação, de Abril de 1911, apanhou de surpresa o bispo, o qual não esperava que “fosse tão aguda e tão radical”. “Todavia, não se calou e sofreu as consequências: prisão e exílio.

O Decreto de Expulsão de D. António Barbosa Leão é publicado a 12 de Janeiro de 1912, mas o bispo tinha saído do território no dia anterior. Passados dois anos, a 11 de Janeiro de 1914, o bispo voltou novamente à diocese, em “apoteose”.

 

Agência ECCLESIA (AE) – O Algarve foi das regiões onde se sentiu mais os efeitos da Implantação da República. Há alguma razão específica?

Afonso da Cunha Duarte (ACD) – Foi um reflexo de épocas anteriores. O anticlericalismo era evidente… Nas décadas de 1880 e 1890 operou-se uma grande transformação no seio da igreja algarvia. A maioria das paróquias sofreu um forte abalo. Com o liberalismo acentua-se a ignorância religiosa. Foi um caos… Uma parte do clero seguiu o D. Miguel e a outra parte o D. Pedro. Gerou-se um conflito interno, mas foi a lei do mais forte que venceu. Quando foi a Implantação da República (5 de Outubro de 1910) ainda existiam resquícios do passado. Tanto os frades como o clero diocesano foram perseguidos.

 

AE – Quer dizer que os conflitos já eram evidentes quando se deu a Implantação da República.

ACD – No século XIX, o Algarve tinha os padres «misseiros» (que só celebravam missa), onde a vocação era quase nula. Nem sei se tinham preparação catequética… Serviam para celebrar missa e para as Confrarias. Não podiam confessar nem pregar… Como não tinham preparação, a ignorância religiosa aumentava. Quando chegou a República estava tudo oco. Só com D. António Mendes Belo e D. António Barbosa Leão é que se começou a organizar a catequese em todas as paróquias.

 

AE – Em 1908, quando D. António Barbosa Leão chegou à diocese do Algarve verificou que existiam várias ilhas republicanas disseminadas sobretudo no Litoral e no Barrocal?

ACD – Essas ilhas republicanas existiam porque Afonso Costa, Teófilo Braga e Bernardino Machado mandavam os «linguados» dos jornais publicados noutras regiões para os jornais republicanos do Algarve. Essa atitude fomentou aquelas ilhas.

 

AE – A imprensa regional estava dominada pelos grupos republicanos?

ACD – Estavam muito bem dominados. A Igreja era rotulada na imprensa e pelos políticos como «jesuítica», «inquisitorial», «ultramontanista» e «miguelista». A catequese política abundava na imprensa regional.

 

AE – Grupos esses que acusavam a Igreja de estar aliada à monarquia.

ACD – Esses grupos – influenciados pela filosofia positivista – tinham muita força. Os conflitos com a Igreja avolumavam-se e os distúrbios eram frequentes, de modo particular nos enterros de alguns republicanos mais exaltados, declaradamente inimigos públicos da Igreja.

 

AE – Nas celebrações religiosas, especialmente na Semana Santa, esse indiferentismo e «gozo» era evidente. Na Procissão dos Passos, em Faro, na Quaresma de 1911 existiu mesmo um episódio caricato…

ACD – Sim. Nessa Procissão – como era tradição – havia dois sermões: o do Pretório e o do Calvário. A procissão percorreu as principais artérias da cidade, mas um homem colocou-se debaixo de um andor. A polícia interveio, mas ele continuou a acompanhar o andor com o chapéu na cabeça. Os ânimos exaltaram-se e o homem acabou preso.

 

AE – Embora D. António Barbosa Leão fosse monárquico constitucionalista, manteve sempre o distanciamento na luta partidária…

ACD – Era monárquico, mas muito liberal. Até aconselhava os padres para não se imiscuírem na política. Chegou «cantar vitória» com a República porque libertou-nos do regalismo.

 

AE – Apesar de «cantar vitória», não estava à espera das consequências visto que a Igreja algarvia foi vilipendiada e ofendida.

ACD – Ele não esperava que a Lei da Separação (Abril de 1911) fosse tão aguda e tão radical. Todavia, não se calou e sofreu as consequências: prisão e exílio. Pagou amargamente a sua frontalidade. No meio de toda a anarquia, três ou quatro cónegos conseguiram manter a ordem na diocese. Não recuaram e não tiveram medo das autoridades.

 

AE – Mas a abertura do Seminário, no ano lectivo de 1910, foi perturbada com a revolução de 5 de Outubro de 1910?

ACD – A perturbação do momento impediu desde logo que se desse o início às aulas e D. António Barbosa Leão encerrou o Seminário durante um mês. A propaganda contra o clero intensificou-se, os vexames e insultos eram constantes e nem todos os alunos estavam dispostos a serem mártires. Alguns alunos não comparecerem em Novembro…

Entretanto saiu a Lei de Separação e, no princípio de Agosto de 1911, a Comissão de Arrolamento dos Bens Eclesiásticos iniciou o arrolamento do Seminário. Esteve lá até ao início do mês seguinte (6 de Setembro), data em que um polícia, apresentando um ofício do presidente da Comissão Concelhia de Inventário, exigiu a entrega das chaves do Seminário. A diocese do Algarve ficou sem Seminário.

 

AE – Para além do Seminário Diocesano, onde decorreram as situações mais graves?

ACD – Em Lagos, Lagoa, Tavira e S. Brás de Alportel. Alguns padres foram presos por denúncia dos caciques locais.

 

AE – O Liceu de Faro chegou mesmo a fazer greve, visto que uma parte do corpo docente era formado por sacerdotes e foram rejeitados pelos alunos.

ACD – Sim. É preciso não esquecer que, nessa altura, o liceu era no seminário.

 

AE – Perante estes acontecimentos, no final de 1910 (22 de Dezembro), D. António Barbosa Leão dirigiu-se mesmo ao Governador Civil.

ACD – Encontrei vários documentos onde se faz referência às idas do Bispo ao Governador Civil. D. António ia lá protestar e o Dr. Zacarias (Governador Civil) prometia «providências» mas ficava tudo na mesma. Dizia «Ámen» ao bispo, mas não fazia nada para alterar as coisas. Quando o bispo do Algarve ia a uma paróquia administrar o Sacramento do Crisma, à hora da missa, no adro, havia «conferências liberais», mercados ou barulhos ensurdecedores. O bispo era posto em ridículo por causa das ofertas do povo.

 

AE – Nunca teve medo dos contestatários.

ACD – Não teve medo e cumpria o seu programa. Nunca teve medo dos arruaceiros. Falava bem alto e até «cantava muito bem», para inveja dos «trombones» republicanos radicais.

 

AE – Uma das formas de calar a «voz da Igreja» foi o encerramento da tipografia?

ACD – Numa das dependências do Paço Episcopal estava instalada a tipografia do bispado. A Comissão Municipal Administrativa da cidade de Faro tomou posse poucos dias depois da Implantação da República (5 de Outubro de 1910) e, na semana seguinte, entra logo em acção. No dia 27 de Outubro pede a cedência da casa anexa ao Paço Episcopal (com frente para a Rua do Município) para escolas. O edifício estava reservado para a residência do Cónego Provisor do Bispado e, numa das dependências, o Cón. Franco, secretário da Câmara Eclesiástica, tinha instalado lá a tipografia. O pretexto para o pedido da cedência foi uma causa justa e filantrópica: a criação de novas escolas primárias, mas visava sobretudo silenciar a voz da Igreja. Os republicanos diziam que a tipografia não podia continuar a difundir «propaganda reaccionária».

 

AE – Com a Lei da Separação (Abril de 1911), a sustentação do clero algarvia torna-se mais difícil?

ACD – Alguns padres vivem muito pobremente. O bispo do Algarve pediu uma ajuda ao estrangeiro e escreve mesmo uma exortação (11-08-1911) aos diocesanos sobre este problema. Pede-lhes uma contribuição e lamenta que nos comícios os arruaceiros fomentem a ira contra o clero e que os padres sejam presos por motivos «fúteis».

Não compreendia como era possível que caciques andem pelas freguesias a ameaçar o povo com prisões, multas, aumento de impostos se contribuírem com alguma coisa para a sustentação do clero e do culto.

 

AE – O bispo diocesano enviou mesmo ao Governador Civil um extenso ofício a protestar contra as arbitrariedades da Comissão Municipal de arrolamento sobre a ocupação do Seminário Episcopal e dos edifícios da Mitra.

ACD – Sim, mas não evitou a posse pelo Estado dos bens da diocese. Em Novembro, D. António chamou os seminaristas e teve de alojá-los no seu paço. Como era um pequeno número de seminaristas, a Academia deixou de ter actividade.

 

AE – Como sabia que ia ser expulso da diocese, a 8 de Janeiro de 1912 escreveu ao Governador Civil: “Ainda não sei o motivo porque sou tratado pelas autoridades de Faro com um malfeitor”.

ACD – Pedia também as necessárias providências para que pudesse, sem mais vexames, retirar-se, deixando acautelado tudo o que lhe pertence e sobre o qual tem responsabilidade. D. António Barbosa Leão enviou também um extenso protesto ao Presidente da República contra o «soberano desprezo» pelos bispos e põe em causa os conhecimentos jurídicos de Afonso Costa. Salienta a ilegalidade do Decreto de Expulsão – se houvesse crime seria punido com prisão -, as inexactidões, as afirmações gratuitas, a «privação de residência» (eufemismo engenhoso do desterro) e a tirania infligida aos bispos.

 

AE – O Decreto de Expulsão é publicado a 12 de Janeiro de 1912, mas D. António «fugiu» no dia anterior. Apanhou o comboio para Lisboa e foi residir na sua terra natal.

ACD – Quando soube, arrancou logo para não se sujeitar à gritaria na partida. Foi para a terra natal, mas estava em comunicação – quase diária – com a diocese. O Vigário Geral – ficou a substitui-lo – foi preso por causa disso.

D. António não abandonou o clero nem a diocese. Frequentemente, enviava instruções sobre o tratamento a ter com os «padres pensionistas», côngrua paroquial, bens paroquiais, estudos eclesiásticos dos seminaristas e reorganização das paróquias. O governador do bispado, Cónego Manuel Alexandre Silva – homem culto e ponderado – continuamente o informava das dificuldades que ia encontrando e das acções levadas a cabo na reorganização da diocese.

 

AE – Passados dois anos, 11 de Janeiro de 1914, voltou novamente à diocese.

ACD – Foi uma apoteose. Nunca se imaginou que aquele bispo entrasse triunfalmente na cidade de Faro. Como não tinha onde residir, foi habitar no Seminário ad hoc, numa casa da Rua do Município, oferecida pelo Padre António Antunes, capelão naval.

Numa carta (28 de Janeiro de 1914) enviada aos padres e aos cristãos algarvios, o bispo afirmava: “Unidos venceremos”.

 

AE – Como foi resolvida a questão dos «padres pensionistas»?

ACD – Foram chamados, mas uma parte – infelizmente – aceitou a pensão e foram suspensos até se retratarem. Quando se retratavam no jornal da diocese ou num jornal diário de Lisboa entravam novamente no colégio presbiteral do Algarve.

 

AE – Dizia-se na altura, que D. António Barbosa Leão fez da pena uma espada.

ACD – Era um homem forte, bem constituído, alto e com uma voz maravilhosa. Um homem que desafiou tudo e todos.

 

AE – Um reformador?

ACD – Em todos os sentidos. Deu um avanço enorme à catequese e implantou todos os movimentos que surgiram no Século XIX na diocese do Algarve. Queria que os padres se actualizassem com frequência e fazia reciclagem ao clero. Para que o culto fosse imponente, organizou em todas as paróquias um grupo coral para animar as eucaristias dominicais. Leu os sinais dos tempos. Merecia uma homenagem no Algarve.

 

AE – Apesar da crise existente, o bispo algarvio incentivou para que todas as paróquias do Algarve distribuíssem mensalmente aos pobres, no dia 13, o «Pão de Santo António».

ACD – Sim, tal como os bodos aos pobres nas principais festas litúrgicas. Pelo Natal fazia-se também a distribuição de roupas. Uma página evangélica que a Igreja viveu apesar de tantas perseguições e insultos.

 

AE – Nos primeiros tempos da República, a dança dos nomes das ruas foi também uma constante e nem sempre se respeitou a memória do passado.

ACD – Com a implantação da República, uma das primeiras decisões das juntas revolucionárias e das câmaras municipais foi alterar a toponímia de terras e retirar das ruas as designações ligadas à Igreja. Só não tocaram nos cruzeiros. Foi uma ventania. D. António sofreu amargamente com a República devido à anarquia reinante. Em várias localidades teve de travar uma luta destemida para que a ordem pública fosse restabelecida e os Direitos Humanos fossem cumpridos.

LFS

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