Homilia do Cardeal-Patriarca na Vigília Pascal

“Estar em Vigília é viver da Esperança” 1. Estar em vigília é viver da esperança. Esta é o dinamismo que melhor define a vida do homem neste mundo. Nenhum momento da vida e da história pode ser considerado definitivo; a vida é uma busca e um caminho em ordem a um futuro que se deseja feliz e definitivo. Renunciar a esse futuro é desistir da vida. Viver é, necessariamente, estar na expectativa, construindo esse futuro na maneira como se vive o presente. Viver é desejar, escutar, acreditar, alimentar a esperança. Esta vigília, porque nos prepara para viver o ponto culminante e decisivo do homem e da história, em que o tempo atingiu a sua plenitude na morte e ressurreição de Cristo, é a síntese de todas as vigílias da humanidade, na relação do homem com o universo criado, na adesão a Deus e a um projecto de aliança na história da salvação, na identificação progressiva com Cristo morto e ressuscitado, até à plenitude escatológica. São três áreas da vida humana, cenário de uma longa caminhada na esperança, em que as atitudes fundamentais são sempre as mesmas, e são decisivas: desejar ir mais longe na conquista da vida; escutar, porque o homem caminha em comunidade, escutar sobretudo aqueles que nos falam em nome de Deus, porque a Palavra conduz a história; acreditar nessa Palavra, porque a confiança da fé é o fundamento da esperança. 2. O primeiro cenário desta longa vigília da humanidade, situa-se no campo da relação do homem com o universo criado. Se escutarmos a Palavra, ela diz-nos que Deus criou o homem e o universo que ele habita. O dogma da criação é a primeira verdade da nossa fé. Não ver na beleza e na harmonia do universo a marca do poder e da sabedoria de Deus é inverter totalmente a base da compreensão que o homem pode ter de si mesmo e da sabedoria que o guia na construção da sua existência. A propósito dos 150 anos de Darwin, o autor da teoria da evolução como explicação do surgir do universo, está a procurar pôr de novo a ciência em confronto radical com a fé na criação, ressuscitando uma oposição, já completamente superada pela Teologia, entre evolucionismo e criacionismo. O campo da ciência é, a partir da realidade conhecida e dos elementos que ela fornece, avançar na compreensão da forma como se foi formando o universo; a fé, baseada na Palavra revelada, acredita que o dinamismo que originou e presidiu a essa maravilhosa harmonia do universo, é a sabedoria criadora de Deus. Aliás a fé na criação muito recebeu da ciência, que ajudou os crentes a não fazerem leituras simplistas dos textos sagrados. O que é que estes nos dizem? Que a formação do universo é um longo processo, a partir de um dinamismo original, que os textos identificam com a Palavra criadora; que o homem, único ser espiritual, é querido por Deus desde o início do processo e que todo o universo surgiu para ele e por causa dele. Como ser espiritual, o homem é imagem de Deus; como ser corpóreo, faz parte do universo cósmico. A vivência do espírito no corpo é o segredo do universo e anuncia a Encarnação do próprio Verbo eterno de Deus que se fez homem. Depois de ter criado o homem e a mulher, “Deus disse-lhes: sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do Céu e sobre todos os animais que se movem na terra” (Gén. 1,28). A relação do homem com o universo para o transformar na casa da família humana é uma longa vigília, que tanto é contemplação da beleza, como exaltação da epopeia e consciência do drama. É que toda a criação, no dizer de São Paulo, foi reduzida à escravidão pelo pecado do homem e anseia pela libertação (cf. Rom. 8). Nessa longa caminhada da esperança, os avanços positivos da ciência, os progressos da civilização que ensinaram o homem a fruir da beleza da criação, conviveram com egoísmos ferozes, que continuam a pôr em risco a própria harmonia do universo. Cristo, plenitude da criação, ajuda-nos a percorrer este caminho, iluminados pela esperança de que um dia surgirão “novos céus e uma nova terra”. A Liturgia desta noite faz-nos perceber que esta longa marcha em busca da harmonia definitiva do homem com o universo onde habita, se insere na história da salvação. Aliás o texto do Génesis sugere que, na medida em que a humanidade se insere num ritmo de salvação, deve fazer da criação e do ritmo em que foi formada, conduzida pela sabedoria de Deus, um hino de louvor. Toda a criação se torna linguagem da Liturgia do Povo de Deus. 3. A História da Salvação é o segundo cenário da longa vigília da humanidade, que a Liturgia desta noite celebra à luz do ponto Ómega de toda a evolução, Jesus Cristo ressuscitado. A caminhada da humanidade torna-se história, pois a sua verdade e o seu destino decidem-se, não apenas ao nível de cada indivíduo, mas ao ritmo da comunidade. É marcada, logo no início, pela rebeldia do homem, que se recusa a escutar a Palavra de Deus e escolhe o caminho da autonomia da sua liberdade. Essa ruptura marcará a história e a harmonia do homem com a criação. O Universo torna-se agreste: grandes catástrofes, como o dilúvio e a destruição de Sodoma e Gomorra, tornaram-se símbolos da desarmonia da natureza. Ao nível da comunidade humana, os principais problemas que simbolizam o drama da humanidade, são a violência, já patente quando Caím matou Abel, e a dificuldade de diálogo e de entendimento, expressa na confusão das línguas em Babel. Vencer o pecado, transformar a violência em amor e o desentendimento em comunhão, só Deus o pode fazer. Trata-se de voltar ao início, começar de novo, em que a verdade do homem brota da obediência a Deus que o criou. Começar de novo: Deus tentou-o com Noé, após o dilúvio; vai tentá-lo com Abraão, a quem propõe uma humanidade nova, um Povo novo, baseado na fé e na fidelidade a uma Aliança; há-de tentá-lo radicalmente em Jesus Cristo, com o novo Povo de Deus, depois de ter destruído, na Sua morte, toda a desobediência. É a longa caminhada da História da Salvação. As atitudes fundamentais continuam a ser as mesmas: desejar, escutar, acreditar, esperar. Escutar é agora, não apenas ouvir as palavras dos Profetas, mas reconhecer a intervenção de Deus na história, as acções de Deus em favor do Seu Povo. Essa será, até aos nossos tempos, uma linha de clivagem entre a humanidade: ou se acredita ou não se acredita que Deus é um Deus connosco, intervém na nossa vida, actua na nossa história. A grande exigência deste período da caminhada é a exigência da fé. Ela não é arbitrária, baseia-se solidamente na Palavra escutada e na experiência da salvação. Mas exige a humildade da razão, a renúncia à autonomia da liberdade, a coragem da confiança. É um caminho de pecado e de graça, de voltar à rebeldia do Éden e de persistência de Deus na Aliança e na misericórdia. O desejo é alimentado pela Palavra; a Palavra encarna no acontecimento; a fé é inspirada pela fidelidade de Deus; a esperança é a expectativa que Deus visite o Seu Povo. Tudo isso se orienta para a encarnação do Verbo de Deus, que na Sua Páscoa sela a aliança definitiva e inicia um novo Povo, um Povo de discípulos, que estando no tempo e na história, inaugura a plenitude do tempo definitivo. É essa passagem que celebramos esta noite. 4. Mas também esta etapa definitiva é uma vigília, uma longa caminhada de fidelidade a Jesus Cristo, conduzidos pelo Espírito. É um caminho de purificação e de redenção, é como nascer de novo, um refazer da relação do homem com a criação, uma correcção da autonomia da liberdade, o desafio de deixar morrer, para que a vida triunfe. A nova e definitiva aliança, este Povo de discípulos pode ratificá-la, sempre de novo, em cada Eucaristia que celebra. A Igreja, nem é ainda a harmonia definitiva, nem envolve toda a humanidade. É missão sua dar testemunho da libertação e atrair progressivamente a humanidade para a contemplação da Cruz de Cristo e do amor de Deus que ela exprime. Esta última etapa da vigília está bem significada na caminhada baptismal. Desejar e acreditar, é o início dessa caminhada, é força no caminho, é fundamento da esperança na vida em plenitude. Acreditar é, agora, mergulhar todo o nosso ser na fonte da vida, que é a Páscoa de Jesus, simbolizada no banho baptismal. Este mergulhar em Cristo é a aceitação sem limites que só podemos superar as feridas do pecado com a força criadora do Espírito de Deus. Quem mergulhar em Cristo aceita radicalmente que Deus intervém na nossa vida e na nossa história, e reconhece os modos e os momentos dessa intervenção de Deus. É por isso que o sacramento do Baptismo é a abertura a todos os outros sacramentos, momentos da acção de Deus na nossa vida, de que precisamos para sermos fiéis, para vencer a violência, a desunião e construirmos a fraternidade na comunhão. Neste caminho de fidelidade continua a ser decisivo desejar, escutar, acreditar, esperar. É por isso que toda a vida cristã é caminhada baptismal continuada, a última vigília da nossa vida e da história da humanidade, até que Deus volte a ser Deus para todos os homens, volte a “ser tudo em todos”, na expressão de Paulo e o Cordeiro Imaculado possa exclamar: “eis que fiz de novo todas as coisas”, inaugurando os “novos céus e a nova terra”. É esta última vigília da humanidade que estamos a viver e a celebrar nesta Noite Santa. 5. A humanidade percorreu todas estas etapas da sua longa vigília, iluminada pela luz, realidade da criação que melhor simboliza a beleza desta relação fontal da humanidade com Deus. Logo no início Deus disse: “faça-se a luz” e a luz venceu as trevas. O Povo de Israel, na sua caminhada no deserto é iluminado pela coluna de fogo e o Messias prometido é anunciado como luz das nações. Começámos esta celebração com a proclamação da luz, cuja fonte é Cristo ressuscitado, como grande protagonista da História da Salvação. Nós sabemos que ela pode iluminar a nossa vida: é luz da fé, é sentido da vida que irradia do amor, é fonte de sentido e princípio de discernimento e de interpretação da história. “Deus é luz e n’Ele não há trevas”. O termo desta longa vigília será, certamente, a epifania da Luz. Abramos todo o nosso ser à luz de Cristo, nesta Páscoa. Teremos a certeza de que, mesmo quando caminhamos na obscuridade, não caminhamos às escuras. E que para todos nós, quando terminarmos a nossa vigília terrena, brilhe a luz definitiva da eterna claridade, a luz de Deus. † JOSÉ, Cardeal-Patriarca

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