Homilia do Cardeal-Patriarca na Missa de Quarta-Feira de Cinzas

«Quaresma: a esperança da conversão» 1. Começa hoje a Quaresma, tempo de graça e de intensidade espiritual. É um tempo em que somos chamados a sentir e a exprimir a densidade da Páscoa e a dramaticidade da nossa conversão. No seu simbolismo de 40 dias, a Quaresma afirma-se como o tempo de Deus, o “Kairós”, o tempo da Sua graça. Não vale pela duração humana do calendário, mas pela realização do desígnio de Deus: pode significar um momento, toda a vida de cada um de nós, ou o tempo largo que abraça a história. Quarenta dias esteve Jesus no deserto e Moisés no Monte Oreb; quarenta anos peregrinou Israel no deserto. Em todos estes casos este tempo significa o “Kairós”, o tempo de Deus, o momento em que Ele se cruza connosco, manifestando em nós a Sua glória. A Igreja tem uma longa experiência deste tempo de graça, pois aprofundou ao longo dos séculos a sua compreensão. Da parte de Deus, ele é tempo de graça, através da Sua Palavra que dirige ao Povo e manifestando em acontecimentos de salvação, essa gesta maravilhosa de Deus em favor do Seu Povo. Da nossa parte, ele é tempo de conversão, atitude de quem não recusa o dom de Deus e aceita o confronto com a Sua Palavra criadora, e a transformação do coração. É na conversão que este tempo se revela para nós tempo de graça. 2. É por isso que a conversão ocupa o lugar central na espiritualidade da Quaresma. Antes de mais, no convite insistente da Palavra de Deus à conversão. Temos na Liturgia de hoje dois exemplos impressionantes do convite à conversão. O do Profeta Joel: “voltai para mim de todo o coração”; e o do Apóstolo Paulo: “Nós vo-lo pedimos por amor de Cristo: reconciliai-vos com Deus”. São apelos veementes que exprimem a intensidade e a urgência de Deus em nos salvar. Aqueles de nós que não fecharmos os ouvidos e o coração, vamos ouvir continuamente, durante estes quarenta dias, este apelo de Deus. A própria morte de Cristo na Cruz é o último grito de Deus a convidar-nos à conversão. Mas a este apelo deve corresponder o nosso desejo de conversão e a esperança da salvação, na sua fase presente, naquele “Kairós”, em que escutarmos a Palavra de Deus e nos dispusermos a que Deus mude a nossa vida. A maior parte dos nossos contemporâneos, fruto da cultura ambiente actual, não desejam a conversão. O homem moderno é um homem convencido, está contente com o que é, e, se pede mudanças de vida, é nos outros e não em si próprios. Contra esta atitude esbarra a Palavra de Deus como água a bater na rocha. Só os que desejam a conversão a podem esperar como dom de Deus. E esses, deveriam ser todos os cristãos: a esperança da conversão é a força que os abrirá a este tempo favorável. A esperança é uma abertura confiante à acção de Deus, é expressão, ainda que incompleta, da caridade. 3. Para aqueles que a desejam, esperar a conversão é, antes de mais, saberem que a mudança de vida que desejam não é o fruto da sua vontade e decisão humanas, mas da acção de Deus na sua vida. Supõe a sabedoria humilde de não desperdiçar os dons da graça, aqueles momentos e meios através dos quais Deus transforma o nosso coração: a Palavra de Deus escutada como Palavra de amor e fonte de vida; os sacramentos nos quais, através da palavra da Igreja, se renova a gesta da criação, manifestação do poder criador da Palavra; a oração enquanto desejo e abertura confiante a essa acção de Deus; a esmola como sinal de que a caridade é já o dinamismo que conduz a nossa vida e inspira as nossas opções. Todos estes meios são humildes, são concretizações do silêncio de Deus. Nós queremos mudar de vida, não para nossa honra pessoal, mas para glória de Deus e triunfo da caridade. A humildade sublinha a autenticidade do nosso desejo de conversão. Vão nessa linha os ensinamentos de Jesus no Evangelho que escutámos: “tomai cuidado em não fazer diante dos homens a vossa prática religiosa para serdes vistos por eles (…) Ao dares esmola, não toques a trombeta diante de ti (…); quando rezardes, não sejais como as pessoas fingidas (…); e quando jejuardes não tomeis um ar sombrio, como as pessoas fingidas (…)”. No tempo de Jesus, como hoje, a sociedade estava cheia de vaidades, em que o primeiro efeito das atitudes que se tomam é gerar boa impressão a nosso respeito naqueles que as vêem. A verdadeira esperança da conversão tem a humildade de quem precisa, a confiança de quem implora, a alegria espiritual de quem confia. 4. Para alimentar o desejo e a esperança da conversão, o Papa Bento XVI propôs, este ano, à Igreja, a redescoberta do sentido do jejum, lembrando-nos, no entanto, que ele é indesligável da oração e da esmola. As concretizações do jejum, como prática penitencial, que estão presentes na nossa memória são aquelas que herdámos de uma longa tradição: experimentar a fome do corpo para poder sentir a fome do espírito; renunciar a luxos e a prazeres físicos, tantas vezes ligados à comida, para nos abrirmos aos valores do espírito. Sem negar nenhum destes aspectos, que mantêm grande actualidade, temos de enriquecer a prática do jejum no contexto das actuais exigências da caridade: privar-se e renunciar, para distribuir; experimentar a modéstia, para dominar a nossa vaidade; ser pobre para poder perceber e acolher muitos dos nossos irmãos. No momento que estamos a atravessar aumentam, em cada dia, as exigências da partilha. Renunciar para distribuir tem de ser a regra do nosso jejum, nunca esquecendo o conselho do Senhor: que a tua mão esquerda não saiba o que faz a mão direita. Temos assistido à exuberância do anúncio das medidas financeiras, económicas, sociais, para responder à crise. É compreensível porque o anúncio de medidas correctas pode suscitar a esperança. Já me foi perguntado se a Igreja, com uma longa experiência de ajuda fraterna e social, não vai anunciar a sua estratégia, a sua maneira de responder à crise. “Que a tua mão esquerda não saiba o que faz a direita!”. Para além das respostas estruturadas, públicas por natureza, este momento exige a ajuda silenciosa, discreta, de pessoa para pessoa, de vizinho para vizinho, na intimidade das comunidades. Não está ao nosso alcance resolver os grandes problemas. Mas devemos acolher com amor, ajudar em tudo o que pudermos, porventura orientando as pessoas para outra fonte de solução. E aí, renunciar para partilhar pode ser manifestação da nossa esperança de conversão. Sé Patriarcal, 25 de Fevereiro de 2009 † JOSÉ, Cardeal-Patriarca

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