“Eucaristia: símbolo e realidade”
1. Não é por acaso que a morte de Jesus acontece na preparação da Páscoa Judaica. A ordem do Senhor a Moisés era clara: “Esse dia será para vós uma data memorável, que haveis de celebrar com uma festa em honra do Senhor.
Festejá-la-eis de geração em geração, como instituição perpétua” (Ex. 12, 13-14). Jesus não podia, apesar da densidade que estava a viver, deixar de celebrar a Páscoa com os discípulos.
Mas só Ele sabia que aquela Páscoa era a primeira da etapa definitiva da humanidade. Em Cristo o tempo atingiu a sua plenitude. Quer se goste ou não, a história da humanidade e a do próprio Povo de Deus tem um antes e um depois. Cristo encerra um tempo e abre um tempo novo.
Antes de Cristo toda a longa caminhada do Povo de Deus é um anúncio, uma preparação, o suscitar da esperança, o anunciar um futuro que só Deus conhece. Cristo é a realidade definitiva, todas as promessas se cumprem n’Ele.
Então, acaba a promessa? Não. Ele é a promessa, já realizada e sempre a realizar na medida em que O seguirmos e nos identificamos com Ele, com a Sua Páscoa.
2. Há um aspeto, hoje muito presente nesta celebração da Ceia do Senhor, que é a relação entre símbolo e realidade. Os símbolos sempre existiram na linguagem do Antigo Testamento, como promessa, anunciando o futuro: o cordeiro pascal, o sinal do sangue que liberta, o pão ázimo, alimento de um povo peregrino, a oferta das primícias, o bode carregado dos pecados do povo, etc.
É impossível ler a Sagrada Escritura sem estar atento a esta linguagem simbólica. Mas no Antigo Testamento os símbolos não comunicam toda a realidade que anunciam; eles são promessa de algo que só Deus conhece.
Naquela Ceia Pascal estão presentes os símbolos litúrgicos da ceia pascal judaica: o cordeiro pascal, o pão repartido, a taça de vinho partilhada em sinal de comunhão na esperança. Mas dá-se algo de completamente novo e inesperado nesta linguagem dos símbolos: eles tornam presente realisticamente a realidade que anunciam.
Naquela noite, este realismo dos símbolos só o Senhor o conhece e vive intensamente. E não é figura de estilo: naquela ceia pascal Jesus está já a viver a Sua entrega total para a salvação do mundo.
Há símbolos? Sim! Ele é o novo Cordeiro Pascal, aquele pão partilhado é o seu Corpo oferecido por nós, aquela taça de vinho é o seu Sangue derramado por nós. Ele não esqueceu a profecia do êxodo: “O sangue será para vós um sinal”.
Quando o símbolo daquele pão se torna na realidade do seu Corpo, entregue por nós, é possível, a partir daquela Páscoa, comer o novo Cordeiro Pascal. Quando aquela taça de vinho se tornou no seu Sangue, é possível, em cada dia da nossa vida, perceber que o Sangue é para nós um sinal da salvação. Cristo vive naquela Ceia toda a densidade da Sua entrega.
Quando os homens decidem matá-l’O, Ele já tinha vivido a Sua morte, ao oferecer a vida por nós. Na Eucaristia a realidade não se afirma na verificação lógica, mas na densidade da significação simbólica em que o símbolo se torna realidade.
3. O Evangelho narra-nos um gesto de Jesus durante aquela Ceia Pascal com os seus discípulos que explicita a realidade totalmente presente nos símbolos: a Eucaristia será sempre o momento do amor radical de Jesus pela Sua Igreja e pela humanidade, e quando a Igreja a celebra é convidada a amar como Jesus amou. A atualidade do amor redentor é sempre o desafio de cada Eucaristia.
O símbolo: as libações rituais. Antes de oferecer um sacrifício no templo, antes de uma refeição festiva. As libações, além de serem necessidade física, anunciavam algo de futuro: só se pode louvar a Deus e participar na fraternidade de uma refeição, estando limpos.
A pureza legal anunciava a pureza radical do homem novo. No templo havia estruturas permanentes para essas libações. Numa casa de família o dono da casa que recebia preparava essas estruturas necessárias para que os convidados pudessem purificar-se antes de entrarem no convívio.
Mas não era o dono da casa que lavava os pés aos convidados. A verdade radical do símbolo: a Eucaristia como convívio exige uma pureza da ordem nova da redenção, e só Cristo, através do seu Espírito de amor, a pode realizar.
Naquele dia, em que a realidade da Eucaristia está toda significada nos símbolos, só Cristo podia lavar os pés aos discípulos. Nesse gesto Ele exprime a radicalidade do Seu amor redentor: “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim” (Jo. 13,1). Jesus sabia que tinha chegado a sua hora; aquela radicalidade é a do seu amor redentor.
Participar na Ceia Pascal, com Cristo, é deixar-se devorar por esse amor. Em cada Eucaristia o mundo é redimido por esse amor radical, de Cristo e daqueles que, com Ele, celebram a Páscoa.
A novidade do gesto significa a novidade da participação dos discípulos no amor redentor de Cristo: “Dei-vos o exemplo, para que, assim como Eu fiz, vós façais também” (Jo. 13,15). Em cada Eucaristia a Igreja que celebra, se se deixou purificar, realiza em união com Cristo, a redenção do mundo.
Sé Patriarcal, 28 de março de 2013
D. José Policarpo, cardeal-patriarca de Lisboa