Homilia do cardeal-patriarca na Celebração da Paixão do Senhor

Ser da verdade, para ser de verdade

«Disse-Lhe Pilatos: “Então, Tu és rei?” Jesus respondeu-lhe: “É como dizes: sou rei. Para isso nasci e vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz”.»

Um diálogo tão rápido, como este entre Pilatos e Jesus, caríssimos irmãos, é o segredo da nossa presença aqui, quase dois milénios depois. Da nossa presença aqui, quando podemos celebrar em boa paz e bom espaço a Paixão do Senhor.

Mas também – e com maior realismo ainda – a mesma celebração noutros espaços por esse mundo além, entre guerras e destruições, imensas tristezas e grandes abandonos. Tenhamos isto bem presente, e aos irmãos que aí mesmo ouvem hoje a Paixão do Senhor e nela reveem as suas próprias vidas. Assim também os nossos irmãos dos Lugares santificados pela presença terrena de Cristo, a cuja manutenção se destina a coleta deste dia. Todos estamos e queremos estar na verdade de Cristo, escutando a sua voz.

Expressão original e muito sua, que importa reter. É típica do Quarto Evangelho, como no trecho que ouvimos. Jesus veio ao mundo «a fim de dar testemunho da verdade». Modo de dizer que a verdade reside nele mesmo, como se manifesta e afirma.

A verdade do império que Pilatos figurava impunha-se pela força das armas. A verdade que Jesus testificava era a da sua própria pessoa e da adesão ao que dizia e fazia. Precisamente a que nos reúne agora aqui,  sem qualquer coação e em plena consciência. Em plena consciência, ou seja, no que mais intimamente sentimos e sabemos, e por isso mesmo somos: «Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz.» Para o evangelista João, a verdade subsiste em Jesus Cristo, no que diz e testemunha, tudo sendo expressão de Deus.

 

Aprofundemos um pouco mais estas palavras, pois traduzem a substância da nossa fé. Aprofundemo-las com a mente, mas sobretudo com o coração. Sintamo-las, para percebermos que Reino é o seu, como nos mantém vitoriosamente consigo, como estamos agora e como estaremos sempre, aconteça o que acontecer…

Noutro passo do mesmo Evangelho, Jesus compara-se a um pastor cuja voz reconhecemos e assim nos chama e reúne em seu redor: «As minhas ovelhas escutam a minha voz: Eu conheço-as e elas seguem-me. Dou-lhes a vida eterna, e nem elas hão de perecer jamais, nem ninguém as arrancará da minha mão. O que o meu Pai me deu vale mais que tudo e ninguém o pode arrancar da mão do Pai. Eu e o Pai somos Um» (Jo 10, 27-30).

Trecho de suma importância para percebermos o que se passa connosco e há de passar com muitos mais, em termos de realeza de Cristo. Porque escutamos a sua voz. Escutamo-la, de facto, pois nos ressoa diferente de todas as outras, mais decisiva e profunda. Na receção da Constituição Sinodal de Lisboa, como estamos a fazer neste ano, insistimos na Palavra de Deus como “lugar onde nasce a fé” (CSL, 38) – maneira de dizer com São Paulo que «a fé surge da pregação, e a pregação surge pela palavra de Cristo» (Rm 10, 17).

Ouvida em casa, quando tivemos a graça de nascer numa família realmente cristã; ouvida na catequese e nas celebrações comunitárias; ouvida de algum amigo que verdadeiramente o foi; lida nas Escrituras que as primeiras gerações cristãs nos deixaram… A palavra de Cristo, e o próprio Cristo como Palavra de Deus, inteiramente dita e feita, tomou-nos conta do coração, esclareceu-nos a inteligência e determinou-nos a vontade. Somos seus, inteiramente seus, definitivamente seus. E ninguém nos arranca de ao pé da sua Cruz, onde divisamos todas as cruzes deste mundo, mas também o fulgor da sua vitória sobre a morte e todo o tipo de morte.

Radica também aqui a liberdade cristã. Venha o que vier, estamos seguros em Cristo, qual “mão” que o Pai nos estende. Escutamo-lo atentamente, como seus discípulos. Aprendemos sobretudo que a liberdade ganha-se com Deus, que é tudo, e não sozinhos, que seríamos nada.

A Palavra que Deus nos dirige em Cristo é tão perfeita comunhão que até da morte faz vida. Como a sua Cruz, que tanto nos eleva para o Pai como nos alarga a todos. Sendo isto mesmo a liberdade perfeita, sem cativeiros de alma que nos detenham a entrega. Noutro passo do Quarto Evangelho, diz-nos assim: «Se permanecerdes fiéis à minha mensagem, sereis verdadeiramente meus discípulos, conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres» (Jo 8, 31-32).

O mundo em que vivemos está tão cheio de palavras e contrapalavras, tão denso de figuras e contrafiguras, que dificilmente nos agarra já, para além dalgum alvoroço imediato. No entanto, nós estamos hoje aqui, como muitos por esse mundo além, celebrando a Paixão de Cristo, transmitida por palavras antigas que não perderam vigor e figurada numa simples Cruz, como a adoraremos de seguida. Como Ele próprio anunciara: «Quando tiverdes erguido ao alto o Filho do Homem, então ficareis a saber que Eu sou» (Jo 8, 28). E ainda: «Eu, quando for erguido da terra, atrairei todos a mim» (Jo 12, 32).

– Que verdade tão grande, esta que aqui nos certifica, de corpo e alma rendidos ao mistério da Cruz do Senhor. Nela nos sentimos salvos, porque nenhuma esperança e nenhum sofrimento ficaram de fora da Paixão de Cristo. Tudo inteiramente connosco, tudo inteiramente com Deus, tudo inteiramente salvo. Nele já e em nós em esperança, que é verdade garantida.

 

A concentração desta tarde na Cruz do Senhor não é obra nossa, mas unicamente de Deus Pai que, pelo Espírito, nos fixa em Jesus. Como também disse: «Ninguém pode vir a mim, se isso não lhe for concedido pelo Pai» (Jo 6, 65). Reconheçamos agora e agradeçamos sempre o impulso divino que nos traz aqui, junto de Cristo e da sua Cruz, trono do Reino e centro do mundo.

Para que também na Cruz de Cristo divisemos a cruz do mundo, em tudo quanto nos faz sofrer – a nós e aos outros. Aí mesmo onde Cristo nos espera, para ser reconhecido e servido. Realmente, se dentro em pouco O vamos adorar aqui, é para depois continuarmos a adorá-lo e a servi-lo em quem sofra neste mundo de todos os dias, locais e circunstâncias.

Por isso nos diz ainda São João, na sua primeira epístola: «Não amemos com palavras nem com a boca, mas com obras e com verdade. Por isso conheceremos que somos da verdade e, na sua presença, sentir-se-á tranquilo o nosso coração» (1 Jo 3, 18-19).

A verdade é mais do que a simples adequação da mente ao objeto. É objetivar na vida e na convivência atenta e solidária a religião da Cruz que nos salvou. Para sermos da verdade e para de verdade o sermos sempre.

Sé de Lisboa, 30 de março de 2018

D. Manuel Clemente, cardeal-patriarca de Lisboa

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