Homilia do cardeal-patriarca de Lisboa no Domingo da Santíssima Trindade e Dia da Igreja Diocesana

“A Igreja criada à Imagem de Deus”

  

Homilia na Solenidade da Santíssima Trindade

Dia da Igreja Diocesana

Casa do Gaiato do Tojal, 3 de junho de 2012

 

1. Celebramos, hoje, o Dia da Igreja Diocesana. Não é uma festa litúrgica, mas a celebração da nossa realidade de Igreja particular, onde se vive a plenitude do mistério da Igreja, Povo do Senhor. Não sendo uma festa litúrgica, celebramo-la ao ritmo da Liturgia que, no percurso de um ano, leva a Igreja a celebrar o mistério de Cristo, Filho de Deus feito Homem e nosso Redentor, que nos fala do Pai com a densidade da sua experiência pessoal de Filho, a cuja dignidade nos elevou ao redimir-nos e ao comunicar-nos o Espírito Santo, Espírito de adoção filial que nos permite, no mais íntimo do nosso coração, chamar a Deus, com ternura, nosso Pai. O dom do Espírito Santo e a revelação da nossa adoção filial, faz-nos mergulhar no mistério de Deus, Trindade de Pessoas. A Igreja define-se pela sua união a Jesus Cristo que a introduz na intimidade da comunhão trinitária. Isso é claro para Jesus, é essa a Igreja que Ele quer. Antes de subir ao Céu, última expressão da sua missão de Filho de Deus feito homem, Jesus lança o grande desafio da Igreja: “Todo o poder me foi dado no Céu e na Terra. Ide e ensinai todas as nações, batizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (Mt. 28,19).

Esta compreensão da Igreja à luz do mistério da Santíssima Trindade tem dois mil anos. No momento em que nos preparamos para celebrar 50 anos da abertura do Concílio Ecuménico Vaticano II, na compreensão da Igreja que nos propõe essa relação da Igreja com o mistério da Santíssima Trindade é clara: “A Igreja Universal é um Povo que tira a sua unidade da unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (LG. nº4).

 

2. Para compreendermos esta relação da Igreja com o mistério da Santíssima Trindade, temos de recuperar, na fé, o desígnio de Deus ao criar o homem à sua Imagem. O mistério da Trindade, cuja revelação se completa em Jesus Cristo e no dom do Espírito Santo, sempre se explicitou na fé da Igreja como um só Deus, em três Pessoas iguais e distintas. Iguais na plenitude da divindade, diferentes na identidade pessoal e na maneira de interferir na história da salvação, um só no amor que os une.

Iguais e distintos, chamados a serem um só, é o sentido do homem criado à Imagem de Deus. “Deus criou o homem à sua Imagem, à Imagem de Deus o criou, homem e mulher os criou” (Gen. 1,27). Esta imagem de Deus, gravada no coração do homem, situa a sua realização nesse serem um só, apesar de diferentes. A primeira explicitação desta vocação humana concretiza-se no casal humano. Ser homem e mulher, iguais em dignidade, diferentes na sua identidade, chamados a serem um só, no amor e pelo amor, um dado constitutivo da dignidade do ser humano. Por isso a narração da criação acrescenta: “É por isso que o homem deixa o seu pai e a sua mãe e se une à sua mulher e torna-se um só” (Gen. 2,24).

Este desafio, é feito à humanidade desde o seu início, de, apesar de serem muitos e diferentes, serem um só em Deus e como Deus, e inspira o dinamismo da pedagogia divina da salvação. Deus escolhe um Povo e deseja que todos os membros desse Povo, apesar das suas diferenças, sejam um só, em Deus e para Deus. Ouvimos, na primeira Leitura, o autor do Deuteronómio maravilhado com esta escolha de Deus: “Qual foi o deus que formou para si uma nação no seio de outra nação (…) com mão forte e braço estendido, juntamente com tremendas maravilhas, como fez por nós o Senhor nosso Deus” (Deut. 4,34). Esta unidade de um só Povo, na diferença dos seus membros, é obra de Deus. A intervenção de Deus é mais necessária devido ao pecado; é uma intervenção redentora.

Só em Cristo este desígnio de Deus e a sua intervenção em ordem a esta unidade no amor atinge o seu auge, Ele o Filho de Deus e Homem como nós. Aqueles que pela fé se unem a Cristo, à sua morte e ressurreição, Ele próprio os conduz ao seio da Trindade, o Pai ama-os no mesmo ato de amor com que ama o Filho e, por isso, eles recebem o Espírito de amor. São esses que constituem a Igreja, que encontra a sua identidade na verdade do amor trinitário. Eles são muitos e diferentes, de todas as raças, culturas e línguas, mas são um só, em Cristo, que os mergulha no seio do Deus Uno e Trino. A unidade é uma qualidade essencial da Igreja, na imensa variedade dos seus membros.

A dimensão esponsal nunca deixou de inspirar a realização deste desígnio de Deus. Já no Antigo Testamento Deus se considera o Esposo do seu Povo. Cristo é o Esposo da Igreja e ama-a com amor esponsal. As próprias núpcias humanas ganham um sentido novo à luz destas núpcias da Igreja com Cristo, seu Esposo, as núpcias do Cordeiro. Ainda hoje o magistério da Igreja considera a família cristã como a concretização base da Igreja: ela é a “Igreja doméstica”.

 

3. No Dia da Igreja Diocesana, temos de perceber a Igreja que queremos ser e construir à luz deste mistério. Só devemos construir a Igreja que Deus quer e como Ele a inaugurou no mistério de Cristo. A Visita Pastoral que hoje encerramos teve essa finalidade: ajudar as comunidades cristãs desta Vigararia a aprofundarem o ritmo desta Igreja que Deus quer, no seio da Igreja diocesana. Recordemos, apenas, algumas coordenadas que devem inspirar a nossa vivência e missão eclesial:

3.1. A dimensão sobrenatural da Igreja. A Igreja é um mistério de fé. Desde o início que as formas de profissão da fé católica incluem a fé na Igreja: “Creio na Santa Igreja”. Da fé da Igreja sempre fez parte a Igreja acreditar em si mesma, no seu próprio mistério. Esta profissão de fé na Igreja deve inspirar o discernimento da verdade e dos caminhos da Igreja. Esta não pode ser julgada só com os critérios da análise humana, risco que se corre se absolutizarmos as análises sociológicas. Quem não olhar a Igreja, iluminado pela fé, nunca perceberá a Igreja.

3.2. O desafio da unidade na diversidade e na diferença. Graças a Deus hoje somos muitos e diferentes. Esta diversidade não é, apenas, a variedade das qualidades humanas, mas a riqueza de dons e carismas, expressos pessoalmente e na quantidade de movimentos que se organizam à volta desses carismas. É uma riqueza imensa, que só o Espírito Santo pode inspirar na Igreja, desde que todos sejam sensíveis ao principal dinamismo do Espírito, que todos sejam um só, como Cristo e o Pai são um só, no Espírito Santo. A unidade na diversidade é um grande desafio pastoral da Igreja contemporânea, que desafia a Igreja toda a  reconhecer a validade das diferenças e cada carisma organizado a não identificar a sua diferença com a totalidade da Igreja. Nenhum deles poderá dizer “nós somos Igreja”, mas sim, nós pertencemos à Igreja, fazendo do nosso carisma uma riqueza de toda a Igreja. E nunca podemos esquecer que esta unidade é qualidade constitutiva da verdade da Igreja, da Igreja que Deus quer.

3.3. A Igreja é obra do Espírito Santo. Esta maravilha de um Povo com as dimensões da Igreja, que tem como missão alarga-la a toda a humanidade, é obra do Espírito Santo, fecundidade da Páscoa de Cristo. Devemos pôr o melhor de nós mesmos nesta edificação da Igreja, mas nunca pensemos que a Igreja é fruto das nossas potencialidades humanas, da nossa organização, da nossa persistência. Devemos desejar que seja o Espírito Santo a inspirar-nos a nossa maneira de estar e de agir. Vivemos num mundo marcado pela eficácia humana; devemos desejar humildemente que a nossa eficácia seja fruto da força criadora do Espírito de Deus. Só assim a Igreja será o Povo que dá à Santíssima Trindade o louvor que lhe é devido, em uníssono com os Santos que já estão no Céu. Só assim a Igreja seria um Povo Sacerdotal.

3.4. O dinamismo da Igreja é a força da fé. O Santo Padre proclamou um Ano da Fé, para que toda a Igreja aprofunde esta centralidade decisiva da fé em Jesus Cristo. A fé é a porta por onde se entra na construção desta etapa definitiva da humanidade. Cristo declarou-se a Si Mesmo a porta: “Eu sou a Porta”. A fé é a porta por onde se entra nesta aventura decisiva de vivermos a vida com Cristo, de querermos ser, hoje e sempre, aqueles homens e mulheres que Deus criou à sua Imagem. Atravessemos esta porta com confiança; não olhemos para trás. Do outro lado está o mundo com os seus atrativos e com a sua interpretação da realidade humana. Ao entrar pela Porta da Fé, encetemos um longo caminho, que nos conduz à vida, a esta alegria de sermos um Povo que o Senhor reúne na unidade do amor e que anuncia o destino definitivo da humanidade.

 

† JOSÉ, Cardeal-Patriarca

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