Homilia do cardeal-patriarca de Lisboa na Missa Crismal

Jesus Cristo é o Sumo Sacerdote da Nova Aliança”

 

1. Continuamos o desafio por mim proposto no Domingo de Ramos: através da Liturgia da Semana Santa, conhecer melhor Jesus, na sua pessoa e na sua missão. Nesse primeiro dia, meditámos na sua realeza messiânica, que atingiu, com a ressurreição, a verdadeira Senhoria de Deus. Cristo é Senhor. Uma outra expressão desta senhoria de Jesus Cristo é a sua afirmação como Sumo Sacerdote da Nova Aliança. O seu sacerdócio afirma-O como redentor, como realização plena e definitiva de todo o sacerdócio da antiga Aliança.

Em Quinta-Feira Santa, celebramos a afirmação do sacerdócio de Cristo, expresso no ato supremo do novo culto: a Eucaristia. A Carta aos Hebreus desenvolve esta novidade do sacerdócio de Cristo e do novo culto inaugurado por Ele, quer na última Ceia, quer na oferta de Si mesmo em sacrifício. Depois da Ceia, Jesus proclama os hinos de ação de graças. São João comunica-nos, sob a forma de oração, essa ação de graças. Os exegetas chamaram-lhe a “oração sacerdotal”, porque a sua estrutura é a da oração do Sumo Sacerdote, na festa da expiação (Yom Kippur) (cf. Lev. 16). Jesus assume-se como o Sumo Sacerdote. “A oração de Jesus manifesta-o como o Sumo Sacerdote do grande dia da expiação. A sua Cruz e a sua elevação constituem o dia da expiação do mundo, no qual a história inteira do mundo, contra toda a culpa humana e todas as suas destruições, encontra o seu sentido, é introduzida na sua verdadeira finalidade e no seu destino”[1]. Nesta oração do novo Sumo Sacerdote, respira-se a novidade do sacerdócio de Cristo e do próprio sacerdócio apostólico que o torna perene, na Igreja, até ao fim dos tempos. Nele descobrimos o mistério do nosso próprio sacerdócio.

2. Antes de mais, é anulado o culto antigo e inaugurado o novo culto. Os sacrifícios e holocaustos deixam de ter sentido. O que louva o Senhor é a interioridade do homem, a sua oferta na generosidade do coração. A Palavra é o elemento central deste novo culto: o culto em forma de Palavra, como diz São Paulo (cf. Rom. 12,1). Esta “palavra” não é simplesmente palavra; é a Palavra eterna de Deus, o seu Verbo encarnado, que se diz na totalidade e no silêncio da sua oferta. É uma Palavra tornada carne, é um corpo entregue, é sangue derramado. Como diz a Carta aos Hebreus para definir este novo culto: “Tu não quiseste sacrifício, nem oferenda, mas preparaste-Me um corpo” (He. 10,5). Como afirma Bento XVI, há uma conexão entre a oração sacerdotal de Jesus e a Eucaristia. De facto, “com a instituição da Eucaristia, Jesus transforma o seu ser morto em «palavra», na radicalidade do seu amor que se dá até à morte. Assim, Ele mesmo se torna templo. Sendo uma forma de concretização da autodoação de Jesus, a oração sacerdotal constitui o novo culto e está intimamente ligada à Eucaristia”[2]. Mais do que anular a liturgia sacerdotal do Antigo Testamento, trata-se de revelar a sua plenitude anunciada e a sua completa realização.

3. Porque o novo culto é Palavra, Jesus revela-lhes as suas potencialidades. Antes de mais faz-nos experimentar a vida eterna, abre-nos para a vida verdadeira. “Esta é a vida eterna: que te conheçam a Ti, único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo a quem Tu enviaste” (Jo. 17,3). O verdadeiro sentido do culto cristão é a abertura à vida verdadeira, é o dom da vida. Neste texto de São João, a expressão “vida eterna” não é apenas a vida depois da morte. É uma plenitude de vida que pode ser experimentada, já neste mundo, antes da morte. É próprio do discípulo de Jesus viver essa vida: “Quem crê em Mim, mesmo que tenha morrido, viverá. E todo aquele que vive e crê em Mim não morrerá para sempre” (Jo. 11,25-26). Esta vida nova é a oferta da Igreja em cada Eucaristia.

O caminho para esta vida é o conhecimento do Pai e do seu Filho Jesus Cristo. Mas a palavra conhecimento tem aqui o sentido bíblico: é comunhão e identificação com o que é conhecido. A vida eterna é comunhão, é uma experiência relacional de partilha na identidade do ser conhecido. Diz Bento XVI: “o homem encontra a vida quando se une Àquele que é, em Si mesmo, a vida (…). É a relação com Deus em Jesus Cristo que dá aquela vida que morte alguma é capaz de tirar”[3]. O nosso sacerdócio é um ministério de vida; estamos ao serviço dessa “vida eterna”, para que a Liturgia a que presidimos seja o “culto novo”, na centralidade da Palavra.

4. Jesus sabe, por experiência, que este novo culto, centrado na Palavra, supõe uma especial consagração para a missão. Jesus diz de Si mesmo: “Aquele a quem o Pai consagrou e enviou ao mundo” (Jo. 10,36). Jesus pede essa consagração para os discípulos: “Consagra-os na verdade. A tua Palavra é a verdade. Eu consagro-Me por eles, para que também eles sejam consagrados na verdade” (Jo. 17,17-19).

Ser consagrado, ser posto à parte, é ficar propriedade de Deus, completamente disponível para a sua vontade. A consagração é “a destinação de um homem a Deus e ao culto divino”[4]. A consagração de Jesus pelo Pai, significa que Ele, na sua humanidade, pertence completamente a Deus, para a realização do desígnio de salvação. Quando Jesus diz “Eu consagro-Me a mim mesmo” é a aceitação, sem limites, dessa identificação com o desígnio de Deus: assume a consagração para a missão, que é uma consagração para o sacrifício. Jesus pede ao Pai a consagração dos seus discípulos, que hão de continuá-l’O na missão e no sacrifício. Os que Ele escolhe devem pertencer completamente a Deus e unir-se a Ele na total disponibilidade para a missão. O sacerdote pertence totalmente a Jesus Cristo, identificado com Ele na total disponibilidade para a missão. É essa pertença radical a Jesus Cristo que os torna ministros do “novo culto”.

5. Na sua solene oração como Sumo Sacerdote, Jesus retoma o tema da revelação do Santo Nome de Deus. Ele tem consciência de ser o novo Moisés e o amor que O devora e O leva à Cruz é a nova sarça ardente. A Moisés, o santo Nome de Deus foi revelado: “Manifestei o Teu nome aos homens que do mundo me destes” (Jo. 17,6); dei-lhes a conhecer o Teu nome e dá-lo-ei a conhecer, para que o amor com que Me amastes esteja neles e Eu esteja neles” (Jo. 17,26).

O Nome de Deus revela Deus como Aquele que está presente no meio dos homens. É o mistério do “Deus connosco”. Não é a mesma coisa tentar falar do que Deus é, na transcendência do seu mistério, e reconhecê-l’O como “Deus connosco”, próximo de nós, interessado no nosso destino. Bento XVI diz: “O Nome de Deus é o próprio Deus como Aquele que se nos dá”[5]. Essa é a verdade de Jesus; Ele é o “Emanuel”, e por isso, na sua glorificação é-lhe atribuído o “Nome que está acima de todos os nomes” (cf. Fil. 2,9). Jesus Cristo é, Ele próprio, o Nome de Deus.

6. Finalmente nessa oração do grande Pontífice, o olhar de Cristo abraça todo o mundo e toda a história, porque esse é o cenário do Santo Nome de Deus. Jesus não reza só pelos discípulos, que estão ali com Ele, mas por todos “os que hão de crer em Mim, por meio da sua Palavra” (Jo. 17,20). Jesus reza pela Igreja de todos os tempos, toda ela consagrada para a missão e pede fervorosamente para ela o dom da unidade, não uma unidade qualquer, mas participação naquela unidade que exprime a comunhão trinitária. “Que sejam um, como Nós somos um (…) para que eles cheguem à perfeição da unidade e assim o mundo reconheça que Tu Me enviastes” (Jo. 17,22-23). Jesus tem consciência de que uma Igreja desunida não poderá levar os homens a acreditar em Cristo como O enviado do Pai.

O pecado desune, porque sublinha particularismos. Só a Santíssima Trindade nos pode unir. Duas Pessoas divinas, o Filho e o Espírito, envolvem continuamente o mundo no amor de Deus. O pecado da desunião é ameaça permanente; a construção da unidade é missão que não acaba. Que neste dia especial, todos nós, sacerdotes e fiéis, nos sintamos atraídos por essa unidade. Somos todos, cada um com a sua graça própria, ministros da unidade.

Sé Patriarcal, 21 de abril de 2011

D. José Policarpo, Cardeal-Patriarca

 

NOTAS:

1 Bento XVI, Jesus de Nazaré, vol. II, p. 73

2 Ibidem, p. 74

3 Ibidem, p. 78

4 Ibidem, p. 79

5 Ibidem, p. 83 

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