A Cruz do reino de Deus
Reunimo-nos à volta deste altar como os Apóstolos com Jesus na mesa do Cenáculo. A Cabeça, que é Cristo, e estes primeiros membros da Igreja fizeram-no em obediência ao preceituado a Moisés, como diz a primeira leitura: a celebração da ceia pascal à base do cordeiro ritualmente sacrificado, antevisão daquele que o Novo Testamento e a liturgia designam por Cordeiro de Deus, “sem mancha nem defeito”.
A primeira ceia pascal judaica celebrou-se para anunciar a intervenção libertadora de Deus: o Senhor iria retirar o seu povo do Egipto nessa mesma noite. Mas ordena-se que não se fique somente nesse momento e se projete para um futuro sem fim: “Esse dia será para vós uma data memorável, que haveis de celebrar com uma festa em honra do Senhor. Festejá-lo-eis de geração em geração, como instituição perpétua”. Não chega o antes nem o depois, mas requer-se o «todo» e o «sempre».
É o que acontece na primeira Eucaristia celebrada por Jesus em dia como o de hoje, na Quinta-feira Santa, quando ordenou os futuros celebrantes. Também aqui se recorda toda a história salvífica, desde as origens, traduzida em termos de aliança de Deus com a humanidade: o Corpo do Cordeiro de Deus que vai ser entregue como alimento de comunhão e o seu Sangue que selará uma “nova e eterna aliança”. Igualmente se apela ao futuro, até à consumação dos séculos ao ordenar-se: “Fazei isto em memória de mim”. E fez-se, faz-se e far-se-á. No amor e por amor, do qual Ele deu exemplo sublime ao abaixar-se para lavar os pés aos discípulos. Como fazem tantos e tantos sacerdotes da nossa e doutras Dioceses, a quem eu quero saudar e agradecer.
Há um dado que não pode passar despercebido. Ao longo da sua vida pública, Jesus anunciou o reino de Deus como espaço de fraternidade, alegria e de novos valores. Exemplificou-o nas parábolas como um grande banquete ao qual todos são chamados. Ele mesmo participou em refeições em casa de amigos e de convertidos para simbolizar a novidade, a universalidade e a gratuidade desse reino. Mas esta, a dita «última ceia», é a mais solene. Remete para um futuro de plenitude, quando o Reino se consumar na sua total grandeza, como garante o mesmo Senhor com uma frase que não passou desatenta aos evangelistas sinóticos, a ponto de os três a transcreverem: “Não beberei do fruto da videira até aquele dia em que o beba de novo no reino de Deus” (Mc 14, 25).
Que podemos dizer sobre este reino? Ao convidar os seus discípulos a unirem-se a Si –“Tomai e comei: isto é o meu Corpo. Tomai e bebei: este é o Cálice da nova e eterna aliança”- Jesus implica os discípulos no seu próprio destino: assimila-os a Si e transforma-os em Si. E isso compromete-os: a partir daquela hora, ser discípulo do Senhor supõe esperar o que Ele espera, fazer o que Ele faz e servir como Ele serve. O “Fazei isto em minha memória” é empenho de entrega e derramamento de sangue. É algo de tão elevado e difícil que só no Espírito do Ressuscitado se pode intentar. Por isso, no cânon III da Missa, depois da Consagração, pedimos que “O Espírito Santo faça de nós uma oferenda permanente”. Oferenda. Se não for pela força do Espírito, não nos configuramos com o Senhor no dom de Si mesmo.
O gesto do lava-pés é a imagem mais expressiva do que foi a sua vida. Tinha pregado aos discípulos: “O que quiser ser grande entre vós, faça-se servidor de todos” (Mt 20, 26). Agora, quer que fique bem gravado nas suas mentes que ser seguidor de Jesus supõe amar, total e completamente, com um amor de doação. Não com um amor idealizado, abstrato, mas com uma doação apaixonada, concreta, humilde, serviçal, carregada de atenção aos pormenores, discreta, universal.
É esta a condição que nos constitui a todos, homens e mulheres de fé e de união ao Senhor pelo Batismo, de forma tão íntima “como o ramo na videira”. Nós, os sacerdotes, ou somos imagem transparente deste amor misericordioso, crucificado de Deus, ou não atingimos o limiar da razão pela qual existimos. Deveríamos caracterizar-nos pela afabilidade, disponibilidade, generosidade, despendimento, zelo missionário, preocupação pelo bem de todos e cada um, misericórdia e sintonia de corações. Por carregar aos ombros a ovelha perdia ou ferida.
Mas não menos vós, caros leigos. Na família, vida social, trabalho e presença empenhada na Igreja e no mundo, também vós falhareis se não vos parecerdes com o Mestre no espírito de sacrifício, resistência anímica quando se encontra oposição, ternura familiar, diálogo que desarma os possíveis conflitos, testemunho de fé por obras e palavras, vivência da paz, altruísmo, dedicação aos pobres, desprendimento, espírito de sacrifício, esperança. Fundamentalmente, no empenho concreto nas diversas estruturas que edificam a Igreja e a sociedade: âmbito litúrgico, assistencial, catequético, mas também cultural, político, autárquico, gerador de uma nova economia solidária, de um jornalismo ético e estimulante, enfim, de uma intervenção naqueles setores que mais reclamam a presença dos valores e da fé.
Escreveu o Papa S. Leão Magno que “a participação do Corpo e Sangue de Cristo não faz outra coisa que não seja converter-nos no que recebemos”. Se recebemos Jesus, convertemo-nos em Jesus. Isto é: no seu modo de amar e de servir. A Eucaristia não é, portanto, um mero gozo íntimo, um simples deleite espiritual, um quietismo passivo e descomprometido. A Eucaristia começa no altar, mas consuma-se na rua e na sociedade, aí onde for necessário realizar um qualquer lava-pés.
O Espírito do Senhor nos ajude a compreendê-lo e a realizá-lo.
D. Manuel Linda
Bispo do Porto