Homilia do Bispo do Porto na Missa do Corpo de Deus

A Igreja celebra os principais acontecimentos da História da Salvação, centrada em Cristo, através de um calendário devidamente sistematizado e normalmente segundo um critério cronológico hierarquizado. E não deixa de realçar acontecimentos e mistérios que não pertencem a um lugar ou tempo determinado, mas abrangem, qualificam ou inspiram todo o tempo e calendário litúrgico. É o que acontece com a Solenidade do Corpo e Sangue de Cristo, pelo seu lugar e importância na Igreja Universal, nas Igrejas particulares, instituições ou templos que o tempo consagrou. E a história da Igreja em Portugal estabeleceu tais relações com esta devoção e práticas relacionadas que para nós a designação “Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo” traz à memória colectiva e suficientemente longa outras denominações já consagradas: Festa do Corpus Christi, festa do Corpo de Deus… Quando por isso o saudoso Papa João Paulo II veio ao nosso encontro com sugestões pastorais para o terceiro milénio, com a Carta Encíclica “Ecclesia de Eucharistia” (Quinta-feira Santa de 2003), com a Carta Apostólica “Mane nobiscum Domine” (7 de Outubro de 2004) e com o convite para celebrarmos o Ano da Eucaristia entre Outubro de 2004 e Outubro de 2005 (para nós será encerrado em 30 de Outubro), encontrou-nos em ávida receptividade e fortaleceu-nos com a solicitude de novas motivações: O Congresso Eucarístico Internacional no México (no início do Ano Eucarístico) e a Assembleia Ordinária do Sínodo dos Bispos, no próximo mês de Outubro, que vai ocupar-se do seguinte tema: “A Eucaristia fonte e ápice da vida e da missão da Igreja”. Pelo meio acontecerá a Jornada Mundial da Juventude, em Colónia. Tinha a promessa da presença de João Paulo II. Está prometida já a presença de Bento XVI. No termo da viagem-peregrinação-provação no deserto, Moisés falou ao povo de Deus a quem pediu essencialmente que não perdesse a memória da protecção de Deus: “Recorda-te de todo o caminho… Atribulou-te e fez-te passar fome… mas deu-te a comer o maná que não conhecias… para te fazer compreender que o homem não vive só de pão… Não te esqueças do Senhor teu Deus… Foi Ele quem, da rocha dura, fez nascer água para ti e, no deserto, te deu a comer o maná, que teus pais não tinham conhecido” (Deut. 8, 2-16). À distância no tempo e na interpretação autêntica da revelação divina progressiva, a Igreja ensina: “A Missa é, ao mesmo tempo e inseparavelmente, o memorial sacrificial em que se perpetua o sacrifício da cruz e o banquete sagrado da comunhão do corpo e sangue do Senhor” (Catec. da Igreja Católica, 1382. cf. Ecc. de Euc. nº 12). O maná do deserto foi dom de Deus para não esquecer, para recordar. A Eucaristia é o dom por excelência que Cristo nos deixou: da Sua Pessoa na humanidade sagrada, e também da sua obra de salvação. O sacrifício de Cristo na cruz aplica aos homens de hoje “a reconciliação obtida de uma vez para sempre para a humanidade de todos os tempos” (Ecc. de Euc. nº 12). “O sacrifício de Cristo e o sacrifício da Eucaristia são um único sacrifício” (Cat. 1367). Mas a Páscoa de Cristo inclui paixão, morte e ressurreição. Estando vivo e ressuscitado, Cristo torna-se, é, “pão da vida” (Jo. 6,35.48), “pão vivo” (Jo. 6,51) na Eucaristia. Este pão vivo na Eucaristia chama-se presença real por excelência (é substancial, e por esta presença torna-se presente Cristo completo, Deus e homem” (Paulo VI, Myst. Fidei). Ele disse: “Assim como o Pai, que vive, Me enviou e Eu vivo pelo Pai, assim também o que Me come viverá por Mim” (Jo. 6,57). Sendo sacrifício (de uma vez para sempre), a Eucaristia é também banquete permanente, isto é, sempre disponível: “Em verdade, em verdade vos digo: Se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós” (Jo. 6,53). E perante a perplexidade dos discípulos, resistentes à aceitação destas palavras, Cristo insistia: “A minha carne é, em verdade, uma comida, e o meu sangue é, em verdade, uma bebida” (Jo. 6,55). Quando após a consagração o Celebrante proclama “mistério da fé”, os crentes respondem “Anunciamos, Senhor, a vossa morte, proclamamos a vossa ressurreição”. Esta fé que as gerações cristãs viveram ao longo dos século é a fé que continuamos a proclamar como mistério em que acreditamos e do qual damos testemunho explícito. É o Amen da fé que pronunciamos e vivemos quando comungamos o Corpo do Senhor “entregue” por nós, e o Sangue do Senhor “derramado” por nós. Quando terminamos a aclamação da fé após a Consagração, acrescentamos este pedido: “Vinde, Senhor Jesus”, o qual significa a “tensão escatológica” da celebração eucarística. Quem se alimenta de Cristo na Eucaristia recebe na terra a vida divina, como primícia da vida futura em plenitude. E é nesta vida recebida (comungada) na Eucaristia que está o segredo da ressurreição futura: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna e Eu ressuscitá-lo-ei no último dia” (Jo. 6,54). Assim, “a tensão escatológica suscitada pela Eucaristia exprime e consolida a comunhão com a Igreja celeste” (Ec. de Eucharistia, nº 19), o que responsabiliza os fiéis neste mundo perante a pátria celeste, ao mesmo tempo que faz depender a bem-aventurança celeste dos gestos de fraternidade, caridade, humildade, espírito de serviço e compromisso para os que participam na Eucaristia. Compreende-se que a doutrina desenvolvida ao longo dos documentos eucarísticos do Papa João Paulo II possa ser sintetizada através de alguns enunciados emblemáticos: A Igreja vive da Eucaristia, porque Cristo disse: “Eu estarei sempre convosco, até o fim do mundo” (Mt. 28,20). Na Eucaristia Cristo está “com uma intensidade sem par”. Sacramento por excelência do mistério pascal, a Eucaristia está no centro da vida eclesial, é a fonte e centro de toda a vida cristã. Se os Apóstolos, os Doze, estiveram com Cristo na última Ceia, e aceitaram comer e beber o Corpo e o Sangue do Senhor, entraram pela primeira vez em comunhão sacramental com Ele. E é desta comunhão sacramental que desde então e até ao fim dos séculos a Igreja é edificada: “Fazei isto em memória de mim” (cf. Lc. 22,19). E “a incorporação em Cristo, realizada pelo Baptismo, renova-se e consolida-se continuamente através da participação no sacrifício eucarístico, sobretudo na sua forma plena que é a comunhão sacramental” (Ec. de Euc. nº 22). De vez em quando é necessário recordar, como Moisés no deserto e como Cristo no Cenáculo, que “o culto prestado à Eucaristia fora da Missa… está ligado intimamente com a celebração do sacrifício eucarístico” (Ec. de Euc. 25). Esta “presença real” de Cristo destina-se à comunhão, sacramental e espiritual, e os fiéis aprofundaram e desenvolveram ao longo do tempo a devoção e a prática da piedade eucarística em adoração a Jesus sacramentado, escondido no Sacrário ou exposto solenemente ou em procissão pelas ruas, cultivando intimamente “a arte da oração”. A Eucaristia e a Penitência (a Reconciliação) estão intimamente unidas. Há certamente devotos do sacrifício-sacramento da Eucaristia que não comungam, apesar da fé, pela relutância em se sujeitarem à confissão e reconciliação sacramental. Entraram numa espécie de devoção eucarística habitual e sem mais exigência. E há os que, embora devotos e eucaristicamente piedosos, não comungam por causa da disciplina da Igreja e das normas que afectam situações irregulares. E no entanto, a Igreja é comunhão, vive da Eucaristia que “cria comunhão e educa para a comunhão” (Ec. de Euc. nº 40). “Não é o cálice de bênção que abençoamos a comunhão com o Sangue de Cristo? Não é o pão que partimos a comunhão com o Corpo de Cristo? … Há um só pão… formamos um só corpo” (1 Cor. 10,16-17). No mistério eucarístico, Jesus edifica a Igreja como comunhão. A Eucaristia manifesta esta comunhão. O contexto em que se integra a realidade da comunhão é o mesmo do apelo à comunhão, da comunhão plena e da comunhão possível embora imperfeita, mas é também o problema da tensão gradual no tempo e nas situações concretas, e sobretudo o problema da tensão escatológica que acentua a pertinência da nossa comum exclamação contemplativa: Mistério da Fé! Mistério da fé, a Eucaristia é também mistério da luz; e começa por ser mistério da luz. Quando Cristo se lhe referia de modo ainda inicial e os Apóstolos pareciam desistir de entender, Pedro assume-se como porta-voz da fé dos outros Apóstolos e da Igreja de todos os tempos: “Senhor, para quem havemos nós de ir? Tu tens palavras de vida eterna” (Jo. 6,68). E aos discípulos de Emaús, sentados à mesa com o Senhor ressuscitado, abriram-se os olhos da inteligência pelo sinal da “fracção do pão”. E quando descobriram que eram protagonistas da Eucaristia que Jesus celebrava na sua presença, depois de O comungarem, partiram para a missão de O anunciar mais fortemente no interior da Igreja, e de transmitir a consciência de que Cristo é “sinal e instrumento” não só da união com Deus mas também da unidade de todo o género humano” (L.G. 1). Por esta universalidade, o cristão que participa na Eucaristia deve transformar-se em promotor de comunhão, de paz, de solidariedade, ao serviço dedicado daqueles que precisam, porque o Senhor morreu por todos, ressuscitou para todos, e ficou connosco na Eucaristia, isto é, ficou para se dar a todos na Eucaristia. Que assim seja! Porto, Igreja da Santíssima Trindade, 26 de Maio de 2005 D. Armindo Lopes Coelho, Bispo do Porto

Partilhar:
plugins premium WordPress
Scroll to Top