Homilia do Bispo do Porto na Missa da Ceia do Senhor

Assim é Deus, que reina servindo; assim são os outros, que servidos nos salvam… A Ceia do Senhor, celebração do seu sacrifício como “entrega” por nós ao Pai, constitui o cerne da tradição cristã, significando esta a recepção e a transmissão do testemunho primordial. Ouvimo-lo a S. Paulo: “Eu recebi do Senhor o que também vos transmiti: o Senhor Jesus […] tomou o pão e, dando graças, partiu-o e disse: ‘Isto é o meu Corpo, entregue por vós. Fazei isto em memória de Mim’. Do mesmo modo […] tomou o cálice e disse: ‘Este cálice é a nova aliança no meu Sangue. Todas as vezes que o beberdes, fazei-o em memória de Mim’”. Tomando esta última frase, podemos resumir a vida da Igreja na recordação activa do que Jesus disse e fez, tudo resumido como “entrega”. Por isso Paulo acrescentava. “Todas as vezes que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, anunciareis a morte do Senhor, até que Ele venha”. Como se disséssemos: de há dois mil anos para cá, não fazemos outra coisa, enquanto cristãos, senão acolher Jesus na sua entrega e, comungando-a em conversão crescente, entregarmo-nos também com Ele ao Pai e ao mundo, para que nada fique fora deste sacrifício e ceia; para que toda a aventura humana e cósmica se possa finalmente interpretar e consumar no mesmo movimento e caridade. Então, a sua “vinda” se concluirá, como presença reconhecida e significado total das coisas. Nestes dias santificados, tudo é lembrando por palavras e gestos sacramentais. Palavras e gestos “sacramentais”, porque nos comunicam, de facto, o que lembram e representam. Cada momento final de Cristo quer finalizar-nos também a nós, em sentido cabal. Cada palavra de Cristo, cada reacção dos seus circunstantes “daquele tempo”, continuada nos que o somos agora, tudo condensado naquela Ceia, a que podemos chamar realmente última. Ultima-nos também a nós, que enquanto não nos alimentássemos de Cristo teríamos inevitavelmente fome. Estamos aqui porque o sabemos já: a totalidade de Cristo é-nos sacramentalmente oferecida. Estamos aqui, para que a nossa comunhão com Ele, tão agradecida e piedosa como convertida e responsável, cresça e se projecte no mundo e para a salvação do mundo, em autêntica mesa comum. Sabemo-lo bem, ou bem o vamos sabendo… Mas soube-o Deus primeiro, que nos criou para si e nos faz seus filhos, fazendo-nos participar pelo Espírito na vida do seu Filho único, Jesus Cristo. O realismo eucarístico revela-se exactamente aqui, na admirável coincidência que vão tendo com os sentimentos e as práticas de Cristo todos aqueles e aquelas que, recebendo-O piedosamente, de algum modo O “reproduzem” em todos os aspectos das suas vidas e empenhamentos. É um caminho certo e sabido, porque verificado nos Santos, qual catálogo vivo da caridade de Cristo, como se realizou em gente tão diversa no tempo e na mentalidade e que atingiu a mesma essencialidade que celebramos: receberam a “entrega” de Cristo, sacrifício e ceia, e participaram dela para o bem de todos. Sem sairmos da nossa Pátria e lembrando algumas beatificações mais recentes e uma canonização próxima, todas eucaristicamente referenciadas, que admiráveis foram os Pastorinhos de Fátima, que da Eucaristia receberam uma constante “entrega” pela conversão dos pecadores; ou Alexandrina de Balasar, que se resumiu em alimento eucarístico e no incansável atendimento de quantos lhe pediam oração e conselho; ou Nun’Álvares, cuja constante devoção à Santa Missa lhe revelou que os primeiros são os últimos e fez passar de grande senhor do reino ao mais humilde e esmoler dos frades. O Cristianismo não é um “moralismo” seco, qual conjunto de regras de vida esforçada, que quase valessem por si mesmas. Incluindo certamente tudo o que a humanidade foi apurando de razoável e oportuno para o comportamento pessoal e a boa convivência social, preenche-o com a vida de Cristo, que vai muito além da “conta, peso e medida” em que ficaríamos sem ela. “Amar como Cristo nos amou” é a verdadeira moral cristã, recebendo do Sacramento da “entrega” de Cristo a única força que a faz possível: a divina caridade. Sim, amados irmãos e irmãs, a Eucaristia não “compõe” as nossas vidas, qual mera coloração religiosa do que vá sucedendo. Nem marca apenas, aos Domingos e Dias Santos, uma agenda praticante, aliás indispensável. Ela é o ponto central e determinante da nossa vida inteira. Mais ainda: ela é a vida do cristão e, pelo cristão, do mundo. É a vida de Cristo, no Qual tudo ganha sentido como entrega ao Pai, levando consigo a criação inteira, na força do Espírito. De Cristo para o Pai no amor do Espírito, é o único caminho – como sacrifício e ceia – em que nos encontra(re)mos todos. Creio passar por aqui o próprio facto de mesmo escritores, artistas e compositores não praticantes e até não católicos encontrarem nos motivos eucarísticos inspiração, palavras e formas para as suas obras. De modo mais ou menos ortodoxo, vislumbram um encontro total… O que não tivesse sentido eucarístico nem seria de Cristo, nem seria de cristãos autênticos. Com toda a força da palavra, seria “insignificante” e mesmo absoluta perda de tempo. Mas, sendo tão axial e definitiva a Eucaristia, convém perguntar, amados irmãos e irmãs: – Que centralidade tem a Santa Missa, mesmo nos Domingos dos chamados “praticantes”? – Como a preparamos pessoalmente, nas famílias e nas comunidades? – Como a prolongamos em acção de graças e recordação viva? – Como guardamos e adoramos a Reserva Eucarística nos nossos templos? – E ainda, na própria celebração, com que atenção participamos, em que condições nos abeiramos da Comunhão, como nos mantemos depois, em louvor agradecido? A estas perguntas que devemos fazer-nos diante da divina entrega que hoje tão especialmente celebramos, e que todas se resumem afinal na seriedade e verdade da nossa relação com Cristo, juntam-se as necessárias consequências, para que a Ceia do Senhor se alargue ao mundo. As atitudes dos santos já lembrados, como da generalidade deles, do passado e do presente, evidenciaram bem o que a Eucaristia faz num coração crente, com a intensidade e a urgência com que serviram o próximo, ou melhor, com que se aproximaram de todos. Ficou-nos do Evangelho ouvido, quer o espanto de Pedro perante um Senhor que se dispunha a lavar-lhe os pés, quer a pergunta de Jesus, feita num plural que certamente nos inclui: “ – Compreendeis o que vos fiz?”. Responderemos imediatamente que sim… Mas talvez levemos uma vida inteira, por longa que seja, a passarmos da compreensão à prática cabal, comungando de Jesus a verdade da humildade e do serviço. Assim é Deus, que reina servindo; assim são os outros, que servidos nos salvam. Por isso, amados irmãos e irmãs, a Ceia do Senhor há-de abeirar-nos directamente das acrescidas necessidades dos nossos semelhantes, especialmente dos que mais atingidos forem por velhas e novas pobrezas e precariedades, de vida e de esperança. Que, pessoalmente e nas instituições caritativas, estejamos diante dos outros “como quem serve”. E demos graças a Deus Pai por assim nos associar à Ceia de Cristo no vínculo do Espírito, para chegarmos a todos. Agradeçamos, irmãos e irmãs, porque participar na caridade de Cristo é festejar a vida. Por isso mesmo a Eucaristia, recebida e partilhada como comunhão de vida e serviço, é sempre sacramento de alegria e de paz. Sé do Porto, 9 de Abril de 2009 + Manuel Clemente, Bispo do Porto

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