Homilia do bispo do Porto na Missa Crismal

Oração, para continuar em missão

 

Amados irmãos, muito especialmente caríssimos sacerdotes,

Missa crismal é esta, amados irmãos e irmãs, pois toda ela é obra do Espírito, só assim acesso à intenção de Deus e participação na obra de Jesus, o “ungido”.

Dedicámos um ano inteiro à Missão diocesana e talvez nos perguntemos agora: – Que fazer? Ou, mais precisamente, como havemos de continuá-la, aprofundando e alargando o que tenha resultado mais, segundo a avaliação feita?

Melhor perguntaremos ainda: – Como se hão de traduzir em nós, Igreja portucalense de 2011, as palavras de Jesus: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu para anunciar a boa nova aos pobres”?!

Há certamente ideias e sugestões, que serão proximamente oferecidas e compartilhadas. Mas, nesta circunstância feliz em que nos reunimos tantos e em tal variedade ministerial e carismática na igreja mãe da diocese, deixai-me sublinhar o que primeiro nos disse o aludido trecho evangélico.

Jesus leu aquele passo de Isaías, é certo. Como é certíssimo e fundamental que de seguida tenha identificado em si mesmo a profecia do Ungido, que se traduz por Messias e Cristo. Lembrando o “programa”, como o cumpriu à risca no tempo que se seguiu: anunciar a boa nova aos pobres, aos pobres de todas as pobrezas, salutares e desejáveis, ou injustas e insuportáveis.

E daqui poderíamos partir imediatamente, pois não faltam brechas a preencher e urgências a acudir. Tudo compreensível e justificável, certamente. Mas correndo o risco de ainda não ser completamente cristão.

Na verdade, o que escutámos não começava assim. Dizia antes:  “Segundo o seu costume, Jesus entrou na sinagoga a um  sábado…”. “Segundo o seu costume”, Jesus orava. Orava repetidamente e, ao sábado, comunitariamente. Depois leu a Palavra e, a seguir, decifrou-a e incarnou-a na força do Espírito, manifestando-se como Evangelho vivo.

É um percurso indispensável para todos nós, Igreja que peregrina na diocese do Porto, se nos quisermos garantir em Cristo para a salvação do mundo, próximo ou mais distante. Aprofundemos a nossa natureza orante, pessoal e comunitariamente orante. A evangelização é obra divina, passando através daqueles que, em Cristo e no Espírito, cumprem a vontade do Pai, que só no “coração” se comunica. Do coração de Deus, que se oferece, ao coração do mundo, que procura.

 

Não foi por acaso que, lançando a “nova evangelização”, o Papa João Paulo II, de abençoada memória, a sequenciou deste modo: “nova no ardor, nova nos métodos e nova nas expressões”. Nova no ardor, no impulso interior que só de Deus pode partir, no alcance e no âmbito que deve ganhar. Nova no ardor, como fogo inapagável da divina caridade; esse mesmo que abrasava o coração de Cristo e lhe urgia a ultimação da obra que o Pai dispusera: “Eu vim lançar fogo sobre a terra; e como gostaria que ele já se tivesse ateado!” (Lc 12, 49).

Vinte séculos de cristianismo nos demonstram à saciedade que as únicas vitórias do Evangelho foram sempre protagonizadas pelo amor de Deus, através dos corações que o seu “fogo” abrasou também.

-Há porventura algum momento apostólico e evangelizador de Jesus que não parta do amor do Pai e pelo Pai, que acabará por nos incandescer a todos, no ardor do Espírito?

A evangelização parte da prece, para ser legítima e garantida. E não precisamos de sair do 3.º Evangelho para o verificar sem margem de dúvida ou demora. – Perguntamo-nos tantas vezes sobre o modo e a capacidade de manifestarmos Jesus ao mundo, na verdade salutar que o seu nome já transporta (Jesus = Deus salva) … Mas é em oração que tal acontece, como primeiramente sucedeu no Jordão: “… tendo Jesus sido batizado também, e estando em oração, o Céu abriu-se e o Espírito desceu sobre Ele em forma corpórea, como uma pomba. E do céu veio uma voz. ‘Tu és o meu Filho muito amado; em ti pus o meu encanto’” (Lc 3. 21-22).

Irmãos caríssimos: Nenhum de nós se pode convencer a si mesmo e muito menos aos outros desta verdade essencial de Jesus, como Filho muito amado de Deus, sem a revelação divina que a oração ocasiona. Aprendamo-lo de vez, que já perdemos demasiado tempo, pois ainda sucede que “quem não junta com Cristo, dispersa…” (cf. Lc 11, 23).

E tudo o mais assim decorre. Podemos dizer que a oração – comunhão essencial com o Pai – era a vida de Jesus, tão profunda e permanente que a sua ação “exterior” só nela se fundava e dela extravasava. Como depois sucederá nos grandes contemplativos-ativos, assim com Jesus, como não deixa de assinalar São Lucas: “A sua fama espalhava-se cada vez mais, juntando-se grandes multidões para o servirem e para que os curasse de seus males. Mas Ele retirava-se para lugares solitários e aí se entregava à oração” (Lc 5, 15-16).

Não acontecia isto para “fugir” a tanta procura, mas precisamente para lhe responder a partir de Deus. Sabia-o bem e modernamente Teresa de Calcutá, que, assoberbada por crescentes trabalhos e dificuldades, imediatamente dispôs que todas alargassem de uma para duas horas o tempo de oração matutina… É exatamente por termos muito que fazer e inovar que precisamos de rezar muito mais e melhor, nós e as comunidades que servimos. A evangelização é obra divina e só em Deus é nova e criativa. – Deus, a permanente novidade do mundo!

 

E nós todos, os que na Igreja do Porto buscamos agora continuar a Missão, com renovada intensidade comunitária – paróquia a paróquia, vigararia a vigararia, instituto a instituto, movimento a movimento – teremos de seguir idêntico caminho, como o seguiu Jesus, sempre o “ungido” do Espírito, para cumprir a vontade do Pai e anunciar a boa nova aos pobres.

Verificamo-lo, por exemplo maior, quando decidiu partilhar com outros o divino envio, já em evangelização corresponsável. Tomou decisões e escolheu pessoas, certamente. Mas, ainda e sempre, a partir da oração, em constante “escuta” do Pai. Continua o evangelista: “Naqueles dias, Jesus foi para o monte fazer oração e passou a noite a orar a Deus. Quando nasceu o dia, convocou os discípulos e escolheu doze dentre eles, aos quais deu o nome de Apóstolos…” (Lc 6, 12-13).

Estas e outras passagens evidenciam sem margem para dúvidas a única fonte do apostolado cristão. Não se trata basicamente de fazer, mas de permanecer em Deus, cumprindo a sua vontade de criar e salvar a criação inteira, recuperando a humanidade de que ela depende e com quem sofre ou exulta; pois, como inspiradamente escreveu São Paulo, “a criação encontra-se em expectativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus” (Rm 8, 18).

Nas atuais e graves circunstâncias da ecologia natural, social e humana, estas palavras ganham redobrada urgência. Como discípulos de Cristo, recuperemos o ânimo para ir até ao fim na resposta a dar, em rendição absoluta à vontade do Pai, para que o horto da agonia se transmude em jardim reencontrado. Rendição absoluta que só pode ser acolhimento inteiro do Espírito do Ungido, que acompanharemos esta noite e tantas vezes: “Depois afastou-se deles, à distância de um tiro de pedra, aproximadamente; e, pondo-se de joelhos, começou a orar, dizendo: ‘Pai, se quiseres, afasta de mim este cálice; contudo não se faça a minha vontade, mas a tua’” (Lc 22, 41-43).

 

Amados irmãos e irmãs, e muito especialmente todos vós, caríssimos sacerdotes e demais responsáveis pelas comunidades cristãs da diocese, seculares, regulares ou laicais: a reflexão fez-se em torno de Jesus na sinagoga de Nazaré, onde sempre participava na oração comunitária. Aí mesmo se declarou ungido pelo Espírito, para “anunciar a boa nova aos pobres”. Pois bem, assim queremos estar nós agora, continuando em missão.

Da avaliação que fizemos à Missão 2010, resultaram apuramentos e urgências. Apurou-se especialmente o bom resultado de quanto foi ao encontro das pessoas, das Janeiras e Compassos, aos Frágeis e Fiéis Defuntos. Apurou-se com igual nota o respeitante à oração, do encontro com Taizé à grande manifestação mariana de maio. Ressaltaram urgências, em relação às famílias, aos jovens e à formação cristã em geral.

Deixai-me propor-vos que, a par do que se está a refletir e perspetivar nos órgãos centrais da diocese, também em cada uma das vossas comunidades se reze em conjunto, pedindo a Deus esclarecimento e ânimo para cumprir a sua vontade, para a evangelização – nova evangelização! – dos vossos meios particulares, em ações concretas do próximo ano pastoral.

Ações concretas, especialmente comunitárias e intercomunitárias, vicariais ou outras. – Porque não preparar, em cada um desses âmbitos, uma missão específica e situada, de zona ou setor? Pode pensar-se, por exemplo, em incidir à vez numa ou mais paróquias, continuando noutras e nos anos seguintes; ou num setor social ou cultural preciso, como o meio escolar ou laboral, ou a juventude, a família, os idosos e outros mais. Criando para tal equipas de trabalho, com representantes de paróquias, institutos e movimentos. Mas sempre e prioritariamente em grande persistência orante, pois só do coração de Deus brota criativamente a missão.

Como a nova evangelização agora, quando tanta perplexidade se abate sobre a nossa sociedade portucalense e portuguesa, em profunda crise social e económica, que é também cultural e espiritual. – Em cada comunidade cristã, unida ao coração pastoral de Cristo, está – tem necessariamente de estar – um princípio de reposta e a fermentação da esperança!

Nenhuma previsão nossa suprirá o que só Deus pode sugerir e não tocaremos o coração e a inteligência de ninguém se não formos transformados pela caridade e a sabedoria de Deus. Daqui sim, poderemos incansavelmente partir.  

Sé do Porto, 21 de abril de 2011

D. Manuel Clemente, Bispo do Porto

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