“Sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo para o Pai” (Jo 13,1)
Com a presente celebração, damos início ao Tríduo Pascal da morte, sepultura e ressurreição do Senhor. Celebramos a Páscoa de Jesus (quer dizer: o acontecimento da Páscoa que vem até nós para nos envolver, e iluminar a nossa existência); e celebramos a nossa Páscoa, e queremos fazê-lo com Jesus (quer dizer: na passagem deste mundo para o Pai que é a nossa vida, queremos que Jesus habite nela e caminhe connosco, para lhe dar o seu pleno sentido).
O significado da palavra “Páscoa” (que quer dizer “passagem”) é-nos oferecido pela Iª leitura que escutámos: “Comereis a toda a pressa: é a Páscoa do Senhor. Nessa mesma noite, passarei pela terra do Egipto e hei de ferir de morte, na terra do Egipto, todos os primogénitos, desde os homens até aos animais” (Ex 12,11-12). Deus, descrito como um guerreiro, passa e liberta o seu povo, não sem antes ferir de morte o Egipto, quer dizer: os deuses da morte e da opressão — tudo quanto pretende ser Deus e colocar-se no seu lugar, para oprimir e reduzir o povo à escravidão.
É em ambiente de celebração pascal (S. João di-lo expressamente, como escutámos: “Antes da festa da Páscoa” — Jo 13,1) que Jesus quer estar com “os seus”, antecipando de uma forma sacramental a sua passagem deste mundo para o Pai. Esta é a nova e definitiva Páscoa, de que a Páscoa do Antigo Testamento era imagem: em Jesus, Deus passa pela história humana, fazendo-a sua e assumindo-a até ao fim, derrubando as cadeias da morte e do inferno — destruindo o muro que nos separava dele — e deixando aberto, de um modo definitivo, o caminho que nos permite partilhar a sua vida divina.
A narração que acabámos de escutar, em que o evangelista S. João narra essa última refeição de Jesus com os seus, é dominada pelo gesto do lava-pés que, devido à presente situação sanitária, nos vemos obrigados a não realizar. Por isso, convido todos a que, ao menos, meditemos nele, ainda que tomando apenas alguns dos seus aspectos. Este gesto quase sacramental do lava-pés, verdadeiro ensinamento de Jesus feito sem palavras, mas que permaneceu gravado na memória e no coração da Igreja, como que interpreta a Instituição da Eucaristia, narrada pelos três evangelistas sinópticos.
A Páscoa, já o dissemos, é passagem libertadora de Deus pela história. Mas é, por isso, aniquilação de tudo quanto se opõe à Sua obra salvadora: no Antigo Testamento, aniquilação do Egipto; no Novo Testamento, derrota do mal que procura impor-se na vida dos homens. Quando Deus entra na história (na história da humanidade, na história de um qualquer grupo humano ou na história pessoal de alguém) nunca nos deixa como anteriormente. Mas aqui, porque nos encontramos no “vértice da história”, trata-se de algo ainda mais radical e profundo: é a Páscoa nova e definitiva, destinada a ser vivida e revivida para sempre (celebrada) como lugar de salvação.
Encontramo-nos no seio daquele conflito anunciado praticamente desde o início: “Durante a ceia, quando o diabo já pusera no coração de Judas, filho de Simão Iscariotes, o projeto de O entregar” — diz a narração de S. João (Jo 13,2). Trata-se do verdadeiro “conflito final” que agora tem lugar; a luta entre Deus e tudo quanto a Ele se opõe; a “última tentação” do próprio Jesus, diria S. Marcos. No Êxodo, era o Faraó de coração endurecido; ao longo da história de Israel, eram os deuses estrangeiros que o povo insistia em adorar, esquecendo o único Deus vivo e verdadeiro e a confiança que deveria colocar nele; agora é mesmo um dos Doze (um dos seus), que recusa o plano de Deus, em favor de um projeto próprio: o mal adensa-se à volta de Jesus, procurando contrariar o desígnio salvador do Pai. Ali, naquela Páscoa, como que se concentra todo o mal da história.
O evangelista dá-nos ainda conta do modo como Jesus vive este momento: “Sabendo Jesus que o Pai tudo pusera nas suas mãos; sabendo que saíra de Deus e para Deus voltava”, diz-nos S. João (Jo 13,3): Jesus está consciente da situação. Vive-a não como alguém a quem as circunstâncias surpreenderam; ou — muito menos — como alguém resignado a um destino de sofrimento, condenado sem qualquer outra possibilidade. Ao contrário: Jesus mostra-se plenamente livre e consciente neste confronto com o mal — sobretudo, consciente do desígnio do Pai, que tudo colocou nas suas mãos, tal como está consciente de esta ser a sua Páscoa, a Páscoa por antonomásia: Ele que saíra de Deus para, na história, viver como “Verbo feito carne”, agora para Deus voltava, como Filho glorificado, mediador da Nova Aliança, ponte entre Deus e o homem.
É este Jesus que aceita a luta da Páscoa. A batalha desenrola-se definitivamente no momento da morte de Jesus na cruz: é o momento decisivo. Mas o serviço até ao fim, a entrega de si mesmo até ao limite, encontram-se já prefigurados na última Ceia: prefigurados não apenas na Eucaristia instituída (Jesus que se entrega como alimento até ao fim dos tempos — que se apresenta como solução na luta que há de ser continuada e travada pelos seus discípulos), como também prefigurados neste gesto singular do lava-pés, realizado não pelos servos mas por aquele que é “Mestre e Senhor”; e não no início da refeição como era habitual, mas no meio da mesma, de modo que, saindo fora de todos os hábitos, permaneça gravado na memória dos discípulos.
Qual é o campo da batalha? O campo desta batalha decisiva é a vida: a vida de Jesus, a vida do homem. E quais são as suas armas? Para Judas, a arma é a traição: a entrega do amigo nas mãos daqueles que O querem amordaçar e colocar um fim à sua ação e à sua pessoa. Para Jesus, a arma é o serviço até ao fim — porque até ao fim é também o seu amor: “Ele que amara os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim” (Jo 13,1b). Se aqueles O querem derrubar com armas que destroem, exércitos e poderes que se procuram impor, Jesus escolhe lavar os pés aos discípulos e ao mundo inteiro, mesmo a Judas.
E, no entanto, não é em Judas que a luta se faz ouvir e ver mais claramente. É em Pedro, no seu coração de discípulo. O coração de Pedro (tal como o nosso coração) tem tanto do coração de Judas! Também em Pedro — como em Judas — o que se faz ouvir, disfarçado de humildade, não é o desígnio de Deus, mas os seus próprios planos. Em Judas, é a invenção de um projeto revolucionário, de insurreição popular. Em Pedro, é a recusa de ser lavado, perdoado, purificado, por Jesus — mas, como quer que seja, um projeto próprio, longe do que é proposto pelo Senhor.
Irmãos, não tenhamos dúvidas. A Páscoa de Jesus estende-se até aos nossos dias. E os nossos dias só serão de verdadeira libertação, de verdadeira salvação, se forem vividos na Páscoa de Jesus. Deus passa hoje por nós. Passa pela nossa vida. Faz Páscoa connosco. Fá-lo como um guerreiro, para destruir o que em nós é morte e pecado, e nos conduzir à vida, à Terra Prometida. Nesta batalha, o Senhor Jesus continua a usar a sua única arma, aquela do amor. Quer lavar-nos os pés: “Se não te lavar, não terás parte comigo”, continua Ele a dizer-nos, a nós que, como Judas e como Pedro, persistimos tantas vezes na vontade de seguir os nossos planos em vez de acolhermos o seu projeto salvador. “Compreendeis o que vos fiz? Vós chamais-me Mestre e Senhor, e dizeis bem, porque o sou. Se, portanto, Eu, que sou Mestre e Senhor vos lavei os pés, também deveis lavar-vos os pés uns aos outros. Dei-vos o exemplo para que, como Eu vos fiz, também vós o façais” (Jo 13,12-15).
É por isso que cada um de nós que aqui se encontra, e toda a nossa Diocese, não pode deixar de continuar a interrogar-se: de que modo concreto podemos (devemos) lavar os pés uns aos outros? Quer dizer: como podemos hoje continuar aquele serviço — que é amor até fim — com Jesus amou? De que modo concreto podemos e devemos lutar esta batalha da vida, que é batalha da salvação?
Ao celebrarmos a Instituição da Eucaristia e do sacerdócio, bem como o mandamento novo do amor, disponhamo-nos à atitude quotidiana de quem procura “lavar os pés” daqueles que, hoje, como nós, necessitam da Páscoa — que o mesmo é dizer: necessitam que Deus passe pela sua vida e, com braço poderoso, os retire do Egito do pecado, e os salve.
Sé do Funchal, 1 de abril de 2021
D. Nuno Brás
Bispo do Funchal