O mistério do amor entregue por nós
A festa da Páscoa, por estar relacionada com a libertação do povo de Deus do Egito, é a festa mais importante para o povo judeu. No Novo Testamento adquire um significado especial para os cristãos, uma vez que celebra a obra redentora de Cristo, o Cordeiro de Deus, o Cordeiro da Nova Páscoa.
A Páscoa era, no início, a festa da Primavera, na qual os pastores nómadas deviam começar a peregrinação com os seus rebanhos à procura de novas pastagens e, por isso, ofereciam as primícias dos rebanhos para serem abençoados e protegidos. Com a libertação do povo judeu da terra do Egito, este “sair e peregrinar” ganha um novo sentido com a oferta dos animais e do seu sangue, para que sejam protegidos pelo “anjo do Senhor”. A Páscoa deixa de se celebrar em função dos rebanhos e passa a ser a comemoração da libertação do Êxodo.
É neste contexto que Jesus celebra a última ceia com os seus discípulos. É um ato ‘memorial’ através do qual o cristão celebra a aliança que Cristo realizou naquela noite, entregando a sua vida pela humanidade. Na celebração da Ceia do Senhor expressamos a plenitude da nossa fé, afirmando a presença do Senhor na sua Igreja. Unimo-nos como membros da família de Deus à volta da mesa eucarística, afirmamos a nossa unidade como corpo de Cristo e proclamamos a vitória final de Jesus como Senhor de toda a criação e vencedor da morte.
O serviço do amor aos irmãos
O evangelista S. João não nos oferece a tradição das palavras de Jesus na última ceia, mas sim o discurso acerca do pão da vida (cap. 6) e o lava-pés como gesto de entrega da sua vida por cada um de nós: «Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a Sua hora de passar deste mundo para o Pai, Ele, que amara os Seus, que estavam no mundo, amou-os até ao fim» (Jo 13, 1). Para dar força à sua decisão de dar a vida pelos seus, como os antigos profetas, realiza uma ação simbólica em três atos: tirou o manto, tomou uma toalha e colocou-a à cintura. Vejamos o significado destas três ações simbólicas realizadas por Jesus:
A hora de Jesus, que é o momento da sua entrega por nós, exige uma luta, uma luta com aqueles que lhe querem impor o destino cego do ódio. Não são os acontecimentos que decidem o destino de Jesus. Jesus não está disposto a que lhe imponham a sua morte, mas é Ele que aceita a sua hora como vontade e projeto de Deus. O Pai entregou tudo nas suas mãos, pelo que a sua morte não é um homicídio como tantos que acontecem fruto do ódio e da guerra, mas sim fruto da sua obediência ao Pai; uma entrega por todos os homens e mulheres de todos os tempos e lugares. Jesus, cingindo-se como os antigos guerreiros, não luta para não morrer, mas para que a sua morte tenha sentido e não seja absurda como a morte que o mundo dá.
O lava-pés é uma ação simbólica da morte de Jesus; vemos como o Mestre se entrega pelos seus discípulos, quando deviam ser eles que deveriam estar dispostos, segundo a mentalidade da época, a dar a vida pelo seu mestre. Com Jesus, este gesto adquire a dimensão do amor que se entrega. Jesus cinge-se para não morrer odiando, mas amando. Esta é a luta entre a luz e as trevas, entre o projeto de Deus e o do mundo. Vai morrer por todos, por isso lava também os pés a Judas, que está sentado à mesa.
Jesus cinge-se para a sua morte, para a sua hora, porque na sua morte está a vitória divina sobre o ódio do mundo. Na sua morte está toda a sua glorificação, porque não é uma morte absurda, mas assumida pelo próprio Jesus como consequência de uma vida entregue por amor a todos nós. Este mundo não deixa que viva o amor. Jesus também vai ser sacrificado pelo mundo, como tantos outros, e como vamos vendo em tantas zonas de guerra na Síria, Sudão…, mas não deixa que lhe roubem o amor. O lava-pés continua a ser o gesto no qual cada discípulo de Jesus e cada comunidade cristã podem continuar a oferecer ao mundo a sua vida em gestos de entrega e de amor.
Dai-lhes vós mesmos de comer
A Eucaristia, que não se esgota na Missa, é muito mais que o deixarmo-nos deslumbrar pela presença real de Cristo nas espécies eucarísticas do pão e do vinho. Deve ajudar-nos a descobrir o verdadeiro significado do gesto eucarístico da entrega. Quem comunga e se torna um com Cristo une-se intimamente com cada irmão e deve expressá-lo no amor e no serviço aos outros. A centralidade da Eucaristia na vida da Igreja é atestada na fração do pão. «As nossas comunidades, quando celebram a Eucaristia, devem consciencializar-se cada vez mais de que o sacrifício de Jesus é por todos; e, assim, a Eucaristia impele todo o que acredita n’Ele a fazer-se “pão repartido” para os outros e, consequentemente, a empenhar-se por um mundo mais justo e fraterno. Como sucedeu na multiplicação dos pães e dos peixes, temos de reconhecer que Cristo continua, ainda hoje, a exortar os seus discípulos a empenharem-se pessoalmente: “Dai-lhes vós de comer” (Mt 14,16)» (Sacramentum Caritatis 88).
O Congresso Eucarístico Diocesano, que vamos celebrar entre 31 de maio e 3 de junho, exige que aprofundemos a relação que existe entre o mistério eucarístico, a ação litúrgica e o novo culto espiritual que deriva da Eucaristia enquanto sacramento da caridade. Daí a necessidade de empreender iniciativas que levem a despertar e aumentar a fé eucarística, melhorar o cuidado das celebrações e promover a adoração eucarística, para encorajar uma real caridade que, partindo da Eucaristia, atinja os necessitados.
Jesus Cristo continua a olhar-nos com amor e conta com o nosso testemunho e compromisso transformador, abrindo-nos ao mistério de uma vida gratuitamente oferecida por amor.
Senhor Jesus, fonte de todo o bem,
abri os olhos do nosso coração
às necessidades e aos sofrimentos dos irmãos.
Inspirai as nossas palavras e obras
para confortarmos os que andam cansados e oprimidos.
Fazei que a nossa Igreja de Aveiro,
animada pelo Congresso Eucarístico Diocesano
e transformada pela caridade,
saiba viver e anunciar o amor de Cristo,
presente na Eucarsitia,
e testemunhe a esperança de um mundo novo.
Nós Vos pedimos, Senhor Jesus,
concedei-nos muitas e santas vocações
laicais, sacerdotais e de consagração,
a fim de que as nossas obras deixem um rasto de luz
e todos juntos saibamos testemunhar
a alegria do Evangelho.
Amen.
Catedral de Aveiro, 29 de março de 2018
D. António Manuel Moiteiro Ramos, Bispo