Homilia do bispo de Aveiro na Celebração da Paixão do Senhor

  1. Inclinando a cabeça, entregou o espírito.

A narração da Paixão de Jesus, segundo o evangelho que escutámos, apresenta-nos o diálogo de Pilatos com Jesus, com os sumos-sacerdotes e com o povo à volta do tema da realeza de Cristo. Jesus explica a Pilatos que o seu reino não é terrestre e nacionalista, nem vai contra a soberania de Roma, não se apoia em armas nem na violência, porque não é deste mundo. A realeza consiste no testemunho da verdade. O sinal de pertença ao Reino é a aceitação da Verdade.

Jesus, pregado na cruz, diz: “Tudo está consumado. E, inclinando a cabeça, entregou o espírito” (19, 30). Esta expressão pode ter um duplo significado: entregar o espírito é perder a respiração, o sopro de vida que Deus insuflou nas narinas do primeiro homem, para o trazer à vida (Gn 2, 7). Mas S. João dá-lhe outro sentido: entregou o seu Espírito aos homens, isto é, o Espírito do Filho não volta vazio para o Pai, comunica-se aos homens para os tornar filhos no Filho. Este é o fruto da sua morte.

Depois da morte de Cristo, o evangelista chama a atenção para um facto de que foi testemunha: da costela de Cristo, trespassado pela lança do soldado, saiu sangue e água. O sentido está explicado quando se recomenda no livro do Êxodo o modo como se deve comer o cordeiro pascal “Comer-se-á numa só casa, não se fará sair carne da casa para fora, e não lhe quebrareis nenhum osso (12,46) e também no profeta Zacarias – “derramarei sobre a casa de David e sobre os habitantes de Jerusalém um espírito de benevolência e de súplica. Eles contemplarão aquele a quem traspassaram; chorarão por ele como se chora um filho único e lamentá-lo-ão como se lamenta um primogénito” (12,10). Cristo é, assim, proclamado cordeiro pascal, iniciador da Nova Páscoa, tal como refere este mesmo Evangelho de João: “O meu sangue é verdadeira bebida” (6,55). “Se alguém tem sede, venha a mim e beba” (7,55). A morte de Cristo é miserável e humilhante, mas dela deriva a salvação de todos os homens. Por isso, também é a glória e a exaltação de Cristo.

  • Morreu por nós

A causa da sua morte é a de que Jesus, sendo homem, se fez igual a Deus. Cristo, mais com as suas obras do que com as suas palavras, continua a colocar a cada um de nós e à humanidade inteira os desafios que o levaram ao suplício da cruz: Jesus vem purificar a lei, onde a pureza do coração, e não a das mãos, a justiça real, e não o seu cumprimento formal, eram o mais importante, mas vem dar-lhe um novo rosto, em que o ser humano está para além do cumprimento dos preceitos da lei; Jesus ao comer com os publicanos, ao perdoar aos pecadores, ao tocar nos leprosos… vem afirmar que todos os que são como ovelhas sem pastor têm dignidade de filhos perante Deus e perante os poderosos sem escrúpulos; Jesus ao atualizar através das suas ações  o amor e o perdão de Deus, ao realizar milagres ao sábado, mostrando a superioridade do homem sobre a lei e o amor do Pai para com todos os que sofrem, curando doentes, dando vista aos cegos e evangelizando os pobres, está a dizer-nos que a salvação chegou até nós; Jesus revelou o seu poder como compaixão, o seu amor como perdão e a eleição de Israel não como um povo privilegiado, mas sim como serviço para todos os que no futuro se sentarão à mesa com Abraão no reino dos céus.

Estas foram as causas que levaram Jesus à morte. Os fariseus e escribas chegaram à conclusão de que a pessoa de Jesus e o judaísmo real eram alternativa. Se vivia Jesus, morria o judaísmo, e se o judaísmo queria perdurar, tinha que morrer Jesus.

  • A paixão de Jesus hoje
Foto: Diocese de Aveiro

Vivemos tempos conturbados e cheios de sofrimento, sobretudo para os mais pobres e os últimos da sociedade. Quando o dinheiro e os bens materiais ocupam o primeiro lugar de alguns governantes, as guerras que trazem destruição e genocídio em várias partes do mundo não têm fim, podemos perguntar-nos: não estaremos, hoje, a crucificar Jesus na faixa de Gaza, na martirizada Ucrânia, na luta pela lei do mais forte, impondo aos mais pobres tarifas e impostos que vão trazer mais fome, mais doenças e mais injustiça? Como podemos compreender que haja cada vez mais riqueza e mais multimilionários e a desigualdade social seja cada vez maior?!

Os homens não sabem o que fazem contra o Messias Salvador, mas Jesus sabe o que faz por eles. A oração por aqueles que o crucificaram, a entrega do discípulo a sua Mãe e desta ao discípulo, a entrega confiada nas mãos do Pai, ao mesmo tempo que sofre na agonia o abandono de todos, concluem o destino de Jesus.

Após a morte de Jesus, colocam o seu corpo num sepulcro escavado na rocha. A sepultura de Jesus faz parte de todas as confissões de fé da Igreja como uma garantia da sua morte real, a expressão última da sua verdadeira humanidade.

Agora, na contemplação do silêncio do sepulcro, somos convidados a rezar o amor infinito de Jesus por cada um de nós, e a sua identificação com os últimos da sociedade.

Maria, a nova Eva, acarinha o seu corpo nu como no dia em que o deu à luz. Aos pés da cruz, ambos estão prontos para um novo amanhecer – no fim da noite, não há noite, mas aurora!

Amen.

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Catedral de Aveiro, 18 de abril de 2025

† António Manuel Moiteiro Ramos, Bispo

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