Homilia do Arcebispo de Évora na Imaculada Conceição

«Salve, ó cheia de graça, o Senhor está contigo» (Lc1,28)

 

Conforme nos relata o Evangelho de S. Lucas, foi com esta saudação que o anjo Gabriel se dirigiu a Maria, ao entrar em casa dela, em Nazaré. Não se trata de uma simples saudação de cortesia. É muito mais do que isso. Nesta saudação está contida, em certo modo, a promessa e a profecia da salvação. Compreendê-la-emos melhor se a enquadrarmos no pano de fundo veterotestamentário, a partir do qual adquire um sentido bem mais rico de significado salvífico.

A saudação, traduzida pela palavra ave ou salve, é também usada pelos profetas para convidar o Povo de Israel, simbolizado na filha de Sião, a exteriorizar o júbilo e a alegria, íntima e profunda, que vem de Deus e tem poder para vencer o velho e infindável luto do mundo, porque o tempo da libertação se aproxima.

Maria é a verdadeira filha de Sião, o mais belo e sublime rebento da casa da Israel, que sintetiza todas as aspirações do povo eleito e se torna instrumento dócil nas mãos de Deus para que as promessas messiânicas se cumpram. Por isso é convidada pelo anjo Gabriel a alegrar-se, pois chegou a plenitude dos tempos e ela foi escolhida pelo Deus Altíssimo para dar cumprimento à promessa anunciada aos nossos primeiros pais, de que a descendência de uma mulher havia de esmagar a cabeça da serpente, isto é, havia de vencer o maligno tentador que os seduziu ao pecado, pela desobediência a Deus.

Em Maria toda a humanidade é convidada a exteriorizar essa alegria profunda que vem de Deus e pode destruir o fundamento da tristeza enraizada na caducidade do amor humano e o predomínio da finitude das realidades terrestres, do sofrimento, da maldade e da mentira. Na verdade, a alegria que vem de Deus põe fim à solidão que prolifera neste mundo repleto de contradições, onde está presente uma vaga de laicismo agressivo que se esforça por apagar os sinais da presença e da bondade de Deus.

O anjo Gabriel convidou Maria a alegrar-se e, logo de seguida, explicitou a razão de semelhante convite, acrescentando: o Senhor este contigo. Se os nossos primeiros pais experimentaram a tristeza por se terem afastado das ordens de Deus, Maria deve alegrar-se porque o Senhor Deus está com ela. Passou o tempo da promessa, agora é o tempo da realidade. Tudo quanto foi simbolizado por Sião Maria vive-o em verdade e na totalidade, pois ela não está sozinha, não está fechada em si mesma. Radicada na fé dos profetas, abre o seu coração à imensa amplidão das promessas que por meio dela se tornarão realidade. Ela é permeável a Deus, habitada por Deus e tornou-se um lugar de Deus, porque o Senhor está com ela.

Em Maria nunca existiu pecado. Ela nunca esteve sujeita aos efeitos maléficos do pecado que gera nos corações humanos a mentalidade egoísta do isolamento, do individualismo e da posse avara dos bens terrenos, que contamina negativamente as relações interpessoais, dificulta a partilha altruísta dos bens e atrofia o espírito de comunidade. Por isso se entregou sem reservas nas mãos de Deus, disposta a nada guardar para si e a tudo partilhar com a humanidade.

Maria é a mulher cheia de graça. E que significa a expressão cheia de graça senão que está em íntima união com Deus? Com efeito, a graça não é uma coisa, não se pode coisificar. A graça tem uma natureza relacional, não se refere ao eu da pessoa mas à relação que cada um estabelece com Deus. Nessa perspectiva, a expressão cheia de graça poderia traduzir-se por está cheia do Espírito Santo, vive em comunidade de vida com Deus. E quem vive em Deus não pode deixar de viver em alegria, aliás na língua grega as palavras que traduzimos por graça e alegria têm a mesmo radical e, na realidade têm a mesma fonte: Deus, que é fonte de graça e de alegria.

Cheia de graça quer dizer também que está completamente aberta aos outros, que se dilatou completamente e se entregou audaciosa e ilimitadamente nas mãos de Deus. Vive inteiramente a partir da relação e no interior da relação com Deus. Vive em Deus mas ainda não O contempla face a face, vive na fé. Maria é uma mulher crente, dotada de uma fé que inclui a fortaleza, a dedicação e a confiança mas não exclui a obscuridade, porque não foi abolida a distância entre o humano e o divino, entre a criatura e o Criador. Maria é crente como Abraão. Como Abraão acredita na promessa de um filho, suporta a escuridão da hora que a leva a subir ao cimo do monte, aceita a intervenção miraculosa do Pai que salva o Filho da morte pela Ressurreição. Se para Israel e para a Igreja Abraão é o pai dos crentes, Maria é para todos a Mãe dos crentes.

Tudo isto foi possível em Maria porque nela nunca existiu pecado. Foi cheia de graça e sempre irradiou à sua volta a alegria pura e bela que só a intimidade com Deus pode fazer transparecer no rosto dos que n’Ele confiam e a Ele se entregam sem reservas, como Maria. Esse será sem dúvida um dos frutos espirituais mais deliciosos que experimentam os verdadeiros devotos de Maria e com ela aprendem a viver em relação íntima com Deus, como aconteceu com São Nuno de Santa Maria, devotíssimo da Imaculada Conceição da Virgem e, em vida, tão profundamente ligado a esta vila ducal e ao seu santuário mariano. Embebido nas delícias espirituais de Deus, depois de ter cumprido a sua missão de salvador da Pátria lusitana, desprendeu-se dos bens terrenos e recolheu-se no convento do Carmo que ele próprio mandara construir para aí se entregar à oração e às obras de caridade para com os mais pobres.

Infelizmente, na nossa sociedade abundam os maus exemplos dos que em vez de partilharem os próprios bens preferem apropriar-se dos bens dos outros, sejam eles económicos ou morais, sem olharem aos meios, mesmo quando estão em causa bens tão elevados como a dignidade da pessoa e a inocência das crianças. O esquecimento dos outros e a concentração nos próprios interesses é, sem dúvida, um dos efeitos mais perniciosos do pecado. Ao contrário, a graça e alegria de Deus levam à abertura aos outros e a Deus. Maria Imaculada, concebida sem pecado, cheia de graça, habitada pelo Espírito Santo, unida espiritualmente a Deus, acolheu a mensagem do anjo, colocou-se ao serviço de Deus e da humanidade e, mesmo sem compreender racionalmente a proposta que lhe era feita, tudo aceitou na fé.

Guiados pela fé e atraídos por tão singular exemplo da Virgem Imaculada, os valorosos chefes da Pátria lusitana, em momentos de crise, foram capazes de comprometer a própria vida para salvar a pátria e servir o povo. Nos dias de hoje e a exemplo dos nossos antepassados, também nós que recebemos o dom da fé e fomos enriquecidos com toda a espécie de bênçãos espirituais em Cristo, como escreveu S. Paulo aos cristãos de Éfeso, temos necessidade de voltar os nossos olhos para a cheia de graça, a Virgem Imaculada, para implorar a sua protecção maternal e aprendermos com ela a corresponder sem reservas aos dons de Deus.

Virgem Imaculada, rogai por nós!

Vila Viçosa, 8 de Dezembro de 2009

+José, Arcebispo de Évora

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