Homilia do arcebispo de Braga na solenidade do Natal do Senhor

Natal de proximidade
A luta contra a COVID-19 não permite que façamos tréguas. Rezamos e confiamos que seremos capazes de a ultrapassar. Só que já alterou muitos hábitos e vai exigir um novo estilo de viver.

Neste novo estilo de viver, que todos desejamos alcançar, o Natal sublinhará realidades adormecidas e apontará valores de transcendência incalculável para o convívio em Humanidade. Celebramos o nascimento do Deus Menino, que nasceu para se identificar com todo o género humano, sem distinção de raças, credos, etnias ou partidos. Veio para todos e com todos quis construir uma família partindo da sua experiência, ou seja, da vida de Deus que entra em comunhão com as pessoas.

Esta doutrina multisecular emerge da realidade dos acontecimentos. A divisão da sociedade em classes, ricos e pobres, a classificação entre quem manda e quem obedece, poderá continuar mas está a ser terrivelmente abalada. Quem dera que a igualdade triunfasse definitivamente sobre as situações de marginalidade e de descarte. Quem dera que os políticos acreditassem que devem trabalhar para o bem comum e não só para clientelas e membros dos mesmos grupos ou partidos. Quem dera que a solidariedade triunfasse sobre a indiferença e instintos de enriquecimentos alheios à ética e às exigências do bem comum. Como nunca, o presépio pode gritar que nascemos todos iguais e que deveríamos crescer com os mesmos horizontes de felicidade, algo que não é privilégio de alguns mas direito de todos.

Se o Natal é este aproximar-se de Deus à Humanidade, para caminhar com ela, deveríamos ser capazes de reconhecer a importância deste companheiro de viagem. Deus acredita no Homem e não o abandona. Existem muitos esforços para afastar Deus da história da Humanidade. Foi sempre assim. É uma luta. Só que outrora os adversários eram conhecidos e não se escondiam. Hoje, a técnica consiste em não afrontar Deus mas viver como se Ele não existisse, e fazer com que este modo de viver adquira traços de normalidade. Tudo convém desde que satisfaça. Não se aceita a transcendência com os seus valores perenes e verdadeiramente humanos. Camufladamente e no anonimato, Cristo está a ser substituído, na caminhada da Humanidade, por conveniências nem sempre claras. Os cristãos devem acordar e mostrar que, sem Deus, viver em sociedade será difícil.

Conscientes desta realidade, sabemos que o caminhar com Cristo não nos afasta da história da Humanidade. Antes pelo contrário. Não só não podemos ser inimigos mas também nunca poderemos aceitar a indiferença do “arranje-se quem puder”. Somos um corpo de pessoas que entrelaçam as suas vidas e reconhecemos que a nossa vida se realiza tornando-nos tecedores de fraternidade. O beijo que não daremos ao Menino tem de se expressar nos outros, numa atitude de verdadeira universalidade e na certeza, que nunca pode ser esquecida, do “tudo o que fizeres ou deixares de fazer a um dos mais pequeninos a Mim o fizeste ou deixaste de fazer”. Nascemos para nos amarmos reciprocamente porque viemos de Deus que é amor.

O perigo do contágio está a impor-nos uma certa desconfiança em relação aos outros. Temos medo de nos aproximarmos. Insistimos no distanciamento físico e podemos estar a provocar o distanciamento social. Com receio de contaminar os nossos corpos, corremos o risco de contaminar os corações. A nossa Arquidiocese tem um programa a concretizar. “Viver intensamente a caridade”. Sabemos que a caridade está no centro do Evangelho e nela está a identidade da vida cristã. Somos cristãos se amamos, e o que amamos é que nos define pois a caridade é o rosto da nossa fé. Acreditamos em Deus e permitimos que o Seu amor se torne visível na relação com os outros. Deus é Pai de todos. A fraternidade universal não é um mero conceito. É a exigência de, em cada ser humano, ver um irmão.

Na concretização deste objetivo, o tempo da pandemia reclama duas atitudes. O nosso programa diz que onde há amor há um olhar. Precisamos de caminhar em permanente atenção, fazendo com que vejamos os outros com o coração. Sentimos a necessidade dos afetos mas pensamos que a afetividade só se expressa nos gestos tradicionais dos beijos e dos abraços. Mas há modos muito variados de a interpretar. Não podemos olhar os outros com a cómoda indiferença de quem passa ao lado, fazer de conta que não se vê, como algo que não nos diz respeito ou ver com atitudes críticas que formulam juízos, interiores ou comunicados aos outros. Ver com o coração é acreditar na fantasia de pequenos gestos que valem muito mais do que grandes promessas. Dizia Santa Teresa do Menino Jesus que “uma palavra, um sorriso, muitas vezes são o suficiente para fazer florir uma alma triste.” Precisamos de dar largas ao coração e permitir que sugira comportamentos que parecem pequenos mas que podem dar qualidade a muitas vidas. Deixemos a fantasia do coração imaginar atitudes inéditas no relacionamento com as outras pessoas.

A par deste amor afetuoso que o Natal exige, teremos de ser capazes de olhar para a Humanidade ferida. Não é difícil encontrar sinais de dor e de angústia. É mais fácil cruzar os braços e esperar passivamente que alguém encontre soluções. O Natal, ao falar-nos da fraternidade universal, convoca-nos para uma responsabilidade concreta que se expressa numa solidariedade dinâmica e libertadora. As coisas não se alteram por milagre, como se algo caísse do céu. A solidariedade tantas vezes apregoada não é uma doutrina, uma filosofia, um sentimento. Envolve a pessoa humana com tudo o que é.

O Evangelho mostra-nos como os apóstolos reconheceram Jesus, após a Sua morte, através das feridas que tinha nas mãos, pés e peito. Também hoje teremos de adquirir uma nova sensibilidade e atenção a tantas feridas existentes na Humanidade. O Natal terá de nos acordar para uma solidariedade efetiva de sofrer com quem sofre. A solidariedade nunca será uma estratégia. Trata-se de uma verdadeira responsabilidade para com os outros. Perante o Natal, teremos de redescobrir a dignidade de cada pessoa humana. A partir da fé teremos de encontrar, individualmente ou em Igreja, respostas para os novos desafios e perguntas que nos são formulados. Deixemos que o coração nos aponte, concretamente, as feridas de um mundo em sofrimento.

Este Natal pode sugerir-nos um modelo a imitar. O Papa Francisco proclamou um ano especial em honra de S. José. Fê-lo através de uma Carta Apostólica a que deu um título muito sugestivo: “Com o coração de pai”. Colocando o coração nas festas natalícias, interpretamos as suas sugestões na esteira da paternidade vivida por S. José. O Papa aponta diversas características desta paternidade. Deixo ficar uma “um pai com coragem criativa”. Perante a realidade social, provocada pela pandemia, mas já antes característica dos tempos que vivemos, precisamos de muita coragem. Não podemos acreditar em facilitismo. É íngreme o caminho a percorrer. Se a coragem for criativa, as dificuldades não nos deterão. Todos os problemas, por muito graves que sejam, podem transformar-se em oportunidade. Há sempre uma porta de saída a apontar para soluções não imaginadas. O mundo parece estar nas mãos dos poderosos, daqueles que não respeitam a história e querem construir o mundo sem valores que nos identifiquem. Se usarmos a mesma capacidade criativa do carpinteiro de Nazaré, o Natal não será uma simples festa social mas acontecerá como projeto de uma sociedade nova onde todos têm lugar.

O mundo espera pela nossa presença. Este Natal está a ser diferente mas não está vazio de conteúdo. A sua mensagem é ainda mais eloquente. Por tudo o que disse, o Natal está a exigir que trabalhemos para que o mundo seja uma verdadeira família. Na verdade, somos uma família com aqueles que estão perto de nós mas também com aqueles que estão mais longe. Deixo, ainda, outra interpelação neste ano dedicado à Laudato Si’. Teremos de nos interrogar, também, sobre o que podemos fazer para que o mundo seja a nossa casa. Jesus nasceu fora da cidade, perdido numa gruta, terra de pastores. Hoje, o Natal faz-nos ver que só uma ecologia integral salvará o planeta e nele permitirá que a vida seja digna para todos. Não podemos deixar de ter atitudes bem concretas de respeito pela natureza. Aprendemos nas escolas. Ouvimos muitas notícias. Não permitamos que se destrua a Terra.

Ouçamos o silêncio do presépio. Não teremos o beijar do Menino. Abramos o coração a Cristo, descobrindo gestos concretos de afeto para com todas as pessoas conhecidas, e particularmente as mais próximas. Abramos os olhos às feridas da Humanidade e acreditemos que o mundo pode ser diferente. Somos todos iguais. Ninguém consegue ser feliz sozinho. Coloquemos Cristo no nosso caminho e caminhemos com os outros em gestos de solidariedade e solicitude. O Evangelho de hoje dizia-nos que em Cristo está a vida e que Eles veio para que todos tenham vida. O Natal será verdadeiramente diferente se tivermos uma coragem criativa.

  D. Jorge Ortiga, arcebispo de Braga

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Agência ECCLESIA

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