Homilia do Arcebispo de Braga na Celebração da Paixão do Senhor

A morte de Cristo suscita compromisso de fé firme 1 – A morte não é fim A celebração da Sexta-Feira Santa é, sem dúvida, a expressão máxima do paradoxo cristão, aquele que é considerado escândalo para todos. De facto, nesta celebração parece ser celebrada a própria morte, isto é, a destruição do humano e mesmo do próprio projecto da criação. Mais do que isso, o próprio Deus parece sucumbir ao mal que penetrou na criação. A maldade, na sua força máxima, apodera-se do próprio Deus que, na cruz, foi feito sua vítima. Mas não é isto a celebração do fim? Da vitória do mal sobre o bem? Como podemos nós, então, fazer memória da paixão? Como podemos nós, no extremo, adorar a própria cruz? Que fazemos nós, quando celebramos a Sexta-Feira Santa? Celebramos, precisamente, o núcleo do mistério cristão: a vitória sobre o mal, mesmo sobre a morte. Mas como é isso possível, se o que se nos apresenta é o inverso? Na paixão de Jesus – simbolicamente representada na sua cruz – Deus faz-se vítima com as vítimas, por opção livre de amor. O dom da Sua vida, porque é um dom livre, simplesmente justificado pelo amor, é o dom escandaloso que dá a vida. O único dom que dá a vida eterna. Por isso, a celebração da vitória cristã é a celebração da cruz – não da cruz, em si mesma, que é sempre negativa; mas da cruz de Cristo, que é a única que realmente salva. Mas não salva de modo automático. A salvação oferecida na paixão de Jesus torna-se real, em cada cristão e em cada comunidade cristã, na medida em que é acolhida por cada um. Acolhida não propriamente em atitude sentimentalista de lamentação pelo que aconteceu, ou de compaixão superficial. A verdadeira compaixão com a paixão de Jesus é a aceitação do dom da vida como doação da vida de cada um. Paradoxalmente, a aceitação da vida eterna, implica a aceitação da morte e, de certo modo, a aceitação do caminho do sofrimento. Porque só essa solidariedade com Cristo – que é a solidariedade com todos os que sofrem – é que abre o caminho da vida. Todos os outros caminhos são simplesmente ilusórios e ideologicamente pervertidos. Sempre que assumimos o caminho da cruz, por doação livre da nossa vida aos outros, estamos a fazer memória salvífica da única acção que nos salva. Só desse modo, isto é, só no nosso compromisso até à morte, em solidariedade com o sofrimento dos outros, é que seremos salvos – nós e todos os outros. Neste paradoxo revela-se-nos a paradoxal bondade de Deus, aquele que é capaz de se compadecer com as nossas fraquezas e que, nessa compaixão, porque é uma paixão em todos os sentidos, nos liberta para a verdadeira vida. 2 – A fé consciente é reposta ao dom de Deus Para além deste assumir as dores como manifestação do amor de Deus, perante este dom sublime emerge um compromisso: ser fiel ao mesmo amor é acordar para uma fé mais sólida em Cristo que nos amou desta maneira. O relato da Paixão termina com o testemunho/ compromisso de dois homens: José de Arimateia e Nicodemos. Um era discípulo de Jesus, “embora oculto por medo dos judeus”; o outro tinha ido de noite ao encontro do mesmo Jesus. Vejo nestes dois homens uma certa semelhança com alguns católicos de hoje. Identificam-se como católicos mas vivem escondidos “na noite” por medo do que os outros poderão dizer ou fazer. A atitude de Nicodemos e de José de Arimateia de estarem presentes no alto do Calvário, num momento de fracasso e desilusão, tem de questionar a vida de muitos crentes. A fé não se pode ocultar, ela deve permear as realidades humanas ainda que manifestem destruição e fim duma aventura. O gesto deles tornou-se condição indispensável para que a pedra rolasse na manhã de Ressurreição e Cristo surgisse de novo a congregar os Seus filhos dispersos. Nem sempre são necessários muitos para mudar o ritmo dos acontecimentos. A fidelidade dum pequeno grupo pode recuperar tempo perdido e acordar os sonolentos ou os que fugiram à crueldade dos acontecimentos. O profeta Isaías dizia: “Foi eliminado por sentença iníqua, mas quem se preocupa com a Sua sorte?” (Is 52, 15-53). Lamentar-se ou derramar lágrimas é alguma coisa. A causa de Jesus, no presente e no futuro, está nas nossas mãos e os cristãos devem preocupar-se com o futuro do cristianismo. Com tanto agnosticismo e laicismo que quotidianamente vão provocando a morte de Cristo, de maneira aberta ou camuflada, impõe-se que o compromisso da fidelidade e autenticidade de vida volte ás nossas comunidades, às famílias e aos lugares de trabalho. O mundo necessita de ver um Cristo que se deu por amor e que continua vivo e operante na história. 3 – Permanecer firmes na fé Quero recordar quanto nos é comunicado na Carta aos Hebreus: “Tendo nós um sumo sacerdote que penetrou os céus, Jesus, Filho de Deus, permaneçamos firmes na profissão da nossa fé” (Heb 4, 14-16). Alguns poderão abandonar, outros contentar-se-ão com momentos ocasionais, outros orgulhar-se-ão de serem o contraditório de católicos não praticantes. Perante este cenário duma “fuga”, a morte de Cristo espera que outros permaneçam firmes na profissão de fé, indo contra-corrente ou sujeitando-se a ser ridicularizados. Acredito, seriamente, que as forças contrárias continuam a planear e a executar um plano de morte de Cristo e do cristianismo. Basta estar minimamente atento aos sinais que o quotidiano nos oferece para reconhecer este trabalho persistente. Vale a pena condenar ou preocupar-se em conhecer os pormenores que obstacularizam a vivência da fé? Mais do que deter-nos em considerações, é fundamental e urgente permitir que entre no coração dos católicos o que Cristo respondeu a Herodes: “Sou Rei. Para isso nasci e vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz” (Jo 18 1-19). Só a escuta da voz de Deus, ou seja da Palavra confiada à Igreja, fará que vejamos a acção de Deus na noite escura cultural e moral que nos tocou viver. Depois, toca-nos seguir o exemplo de S. João: “Aquele que viu é que dá testemunho e o seu testemunho é verdadeiro . Ele sabe que diz a verdade para que também vós acrediteis” (Jo 18, 1-19, 42). “Se sois ultrajados pelo nome de Cristo, bem-aventurados sois vós, porque o espírito de glória, o Espírito de Deus repousa sobre vós. Que nenhum de vós sofra por ser homicida, ladrão, difamador, ou por cobiçar os bens alheios. Mas, se sofre por ser cristão, não se envergonhe, antes glorifique a Deus por ter este nome”. (1Pedro 4, 15-16). Aproximar-se da Verdade para dizer a verdade, eis o convite desta sexta-feira Santa. O amor de Deus precisa de ser conhecido e experimentado. Depois será natural que surja o compromisso de o proclamar colocando de lado os medos e as vergonhas. Encontramo-nos perante uma situação nova eivada de laicismo. Aceitamos a justa autonomia da ordem temporal com todos os seus processos e metodologias e sabemos que ela é não só compatível com a fé mas exigida pela mesma, desde que não imponha uma vida sem Deus. Neste ambiente duma progressiva descristianização e deteriorização moral da vida pessoal, familiar e política, reconhecendo que a causa está fora da Igreja mas também está na pouca formação que a mesma Igreja ofereceu e continua a oferecer, perante a realidade da Morte do Senhor teremos de acolher a ousadia de mudar. O amor patente nesta morte não nos pode deixar indiferentes. Neste ambiente de silêncio gostaria de pedir ao nosso Deus que passou pela morte como condição indispensável para um ressurgir repleto de vida, que torne as nossas famílias ávidas de conhecer o Seu amor através de três itinerários que considero fundamentais para a hora que vivemos. O amor doado exige compromissos. 1 – Na Igreja Diocesana teremos de promover uma verdadeira identidade da família, conscientes dum caminhar diferente de algumas formas alternativas que a sociedade mediática pretende impor-nos. Depois, orgulhosos dum modo de ser família cristã que não se contenta em viver juntos mas pretende assumir o projecto de Cristo como abertura ao mistério, impõem-se a alegria de crescer na comunhão e responsabilidade na missão de mostrar que continua a ser possível acolher o matrimónio como dom de Deus. 2 – Na hora que passa, necessitamos de favorecer uma maior comunhão entre as famílias para testemunhar unidade e encontrar forças para discernir caminhos novos de vivência familiar na fidelidade às orientações do Espírito. 3 – É preciso animar e entusiasmar todas as famílias para que participem activamente na vida eclesial mas, sobretudo, na vida social e pública, em coerência de vida e de integridade de fé. O mundo necessita do fermento dos cristãos e se lamentamos a ausência do sentido cristão nas realidades terrestres deve-se ao facto de nos termos refugiado num culto intimista e sem repercussão no tecido social. A morte, sabemo-lo muito bem, não venceu Cristo. A sexta-feira Santa é dia de esperança desde que, com maior ou menor número, proclamemos firmemente a fé em que acreditamos. Na Paixão de Cristo muitos fugiram. Ficaram alguns curiosos contemplando o “espectáculo” da morte. Poucos permaneceram até ao fim. É a nossa vez. Maria nos conceda o dom dum amor incondicional a Cristo de modo que geremos uma sociedade onde a fé se evidencia como referência geradora de sentido para uma história de mais justiça e fraternidade. Sé Catedral – Sexta-feira Santa † D. Jorge Ortiga, A.P.

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