Homilia de D. Rui Valério na Solenidade do Natal

  1. Perante a beleza do Nascimento da criança do presépio, da manjedoura do estábulo de Belém, nós reconhecemos que estamos na presença do próprio Filho de Deus, Aquele que é desde toda a eternidade, foi por Ele que foram feitas todas as coisas. É mesmo o Filho de Deus em pessoa que está deposto na manjedoura como uma débil e frágil criança. Daqui resulta que:

– Deus nunca esteve ou estivera tão próximo da humanidade; aliás, tão dentro da realidade do homem e do mundo como no Mistério da encarnação. Entra dentro da nossa realidade, experimenta o que experimenta um ser humano: cansaço, fadiga, perplexidade, até tentações como Ele será tentado no deserto. Deus vem-nos conhecer por dentro, fazer experiência da nossa humanidade.

– Enquanto Filho, Ele vive uma comunhão profunda com Deus, o Pai; essa relação com Deus nunca fora vivida dentro do espaço e do tempo, duas coordenadas humanas, e como tal própria das criaturas, e é Jesus que inaugura a possibilidade de, dentro delas, num tempo determinado e num espaço específico, se viver a comunhão profunda com Deus, própria de quem é filho, graça que nos foi concedida.

– Deus Menino, indica-nos o caminho de viver e orientar a nossa humanidade. Revela-nos como podemos viver a nossa humanidade – de homem ou mulher – como Filho de Deus. De facto, instaura um caminho: Maria e José vem de Nazaré até Belém, os pastores põem-se a caminho dos campos das pastagens até Belém, os Magos em caminho seguindo uma estrela até ao Menino…. O principal caminho que o Deus-Menino nos mostra é o modo de viver a condição e situação humana como filhos de Deus. E qual é essa maneira? Dando-se, entregando-se, fazendo-se pequeno, último. Quão é sugestivo captar aquele primeiro olhar lançado sobre a humanidade e sobre o mundo a partir de baixo, da manjedoura, não do alto de um trono. É o olhar de quem serve. Por isso, o Natal com toda a carga de humildade e sabedoria de serviço que carrega põe em crise esta nossa sociedade do bem estar, do individualismo e da indiferença.

 

  1. Perante o mistério insondável e maravilhoso do Nascimento de Jesus, contemplamos o maravilhoso desejo realizado, a mais estonteante vontade cumprida e executada de Deus de vir ao nosso encontro, de nos visitar e, como diz São João, plantou a sua tenda no meio de nós.

Recentemente estive de visita às nossas tropas na República Centro Africana. E uma das visitas que efetuamos foi com o Sr Cardeal de Bangui, Card. Dieudonne Nzapalainga que tinha acabado de efetuar uma visita pelo país. Tinha ido ao encontro das pessoas por aldeias, vilas e cidades para – dizia ele – esclarecer as pessoas e explicar-lhes o que estava a suceder em Bangui…. Progressos nas conversações de paz. Eis uma bela gramática que nos ilumina sobre o sentido do encontro que connosco vive o Senhor Deus, em Jesus: dissipa mal entendidos. Esclarece o mal-entendido sobre Deus: que não é um competidor do homem, não é um tirano; mas um Pai Misericordioso. Aliás Deus diz-se numa Criança; que nos atrai a Si, suscita docilidade, promove proximidade. E esclareceu igualmente o Homem ao homem: o outro é sempre um irmão.

 

  1. “A luz brilhou nas trevas”. Do nascimento de Jesus, flui/brota uma luz que nos consente de olhar para a vida com olhos novos e, nela, descobrir outros e inauditos horizontes e maravilhas:

– Um normal “édito imperial” de ordinária administração governativa, como foi o de decretar que toda a gente se fosse recensear, à luz do natal assume um outro significado: torna-se um decreto da vontade de Deus;

– O percurso efetuado por José e Maria de Nazaré, na Galileia, a norte, até Belém, na Judeia, centro para se recensear: deixa de ser só um ato de cidadania e, à luz do mistério do Natal, assume-se como peregrinação de renovação da humanidade;

– Não haver lugar para eles na hospedaria: modo de Deus nos dizer que quer habitar as nossas periferias

Flui uma luz para a vida, para o mundo, que nos revela outros e novos horizontes nas vicissitudes e experiências da existência.

 

  1. “Não temais”: a palavra mais bela e altissonante. E do que é que hoje, em pleno século XXI, se pode ter medo? O astronauta italiano, Luca Parmitano, a partir da estação espacial europeia respondeu a uma questão de António Guterres, no âmbito do 25 Congresso sobre alterações climáticas, em Madrid, sobre a maior beleza e fragilidade do planeta. O astronauta reconheceu ser “uma pergunta difícil”. No entanto, Luca Parmitano destacou de belo as diferentes camadas da atmosfera e os raios solares a trespassarem as nuvens, produzindo uma paleta de cores. Mas quanto à escolha da maior fragilidade da Terra, não hesitou: “Nós, os humanos, a vida. A grande ameaça é o ser humano….”. Diz o anjo aos pastores: “não temais”: não tenhais medo, nem de Deus, nem da vida, nem da história, nem do homem…. Vede, eu próprio me fiz homem. No Menino do presépio, neste mistério do Natal, descobrimos o quanto é grande o ser humano, o quanto nele Deus deposita a Sua esperança para um mundo Redento e salvo. Do coração do Mistério que hoje celebramos brota forte um grito: nenhum ser à face da terra é tão belo como o ser humano; nenhum detém um valor tão supremo; a sua dignidade é sagrada e a sua vida santificada.

Por isso, que a cultura do descarte se deixe interpelar e volte a conceder todos os primados ao ser humano.

Basílica de Mafra, 25 de dezembro de 2019

D. Rui Valério

Bispo das Forças Armadas e Forças de Segurança

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