Homilia de D. Manuel Felício na Solenidade da Imaculada Conceição

Interrompemos hoje a semana de trabalho para celebrarmos a solenidade da Imaculada Conceição de Nossa Senhora; para celebrarmos a Festa da Padroeira. Voltamo-nos, por isso, para a Mãe do Redentor, Nosso Senhor Jesus Cristo, em tempo de Advento. Ela é, de facto, figura central do Advento, tempo que nos remete para a vinda de Jesus Cristo, o Salvador, nascido de Maria, no Presépio de Belém. E ao contemplarmos Nossa Senhora pelo ângulo do seu privilégio de ser concebida sem mácula do pecado original, o nosso olhar desloca-se para a realidade dramática constituída pelo mistério do mal que, de facto, invadiu, desde o princípio, toda a criação. Mas simultaneamente a nossa esperança fica fortalecida, ao contemplarmos também a sublime solução encontrada pelo amor de Deus para vencer este mal. E nossa Senhora é parte decisiva dessa solução.

De facto, o mal e o pecado invadiram o mundo e a realidade humana, em suas dimensões individual e social, desde o início. O relato do Génesis que escutámos é disso testemunha. O primeiro homem desiludido, a primeira mulher enganada e a serpente enganadora ameaçada de morte constituem os autores da desordem que atingiu toda a Humanidade, com repercussões na natureza criada, desde o seu primeiro momento. Uma semente de esperança, porém, aparece ligada à futura nova Eva, cuja descendência esmagará a cabeça da serpente, garantindo, assim, a vitória do bem sobre o mal, da Graça sobre o pecado.

É por isso que o sim de Maria ao convite de Deus feito através do Anjo Gabriel para ser Mãe do Salvador contrasta com o sim da primeira Eva à proposta tentadora da serpente. Com o seu sim ao convite de Deus, Maria abriu as portas de um novo futuro de esperança para toda a Humanidade; esperança essa fundada no Salvador Jesus Cristo que dela havia de nascer. Por sua vez, em ordem a cumprir a transcendente missão de acolher em seu seio o Salvador do Mundo, Maria foi esmeradamente preparada desde o primeiro momento da sua existência com o privilégio de ficar isenta de toda a espécie de pecado e, por isso, é imaculada desde a sua Conceição.

Hoje, ao contemplarmos este privilégio de Maria, a nossa atenção volta-se para a dignidade de todo ser humano, sujeito de direitos, mas sobretudo do direito dos direitos que é o direito à vida, desde o primeiro momento da sua concepção. É este um direito que a sociedade e as suas leis parecem querer desistir de proteger, mas de facto ele é o direito fundamental e sem ele os outros de nada valem. E pelo facto de estarmos diante de seres humanos indefesos, mais se impõe que cuidemos deles e os protejamos por todos os meios ao nosso alcance. Por isso, todas as crianças, frágeis e sem defesas, merecem que, nesta hora, por elas dirijamos a Maria Imaculada, a Mãe modelo de todas as mães, uma prece muito especial.

Voltando ao sim de Maria, através do Anjo Gabriel, verificamos que ele, por um lado, contrasta com a atitude da primeira mulher, mas, por outro lado, é modelo do nosso sim a Deus, aquele sim que somos chamados a dar todos os dias e com verdadeira determinação. Como nos lembrava o hino da Carta aos Efésios hoje escutado, cada um de nós foi pensado por Deus desde toda a eternidade. Ele escolheu-nos para cumprirmos no tempo a sua santidade, para sermos seus filhos adoptivos em Jesus Cristo. A nossa vocação, como diz a carta, é sermos um hino de louvor à Sua glória.

Sentimos também que a nossa missão, enquanto discípulos de Cristo, assim como a missão de toda a Igreja, é ajudar a Humanidade inteira a cumprir este desígnio divino de ser “um hino der louvor à Sua glória”. Para cumprir esta importante missão, a Igreja recebe do Espírito Santo o dom de muitos ministérios e entre eles o dom sublime do Ministério Ordenado. O Ano Sacerdotal que estamos a viver é convite de Deus a todo o Seu Povo para valorizarmos e colocarmos no devido lugar o Ministério Ordenado; mas é igualmente convite para sabermos articular com ele e, por ele, em favor de toda a comunidade, a variedade dos ministérios que nela são suscitados pelo mesmo Espírito.

Por isso, escutamos o convite do Santo Padre para que, neste Ano Sacerdotal, todos nós sacerdotes, através de uma cuidada espiritualidade centrada na renovação interior, sejamos cada vez mais padres segundo o Coração de Cristo. E o Papa não se esquece de nos lembrar a nossa fragilidade, dizendo que trazemos connosco um precioso tesouro, mas em vasos de barro. Tem o cuidado de sublinhar o risco do cansaço e mesmo do desânimo que nos espreita a cada passo e que, de facto, nós sentimos a bater-nos à porta em variadíssimas circunstâncias, sobretudo quando o trabalho aumenta e as forças diminuem ou quando o entusiasmo da primeira hora parece arrefecer perante situações adversas e inesperadas. A resposta encontrou-a o Santo Padre na figura carismática do Santo Cura d’Ars, um sacerdote que soube confiar-se por inteiro à Providência Divina e ao Coração de Cristo, único Sacerdote e entregar-se generosamente aos cuidados pastorais de um povo que, de início, o recebeu com muita frieza e até desprezo, mas depois o elegeu como seu pastor e modelo de vida. O segredo deste êxito pastoral esteve no tempo dedicado à oração e ao acolhimento das pessoas, chegando este Santo Cura a passar 16 horas diárias na Igreja, distribuídas entre o sacrário, o altar e o confessionário. E não fiquemos a pensar que ele vivia alheio às necessidades materiais das pessoas, pois também criou o seu centro social paroquial, cuja gestão soube entregar a pessoas criteriosamente escolhidas.

Mas o Ano Sacerdotal não foi pensado e programado só para os sacerdotes. Ele é dirigido, de facto, a todo o Povo de Deus, não só porque todo ele é um Povo Sacerdotal, mas também porque o mesmo Espírito Santo que faz de nós, pelo Sacramento da Ordem, Ministros de Cristo, Cabeça e Pastor do Seu Povo, faz também dos outros discípulos de Cristo servidores da mesma Igreja em outros ministérios não ordenados e muito diferenciados. A nossa responsabilidade é agora sabermos articular bem estes ministérios para serviço do bem comum de toda a Igreja. É-nos, de facto, pedido e com mais insistência neste Ano Sacerdotal, para promovermos o corpo e a comunhão dos ministérios necessários para construir a comunhão da Igreja nas nossas distintas comunidades. E cada vez sentimos mais que é a diferentes corpos de ministérios presididos sempre pelo Ministério Ordenado que o mesmo Jesus Cristo entrega a responsabilidade conjunta e diferenciada de decidir e promover a condução da sua Igreja nas diferentes comunidades que lhe dão rosto.

E agora dirijo-me, de forma especial aos dois candidatos que se apresentam para serem ordenados diáconos. Luís Miguel Freire e Luís Miguel Nobre, hoje dais um passo decisivo na vossa vida pessoal, que o é também na vida da Igreja. Esse passo é a entrada na Ordem dos Diáconos com vista ao Ministério Sacerdotal. O que acabo de dizer sobre o Ano sacerdotal e as interpelações que ele faz quer a nós sacerdotes quer ao conjunto de todo o Povo de Deus são também interpelações dirigidas a cada um de vós. Os tempos presentes em que se desenrola a vida da Igreja e em particular o Ministério Sacerdotal não são fáceis e não se adivinha futuro de mais facilidade. A cultura ambiente em que temos de viver e desenvolver o nosso Ministério, de facto, apresenta-se com progressiva agressividade em relação aos valores evangélicos que queremos viver e defender. É uma cultura com variadas tendências que não ajudam o processo geral da humanização e muito menos ajudam ao cumprimento do nosso Ministério e da nossa missão evangelizadora. Permito-me lembrar algumas dessas componentes da cultura ambiente que nos são adversas. Uma delas é o individualismo e a pretensa autonomia absoluta da consciência pessoal, que conduz ao relativismo. Acrescento-lhe a progressiva perda do sentido de pertença nas pessoas e nos grupos. Outra é o princípio indiscutível da satisfação dos desejos pessoais a qualquer preço acompanhado da liberalização sexual fora de qualquer regra. Destaco também a predominância de um modelo de cultura sem Deus ou pelo menos que pretende, a todo o custo, expulsar Deus do palco da vida social.

A estas dificuldades vindas do exterior juntam-se outras que vêm do interior das nossas comunidades cristãs ou mesmo de nós próprios.

De facto, as comunidades cristãs que temos hoje pedem-nos muito trabalho e quase sempre o mesmo trabalho que pediam quando, há décadas atrás, os sacerdotes eram o dobro daqueles são hoje; mas também quando os habitantes na área dessas mesmas comunidades eram o triplo e até quatro e mais vezes do que hoje são. E com a agravante de que nos pedem com frequência coisas que nós não lhes devemos dar e não se empenham nas propostas que lhes fazemos e que são decisivas para o futuro da Fé nos nossos ambientes. Refiro-me, agora, às propostas de catequese e de formação cristã, que estão longe de ser acolhidas com o entusiasmo desejável. Realmente situações destas ou outras similares podem gerar em nós a sensação de sobrecarga pastoral e até de algum desânimo, com repercussões na saúde física, psicológica e mesmo espiritual e sobrenatural.

E não podemos esquecer-nos que nós próprios também podemos ser fonte de algumas dificuldades para o exercício do Ministério. De facto, o nosso Minsitério nunca se pode confundir com qualquer técnica de condução social. Ele é sempre e só a interpretação visível da Pessoa de Cristo Cabeça e Pastor do Seu Povo. Por isso, ou ele está permanentemente ancorado na relação vital com Cristo ou se tarnsformará em vazio e desilusão. Por isso, a Eucaristia diária, a Liturgia das Horas, a confissão frequente e os tempos especialmente dedicados a organizar a relação com Ele, como são os retiros e especialmente o retiro anual, são factores decisivos para o entusiasmo no desempenho do nosso Ministério, com repercussões na sua componente fundamental de zelo apostólico e missionário.

Convido-vos, por isso e desde já, a reforçardes a vossa preocupação por encontrar formas de darmos conjuntamente cumprimento à radical forma comunitária do Ministério Sacerdotal, assim como também à Fraternidade Sacramental que todos os Sacerdotes são convidados a viver em Presbitério.

O facto de hoje celebrarmos também uma instituição no Ministério de Leitor, dentro da caminhada para a Ordenação Sacerdotal, ajuda-nos a retomar a consciência de que os ministérios são para ser exercidos em comunhão e num corpo sempre Presidido pelo único Pastor que é Cristo representado nos Ministros Ordenados.

A terminar, desejo pedir a ajuda de Deus e a protecção de Maria Imaculada para o nosso esforço conjunto de darmos cumprimento às responsabilidades que nos estão confiadas nesta hora particular da vida da Igreja e da sociedade como tal.

 

Sé da Guarda, 8 de Dezembro 2009

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