Homilia de D. Manuel Clemente na cerimónia de ordenações

“As criaturas esperam ansiosamente a revelação dos filhos de Deus!” (Rm 8, 19) Amados irmãos e irmãs, muito especialmente os que são ordenados nesta Santa Missa: Demos, antes de mais e sempre, muitas graças a Deus por tudo quanto realiza na Igreja e no mundo, na Igreja para o mundo. Parece um enunciado simples e comezinho, mas já pressupõe muita convicção essencial Pressupõe que Deus é fonte permanente de vida, para cada um de nós e para o mundo inteiro. Não está ausente, mas sim presente, como garantia do autêntico acontecer das coisas. Digo acontecer, porque a experiência quotidiana nos mostra como por vezes elas mais parecem “desacontecer”, em muitas contrafacções da existência própria e alheia. Consideração esta que nos leva a outro ponto, a saber, que a omnipresença de Deus como criador não significa a sua exclusividade como fazedor ou causa imediata dos acontecimentos. Essa é aliás a nossa dramática constatação: o bem ou o seu contrário, dependem, em maior ou menor medida, da liberdade e responsabilidade de cada um. Liberdade e responsabilidade que nem sempre se exercem devidamente… Mais importante e esperançoso é afirmar que Deus não se conforma com as consequências negativas do mau uso da liberdade que nos dispensa. Antes nos recria e plenifica em Cristo e no Espírito de Cristo, reconstruindo em nós – e por nós no mundo – a verdade, a bondade e a beleza de todas as coisas. Se confessamos a Deus como nosso princípio, confessemo-Lo também como nosso destino e acolhamos agora o seu amor criador e recriador de todas as coisas em Cristo. Sim, amados irmãos e irmãs, há dois mil anos não se somou à história da humanidade mais um facto “religioso”, na senda de tantos outros anteriores, dentro duma série que também continuasse: série em que aliás não faltariam altas expressões de sabedoria e humanidade. Nós sabemos que na Páscoa de Cristo o tempo se ultimou qualitativamente, oferecendo-se agora como plenitude, para o Pentecostes do mundo inteiro. E reconhecemos também, e partilhamo-lo com todos, que em Cristo a criação surge renovada, respirando finalmente a comunhão prometida do propósito divino. Assim acontecia com Ele, “a quem o vento e o mar obedeciam” (cf. Mc 8, 27). E ainda mais agora, quando já nem há portas fechadas à sua presença (cf. Jo 20, 19). Aliás, interessantíssimo é verificar como na vida de tantos santos o Espírito e a liberdade de Cristo dão à natureza um outro respiro e total comunhão. Na verdade, a ecologia perfeita chama-se santidade. Nesse sentido “trabalha” constantemente, na discrição sua própria, a Trindade divina: O Pai por Cristo, no amor criador e criativo do Espírito. Ou como tão surpreendentemente disse o mesmo Cristo: “O meu Pai continua a realizar obras até agora e Eu também continuo!” (Jo 5, 17). Compreendamos então a verdade da exclamação paulina que ficou a ressoar nestas naves e nos nossos corações: “Na verdade, as criaturas esperam ansiosamente a revelação dos filhos de Deus!”. Esperam sim. Esperam com tantas vozes, gritantes ou surdas, de cada noticiário ou constatação pessoal. Esperam de perto ou de longe, em interdependência geral. E essa esperança, tão universal, espontânea e persistente, traz, já em si mesma, a garantia da resposta. Duma resposta que só pode ser dada pelo próprio Deus, que também infunde e garante a expectativa. Encontramo-la, a essa “ansiosa esperança”, no que a humanidade guarda de mais antigo e recôndito, acreditando nalguma imortalidade, a pouco e pouco definida, entrevendo a vitória final da justiça, não desistindo de si mesma, apesar de tudo… Encontramo-la, a essa ansiosa esperança, na alma dos poetas, mesmo quando aparentemente incrédulos. Encontramo-la, a essa ansiosa esperança, no ânimo dos profetas, abertos sempre à derradeira palavra de Deus. Encontramo-la, a essa ansiosa esperança, na procura que fazemos uns dos outros, porque, ao fim e ao cabo, não desistimos duma resposta, pequena que seja, para começar. E esta “esperança”, por Deus suscitada na criação inteira e pela humanidade apercebida como consciência própria, teria de ter resposta. Teve-a, de facto, em Cristo. Abramos agora a todos e à actualidade também o resumo largo e o círculo completo, de criação e conclusão, de expectativa e resposta, do surpreendente início da Carta aos Hebreus (1, 1-2): “Muitas vezes e de muitos modos, falou Deus aos nossos pais, nos tempos antigos, por meio dos profetas. Nestes dias, que são os últimos, Deus falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e por meio de quem fez o mundo”. “Deus falou-nos por meio do Filho”, resposta definitiva e cabal à “ansiosa esperança” que o mundo transporta, transportando ela mesma o mundo. Só que, de Deus para nós, tudo é surpreendente. Surpreendem-se os sábios com as fronteiras insuspeitadas da criação, no macro ou no micro da sua grandeza; surpreendemo-nos todos com a espantosa capacidade de ser, persistir e inovar que as pessoas revelam, por vezes nas condições menos propícias: em princípio, pois que “a necessidade aguça o engenho”. É esta admiração e espanto, esta surpresa mantida, que nos acrescenta em humanidade e aprofunda em religiosidade. Como planta que se abra ao sol; como terra fecundada à chuva, lembrava-nos Isaías na primeira leitura, falando pelo próprio Deus: “Assim como a chuva e a neve que descem do céu não voltam para lá sem terem regado a terra, sem a terem fecundado e feito produzir, […] assim a palavra que sai da minha boca não volta sem ter produzido o seu efeito…”. Mas atendamos ao que Deus se compara, na comunicação de si: chuva, neve… E ao que nos compara a nós: terra a regar… Elementos fundamentais, de que tendemos a esquecer-nos, entretidos no acessório; elementos simplicíssimos, que exigem o olhar mais límpido e disponível, menos distraído ou turvado: “Felizes os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5, 8). Quem tinha um coração e um olhar assim, “viu” e “ouviu” a Deus nos gestos e palavras de Cristo. Assim na humanidade compartilhada, como Jesus disse a Filipe: “Há tanto tempo que estou convosco, e não me ficaste a conhecer, Filipe? Quem me vê, vê o Pai. […] Não crês que Eu estou no Pai e o Pai está em mim?” (Jo 14, 9-10). Assim também na humanidade crucificada e ressuscitada, como Tomé finalmente confessou: “Estando as portas fechadas, Jesus veio, pôs-se no meio deles e disse: ‘A paz esteja convosco!’. Depois, dirigiu-se a Tomé: ‘Olha as minhas mãos: chega cá o teu dedo! Estende a tua mão e põe-na no meu peito. E não sejas incrédulo, mas fiel’. Tomé respondeu-lhe: ‘Meu Senhor e meu Deus!’” (Jo 20, 26-28). Caríssimos ordinandos: parecendo falar em geral, tudo quanto disse é muito particularmente a vós que se destina. Mais ainda, é na vossa vida até aqui e na vossa vida a partir daqui que eu vejo realizada a Palavra que escutámos. Se assim estais agora, tão perto já do Espírito que fará de vós sacramentos vivos e activos de Cristo diácono e pastor do seu povo, é porque alimentastes a esperança e não a iludistes com pseudo respostas imediatistas e frustrantes; se assim estais agora, é porque vistes e ouvistes a resposta de Deus em Cristo, discreta e fundamental resposta que só as almas límpidas enxergam e acolhem; se assim estais é porque vos dispusestes a passar absolutamente para o lado da resposta de Deus à “ansiosa esperança” que a criação mantém e a mantém viva a ela, persistentemente viva e expectante. No vosso caso, pelo sacramento da Ordem, tudo se disporá nesse sentido, inteligência e afecto, vontade e decisão. No Espírito de Cristo, respondereis como Ele um dia: “O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e consumar a sua obra” (Jo 4, 34). E em vós e por vós, em benefício da Igreja e do mundo, da Igreja para a salvação do mundo, se realizará a melhor conclusão da parábola escutada: “E aquele que recebeu a palavra em boa terra é o que ouve a palavra e a compreende. Esse dá fruto e produz ora cem, ora sessenta, ora trinta por um!”. Sé do Porto, 13 de Julho de 2008 + Manuel Clemente, Bispo do Porto

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