Homilia de D. António Montes Moreira, bispo emérito de Bragança-Miranda, na Missa da Ceia do Senhor

Quinta-feira Santa – Missa da Ceia do Senhor

Catedral de Bragança, 21h00

Homilia de D. António Montes Moreira, Bispo Emérito de Bragança-Miranda

Quinta-Feira Santa – Ceia do Senhor

  

Nesta noite solene de Quinta-Feira Santa celebramos, de memória agradecida, o dom da Eucaristia.

Na segunda leitura (1 Cor 11, 23-26) escutámos o relato mais antigo da instituição deste sacramento. Foi escrito por S. Paulo pelo ano 57, cerca de 25 anos depois da última ceia de Jesus com os Apóstolos. O seu núcleo central  –   «Isto é o Meu Corpo. Este cálice é a Nova Aliança no Meu Sangue. Fazei isto em memória de Mim»  –  está igualmente presente nos evangelhos de S. Mateus, S. Marcos e S. Lucas, cuja redação final data de cerca do ano 70. Com estas palavras de Jesus no Cenáculo, a acompanhar a oferta do pão e do vinho, nasceu a Eucaristia.

Ao narrar o acontecimento fundacional do Cenáculo S. Paulo acrescenta uma reflexão teológica: «Sempre que comerdes este pão e beberdes este cálice, anunciareis a morte do Senhor até que Ele venha» (1 Cor 11, 26).

Na esteira do Apóstolo das Gentes e tomando por guia a encíclica do papa S. João Paulo II sobre a Eucaristia, Ecclesia de Eucharistia (EE), meditemos nas três  exclamações da assembleia litúrgica em resposta à proclamação «mistério da fé», feita pelo celebrante a seguir à consagração: «Anunciamos, Senhor, a vossa morte; proclamamos a vossa ressurreição; vinde, Senhor Jesus!».

  1. Anunciamos, Senhor, a vossa morte.

           Como ouvimos na primeira leitura (Ex 12, 1-8 e 11-14), o povo hebreu revivia  cada ano a libertação da servidão no Egito com a refeição ritual da imolação do cordeiro pascal. Esta celebração era uma prefiguração do sacrifício de Jesus no Calvário. Ele próprio o anunciou três vezes aos discípulos. Por exemplo: «Subimos agora a Jerusalém e vai cumprir-se tudo o que foi escrito pelos profetas acerca do Filho do Homem: vai ser entregue aos gentios, vai ser escarnecido, maltratado e coberto de escarros e, depois de o açoitarem, vão dar-lhe a morte. Mas, ao terceiro dia, ressuscitará» (Lc 18, 31-33). Morrendo na cruz, Jesus deu-se a conhecer como o verdadeiro cordeiro pascal: tomou sobre si os pecados de toda a humanidade e reconciliou-nos com o Pai celeste.

            Na última ceia Jesus tomou o pão e o cálice com vinho e disse: «Isto é o meu Corpo que vai ser entregue por vós… Fazei isto em memória de Mim… Este cálice é a nova Aliança no meu Sangue que vai ser derramado por vós» (Lc 22, 19-20). Deste modo, instituiu o sinal, o sacramento, da Eucaristia, antecipando o «sacrifício que algumas horas depois realizaria na cruz pela salvação de todos», perpetuando-o «sacramentalmente em cada comunidade que o oferece pela mão do ministro ordenado» e aplicando «aos homens de hoje a reconciliação obtida de uma vez para sempre por Cristo para a humanidade de todos os tempos» (EE, n.º 12).

            Continua  S. João Paulo II: «o sacrifício de Cristo e o sacrifício da Eucaristia são um único sacrifício… A Missa torna presente o sacrifício da cruz, não é mais um, nem o multiplica. O que se repete é a celebração memorial, de modo que o único e definitivo sacrifício redentor de Cristo se atualiza incessantemente no tempo» (EE, n.º 12).

            O Concílio Vaticano II sublinha que os fiéis, participando no sacrifício eucarístico de Cristo, também oferecem a sua vida ao Senhor. Caso contrário, a presença na Eucaristia seria ritualismo vazio. Participar na Missa implica  a missão e o encargo de uma vida digna do nome de cristão, dentro e fora das paredes da igreja.

  1. Proclamamos a vossa ressurreição

 

O acontecimento culminante da Semana Santa é a ressurreição de Jesus e a passagem (páscoa, em hebraico, significa ‘passagem’) da sua humanidade glorificada ao seio da Santíssima Trindade. Por isso, na Eucaristia não anunciamos apenas a morte do Senhor;  proclamamos também a sua ressurreição.

«Por estar vivo e ressuscitado», explica S. João Paulo II, «é que Cristo pode tornar-se ‘pão da vida’ (Jo 6, 35 e 48) e ‘pão vivo’ (Jo 6, 51) na Eucaristia» (EE, n.º 14). A vida cristã dos fiéis alimenta-se na participação da Eucaristia e na comunhão do Corpo do Senhor, bem como, fora da Missa, na visita e na adoração de Jesus, presente no Santíssimo Sacramento. A Eucaristia constrói e edifica a Igreja.

  1. Vinde, Senhor Jesus!

 

A terceira exclamação da assembleia litúrgica, afirma ainda S. João Paulo II, «exprime e consolida a comunhão com a Igreja celeste» (n.º 19). Deste modo, a Eucaristia é uma prefiguração da nossa união com Deus na eternidade.

Todavia, prossegue o Papa, «se a visão cristã leva a olhar para o ‘novo céu’ e a ‘nova terra’ (Ap 22,1), isso não enfraquece, antes estimula o nosso sentido de responsabilidade pela terra presente». Os cristãos «têm o dever de contribuir com a luz do Evangelho para a edificação de um mundo à medida do homem e plenamente conforme ao desígnio de Deus» (EE, n.º 20).

No seu evangelho S. João coloca no capítulo VI o discurso de Cristo prometendo «o pão que Eu hei-de dar… pela vida do mundo» (Jo 6,51), mas não refere a instituição da Eucaristia durante a última ceia. No evangelho desta celebração (Jo 13, 1-15) Jesus aparece a lavar os pés aos discípulos. Esse gesto de acolhimento a hóspedes era tarefa para servos e escravos. Daí, a reação espontânea de Pedro a opor-se à iniciativa do Mestre. O Senhor explicou por que o fazia: «Se Eu vos lavei os pés, sendo Senhor e Mestre, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Eu dei-vos o exemplo, para que, assim como Eu fiz, vós façais também» (Jo 13, 14-15).

S. João não substituiu o relato da instituição da Eucaristia pelo do lava-pés. Mais precisamente, apresenta o lava-pés como exemplificação inspiradora da dimensão fraterna e social da Eucaristia. Foi o mandamento novo que Jesus nos deixou na Última Ceia: «que vos ameis uns aos outros como Eu vos amei» (Jo 13, 34).

Catedral de Bragança, 6 de abril de 2023

 

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