Homilia de D. António Montes Moreira, Bispo Emérito de Bragança-Miranda, na Celebração da Paixão do Senhor, Sexta-feira Santa 

Sexta-Feira Santa – Celebração da Paixão do Senhor

A pergunta de Pilatos a Jesus «Que é a verdade?» (Jo 18, 38) manifesta o ceticismo dominante em vários setores da sociedade romana no tempo do Império, designadamente na classe dirigente. Para esses grupos a religião tradicional era um verniz cultural que não forjava convicções sólidas. A religião não passava de mero ritualismo. Imperava o pragmatismo e a busca da eficácia administrativa, bem caraterística da civilização romana.

Pilatos nem parece interessado na resposta à sua própria pergunta, pois, acrescenta logo a seguir o evangelista, «dito isto, saiu novamente para fora» do pretório para falar aos judeus (Jo 18, 38). A interrogação de Pilatos soa mais como  comentário depreciativo  à declaração de Jesus: «vim ao mundo para dar testemunho da  verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz» (Jo 18, 37).

Mais ainda: o ceticismo de Pilatos impedia-o de ter as antenas do espírito abertas à busca da verdade. O cético deleita-se na dúvida. A verdade não se perfila no seu horizonte.

Com este perfil, entendemos as hesitações e finalmente a cedência de Pilatos. Apesar de ter afirmado três vezes que não encontrava culpa nenhuma em Jesus (Jo 18, 31 e 19, 4 e 6) e até de procurar libertá-l’O (Jo 19, 12), Pilatos intimidou-se perante a argumentação de que, «se libertasse Jesus, não seria amigo de César, pois todo aquele que se faz rei, como Jesus, é contra César» (Jo 19, 12); e acabou por entregar Jesus para ser crucificado (Jo 19,16). Foi uma recusa da verdade em nome do «politicamente correto».

2. A pergunta de Pilatos «que é a verdade?» atravessa os séculos.

Também nos dias de hoje largos setores da sociedade aderem ao ceticismo religioso e professam o agnosticismo. Certamente o laborioso itinerário espiritual de muitos não crentes merece respeito e consideração.  Mas quantas vezes o agnosticismo é refúgio cómodo que permite instalar-se na dúvida sem atender à obrigação existencial de refletir no sentido da vida: quem somos, donde viemos e para onde vamos? A resposta a estas perguntas basilares vai sendo adiada indefinidamente. Neste panorama nebuloso e distraído impera o relativismo, a ditadura do relativismo, como lhe chamava o papa Bento XVI. Em tal horizonte parece não haver lugar para a pergunta de Pilatos: «Que é a verdade?». Nem talvez haja interesse nem desejo de conhecer a resposta. Opta-se pelo que é considerado correto politicamente, culturalmente ou socialmente.

3. A resposta estava ali, diante de Pilatos. É o próprio Cristo.

Um escrutador engenhoso do texto evangélico até encontrou a resposta na  formulação latina da pergunta de Pilatos: Quid est veritas? / Que é a verdade? As 14 letras da pergunta, se forem ordenadas de outro modo, oferecem a resposta: Est vir qui adest / «é o homem que está aqui». As letras da resposta são as mesmas da pergunta.

Para além e mais fundo que esta curiosidade de palavras, a resposta é o próprio Cristo. No diálogo com Pilatos, Ele mesmo declarou: «Para isto nasci, para isto vim ao mundo: para dar testemunho da verdade» (Jo 18, 37).

Cristo veio revelar-nos a verdade de Deus e do homem. De Deus que é Pai de misericórdia e por isso enviou o Filho ao mundo para salvar o mundo; do homem que só se realiza plenamente vivendo na órbita de Deus. Como escreveu Santo Ireneu de Lião no final do século II, «a glória de Deus é o homem vivo e vida do homem é a visão de Deus».

Revelando-nos a verdade profunda sobre Deus e sobre o homem, Cristo é, como Ele próprio disse, «o caminho, a verdade e a vida» (Jo 14,6).

4. Finalmente, a pergunta de Pilatos constitui hoje uma interpelação constante para cada um de nós. Sem descer a casuísticas que nos podem afastar do essencial, o desafio é este: sermos cristãos verdadeiros.

Verdadeiros, no nome e na realidade da vida. Dentro e fora das quatro paredes da igreja. Celebrando aqui os sacramentos e vivendo lá fora segundo critérios cristãos. Sendo os sacramentos encontro pessoal com Deus e momento privilegiado de compromisso cristão, e não apenas nem primeiramente acontecimento social,  quanto há que melhorar, entre nós,  na celebração e vivência de casamentos, crismas,  primeiras comunhões e batismos?

Só deste modo responderemos adequadamente à pergunta «Que é a verdade?», dando testemunho da verdade de Cristo na nossa vida. 

Catedral de Bragança, 7 de abril de 2023, 15 h.

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