Homilia de D. António Carrilho no 81.º aniversário da morte de Madre Virgínia da Paixão

A Mensageira do Imaculado Coração de Maria

Ao despertar da aurora, na madrugada de 17 de Janeiro de 1929, a Madre Virgínia Brites da Paixão partiu suavemente para o Céu. Última Abadessa Clarissa do Mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, havia dezanove anos, desde 13 de Outubro de 1910, que se encontrava na casa de seus pais, no Lombo dos Aguiares, freguesia de Santo António.

Momentos antes de partir para Deus, embora já enfraquecida pelos inúmeros sofrimentos, os seus lábios entreabriram-se num sorriso encantador e exclamou com voz forte: “Vamos para o Céu! Vamos para o Céu!” Era o fruto maduro, que tombava humildemente no abraço da eternidade do Amor.

O P. Fernando Augusto da Silva, distinto historiador madeirense, referindo-se ao seu funeral, afirmou que, apesar da sua profunda humildade e simplicidade, era extremamente amada e admirada por todos. O “adeus final” foi uma verdadeira apoteose!

 

Madre Virgínia, uma clarissa mística

A Madre Virgínia da Paixão foi um admirável dom de Deus à nossa terra e à Igreja. Com o seu testemunho de santidade, marcou profundamente a Diocese do Funchal, no princípio do séc. XX, nos conturbados tempos de graves hostilidades e perseguições contra a Igreja Católica, como foi a época histórica da implantação da República.

No próximo dia 5 de Outubro, faz precisamente 100 anos da expulsão das Ordens Religiosas, em Portugal. Também as Clarissas tiveram de deixar o Mosteiro de Nossa Senhora das Mercês. Profundamente triste e desolada, a Madre Virgínia regressou à casa paterna, no Lombo dos Aguiares. Habituada ao silêncio e à clausura do seu Mosteiro, como religiosa contemplativa clarissa, procurou manter-se fiel ao carisma de Santa Clara, na oração, na adoração ao Santíssimo Sacramento e no trabalho. Pela sua habitual intimidade com Deus, vivia verdadeiramente a “clausura do coração”. Sempre que lhe era possível, visitava as suas Irmãs que se encontravam em Câmara de Lobos, reunidas em dois grupos, em casas particulares: um no sítio da Palmeira e outro na Caldeira. Com grande caridade e espírito de serviço, animava-as a viver em comunhão eclesial, na fidelidade a Cristo e ao espírito dos Fundadores.

 

Em total comunhão de Amor

O relato do Profeta Isaías, que acabámos de escutar, na primeira leitura, está marcado pela urgência da hora de Deus, sempre inovadora e transmissora de um futuro de Esperança. O profeta, que neste contexto é aquele que, junto de Deus, intercede incansavelmente pelo seu povo, não se calará “enquanto a salvação (do Senhor) não resplandecer como facho ardente” (Is 62,1).

A simbologia esponsal deste belíssimo cântico poético enaltece o amor eterno de Deus e o júbilo do encontro íntimo com o Seu povo. No banquete da Nova Aliança, aludido no texto do Evangelho, Maria, a Mulher vigilante e atenta aos sofrimentos dos outros, convida-nos a escutar e a ser fiéis aos gestos e às palavras de Jesus (cf. Jo 2, 5), o Esposo definitivo da Humanidade, que oferece o vinho novo da alegria.

Estas palavras de Vida podem muito bem aplicar-se à Madre Virgínia. De facto, a santa religiosa foi esta sentinela vigilante, que intercedeu continuamente pelas necessidades da Igreja e do mundo, e se entregou por inteiro ao Senhor, dia e noite, em total comunhão de Amor. Mulher forte, embora fragilizada pelos sofrimentos, enriquecida com extraordinárias graças místicas, conservou-se humildemente escondida e fiel até ao fim. Em obediência a Jesus, confiava ao seu confessor, P. Prudêncio, as manifestações sobrenaturais, que experienciava no seu íntimo.

O Espírito Santo, quando habita um coração fiel, embeleza-o e enriquece-o com os seus inefáveis e variados dons, e fá-lo vibrar em uníssono, como as cordas de uma cítara. A Madre Virgínia viveu esta profunda sinfonia de Infinito, no amor e na dor, na entrega total da sua vida a Deus pela salvação da humanidade. Como nos recorda São Paulo, na segunda leitura (cf. 1 Cor 12, 4-11), os diversos carismas, derramados no coração da comunidade eclesial, são essenciais à sua vida íntima, em ordem à edificação, à unidade e santificação da mesma. Revelam nela uma consciência profunda de pertença e comunhão com a Igreja, Esposa de Cristo.

Não julguemos, porém, que a santa Clarissa, porque mergulhava habitualmente no oceano do Amor de Deus, ignorava as realidades humanas, com as suas preocupações, sofrimentos e alegrias. Bem pelo contrário: com grande delicadeza e caridade, acolhia carinhosamente todas as pessoas, que lhe pediam ajuda, privilegiando os pobres, doentes e moribundos; por eles rezava, visitava-os e dirigia-lhes palavras de conforto e de esperança. A verdadeira santidade é o testemunho da vivência heróica do Amor.

 

A família Imperial Austríaca

Desta delicadeza e extrema bondade, temos o testemunho da família imperial austríaca, que a 21 de Março de 1922 lhe escreveu uma carta, pedindo a sua poderosa intercessão junto do Senhor e do Imaculado Coração de Maria. O Imperador Carlos de Áustria fora acometido de doença grave, e a família, cheia de fé e de esperança, pedia orações pela sua cura. Em oração de profunda interioridade, Nossa Senhora terá manifestado à Madre Virgínia o desígnio insondável de Deus, sobre a morte próxima do Imperador. “Mãos estranhas desejavam tirar-lhe a vida, e só Deus era o dono da vida e da morte”, ter-lhe-ia comunicado o Senhor. Em sua infinita bondade, Deus não consentiu que o seu fiel servo sofresse tão grave humilhação.

De facto, no dia 1 de Abril do mesmo ano, o Imperador morre santamente, na Quinta do Monte, deixando a esposa inconsolável, sete filhos menores e um para nascer. A Madre Virgínia acompanhou e confortou a Imperatriz Zita e a família enlutada, com palavras de profundo carinho, comunhão na dor e na esperança. Alguns dias mais tarde, por divina inspiração, a Madre disse à desolada esposa que o Imperador já se encontrava na glória eterna, o que muito a ajudou a suavizar tão grande dor. A sua oração, profundamente humilde, revelou-se muito poderosa junto do Senhor. Esta grande amizade com a Imperatriz continuou, mesmo depois da saída da família imperial da Madeira, através de uma assídua correspondência epistolar.

 

O Rosto eucarístico de Jesus

Nos corações de Jesus e de Maria, a Madre Virgínia aprendeu a eminente ciência do Amor e a autêntica Sabedoria, em profunda oração, “toda abrasada em amor”, como refere nos seus escritos autobiográficos. A sua figura humilde irradiava a inefável presença de Deus.

À semelhança de Santa Clara, a Madre Virgínia sentia-se atraída por Jesus Eucaristia, aquela infinita e “sublime humildade”, como ousava dizer Francisco de Assis, também apaixonado pelo mistério eucarístico.

Apesar da distância e do caminho íngreme, a Madre descia e subia todos os dias o Lombo dos Aguiares. Dirigia-se à igreja paroquial de Santo António e participava na santa Missa. Depois permanecia junto do sacrário, no “seu cantinho”, durante muito tempo. Esquecia-se das horas, numa profunda e silenciosa intimidade, plena de entrega, louvor e adoração.

No contexto do Ano Sacerdotal, é com profunda alegria e gratidão a Deus que recordo o particular amor e reverência, que a Madre Virgínia tinha pelos sacerdotes, em especial os da nossa Diocese do Funchal. Eles ocupavam um lugar privilegiado na sua oração e no seu sacrifício. Pedia continuamente a Deus para que fossem santos.

 

A riqueza imensa do Coração de Maria

Foi nestes encontros vivos com Jesus que, um dia, Ele Se manifestou e a escolheu para discípula do Coração Imaculado de Maria: “Tu serás para o Coração Imaculado de Minha Santíssima Mãe, o que foi Margarida Maria para o Meu Divino Coração”.

No livro Uma Mensagem de Amor, de Otília Rodrigues Fontoura, Irmã historiadora clarissa, a autora refere que a surpresa foi ainda maior quando Jesus lhe disse que o tesouro do Seu Coração era o Imaculado Coração de Maria. O mesmo Senhor lhe fez sentir e deu a conhecer a riqueza imensa e os tesouros de abundantes e maravilhosas graças que encerra o Coração Imaculado de Nossa Senhora – a Medianeira de todas as Graças. A Virgem Maria manifestou também a sua dor pelos desprezos e esquecimentos, que recebe dos seus filhos, e o seu ardente desejo de derramar estes favores divinos sobre toda a humanidade, sobretudo naqueles que, longe de Deus, vivem nas trevas do pecado e do mal.

 

Mensagem actual para a Igreja

A grande missão da Madre Virgínia foi divulgar, por vontade de Jesus, a devoção ao Imaculado Coração de Maria e o seu culto público. Nossa Senhora apontou-lhe os meios para difundir esta mensagem, especialmente a devoção dos primeiros sábados, com as respectivas promessas e graças.

Com grande humildade informou o seu confessor das graças extraordinárias recebidas. Ele, por sua vez, comunicou a D. António Manuel Pereira Ribeiro, que aprovou esta devoção mariana e consagrou a Diocese ao Imaculado Coração de Maria, no dia 26 de Agosto de 1926. Sob a orientação do senhor Bispo do Funchal, o P. Prudêncio escreveu ao Papa Bento XV, confiando-lhe tal revelação particular, e foi pessoalmente a Roma entregar-lhe a missiva.

Com a presença da Imagem Peregrina na nossa Diocese, esta celebração ajuda-nos a recordar e a viver a mensagem de Fátima e a devoção ao Imaculado Coração de Maria. De facto, na Madeira, por influência da Madre Virgínia, esta devoção mariana começou três anos antes das Aparições da Cova da Iria e foi um poderoso incentivo para a vivência da fé cristã, na Madeira e Porto Santo.

 

A nossa prece

A Madre Virgínia é uma mística para o nosso tempo e a actualidade da sua mensagem continua a interpelar os filhos da Igreja. A humilde filha de Santa Clara foi, na verdade, uma Luz que brilhou no meio da noite deste mundo e a alegria do seu Deus (cf. Is 62,5). A Igreja irá pronunciar-se, certamente, sobre a heroicidade das suas virtudes e reconhecer a sua santidade. Assim o desejamos e isso pedimos, nesta hora, por intercessão do Imaculado Coração da Virgem Nossa Senhora!

Funchal, igreja do Colégio, 17 de Janeiro de 2010

† António Carrilho, Bispo do Funchal

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