Guerra/Ucrânia: «Intervenção precoce é crucial» – Médicos Sem Fronteiras

A caminho dos quatro meses desde o início da guerra na Ucrânia, Miguel Palma, psiquiatra e coordenador de atividades de saúde mental na Ucrânia, destaca necessidade de acompanhamento psicossocial das vítimas do conflito

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

Qual tem sido a ação dos Médicos Sem Fronteiras no terreno em que áreas está a atuar na ajuda humanitária às populações atingidas pela guerra na Ucrânia?

Os Médicos Sem Fronteiras reforçaram a presença no país em março deste ano. Já havia projetos na Ucrânia, mas após o início da guerra, eles foram reforçados com novas equipas e temos avaliado as necessidades médicas em vários componentes, quer em termos de aprovisionamento dos hospitais – como os fármacos que estavam em rutura- como no desenvolvimento de atividades médicas, também de saúde mental e apoio social em várias partes da Ucrânia.

Neste momento há vários eixos de intervenção. Um deles é a evacuação de populações vulneráveis que possam estar na linha da frente: muitas vezes existe um enfoque sobre as pessoas deslocadas e refugiadas, mas também é verdade que quem ficou são pessoas que muitas vezes têm dificuldades em sair. Estamos a tentar fazer chegar o apoio médico e psicológico a essas pessoas e também apoiar na evacuação de algumas instituições geriátricas ou instituições psiquiátricas, para zonas seguras do país. Este é um dos nossos eixos de intervenção. Outro eixo é o apoio psicológico a populações vulneráveis, nomeadamente as populações que estão neste momento deslocadas e, portanto, desinseridas da sua comunidade.

 

Que importância tem esse apoio psicossocial num contexto de conflito armado? Qual é a prioridade desta intervenção?

Na Ucrânia, o sistema médico está a conseguir responder às necessidades essenciais da população e, do ponto de vista da saúde mental, as instituições psiquiátricas continuam a funcionar e a prestar apoio aos doentes mentais. No entanto, foi identificado um vazio, naquilo que é o apoio psicológico às populações deslocadas: muitas delas foram expostas a trauma, foram expostas à violência. Algumas delas perderam os seus pertences, perderam familiares.

Há pessoas que têm familiares na frente de batalha, há pessoas que perderam os seus familiares na guerra e há todo um ambiente de incerteza relativamente ao futuro. Uma das nossas áreas de intervenção é apoiar essas pessoas, durante este período particularmente difícil, não só com intervenções especializadas na área da psicologia – com encaminhamento para as instituições – mas também atuando a nível da comunidade, tentando fazer com que a própria comunidade reforce os seus mecanismos de resiliência, de interajuda, criando espaços onde elas se possam reunir, onde elas possam partilhar o seu sofrimento, as suas experiências. É um bocadinho esta a lógica da nossa na intervenção.

Sabendo que estamos num país onde a psicologia, em particular, não estava bem estabelecida – é algo que é estranho à população – a receção tem sido francamente positiva. As pessoas procuram as nossas atividades nos vários pontos onde as temos desenvolvido e tem sido algo que esperamos que possa ser sustentado no tempo, que seja apropriado pelo próprio sistema de saúde nacional.

 

O que é que o levou a partir para a Ucrânia? Quando é que seguiu para o terreno?

Eu pertenço à organização dos Médicos Sem Fronteiras há cerca de cinco anos e, desde então, tenho dedicado a minha vida profissional ao mundo humanitário, a este tipo de intervenções. Fui mobilizado e parti logo na primeira equipa, que chegou no dia 6 de março à Ucrânia, numa fase inicial para fazer a avaliação de necessidades e para tentar perceber qual é o nosso espaço de trabalho – uma vez que é importante fazer esta primeira avaliação para perceber onde é que pode estar o nosso valor adicional, sem nos querermos duplicar ou substituir ao Sistema Nacional de Saúde. Estive nesse primeiro mês, até 31 de março, com a equipa, para fazer a avaliação inicial, e regressei agora a 25 de maio, na perspetiva de ficar três meses para apoiar as atividades dos Médicos Sem Fronteiras.

 

E que histórias o têm marcado mais neste trabalho? Há alguma que queira destacar?

Todas as nossas intervenções são marcantes e permitem-nos ouvir histórias impressionantes, devido ao drama humano que representam, mas também pela impressionante resiliência do povo ucraniano. Na última semana, 15 pessoas idosas foram transportadas de um hospital na linha da frente para um lugar onde, neste momento, estão seguros.

Acho particularmente interessante este projeto, e gosto de o ressalvar, porque muitas vezes estas são as populações que são esquecidas, abandonadas, deixadas para trás, por via da sua doença, da sua incapacidade física ou incapacidade social. Podem ter alguma dificuldade em perceber o que se está a passar e não conseguir tomar as medidas de segurança que são essenciais para se protegerem dos bombardeamentos. Foi um dos projetos que mais nos alegrou, poder trazer estas 15 pessoas, que são as mais recentes, mas o projeto de evacuação – se não me engano- já permitiu trazer para lugares seguros cerca de 600 ou mais pessoas por todo o país.

Cada história é única, cada história tem os seus traços, do mais negativo que o ser humano pode experienciar, mas também a beleza da resiliência e da entreajuda entre as pessoas deslocadas, da comunidade que os acolhe.

 

Neste conflito tem sido muito destacada a situação das crianças. Depois de dois anos de pandemia, a guerra vem comprometer seriamente o percurso educativo desta nova geração?

É um facto e, sem dúvida, esse tem sido um foco também da nossa atuação. Em particular, há um encorajamento por parte do governo e das autoridades ucranianas para que possamos ajudar no apoio psicológico a estas crianças. A narrativa que nos têm apresentado é que nunca viram este tipo de situações, com crianças a apresentar ansiedade pós-traumática. E, de facto, se há intervenção, se há atividade que pode ter um potencial reabilitativo é o trabalho com crianças.

 

Imagino também que a preocupação seja com este hiato, por assim dizer, no que seria o desenvolvimento normal destas crianças, para que não deixe marcas para o futuro que sejam irreparáveis?

Exatamente, tentar fazer que o seu desenvolvimento retome uma trajetória o mais normal possível, apesar das circunstâncias. Isto também implica apoiar os pais. Muitas vezes, a criança é apenas aquilo que nós chamamos o elemento sintomático de uma disfunção maior, a nível da família. Portanto, é importante não esquecer que a criança está inserida numa família, a ideia obviamente é este apoio compreensivo, focado na criança mas também na família: tentar minimizar o impacto da guerra, o impacto da pandemia, do deslocamento no desenvolvimento da criança.

 

As gerações mais velhas enfrentam também o desafio de reconstruir o que ficou destruído pela guerra. Sente que há essa perspetiva de esperança ou é uma situação sentida como insuperável?

A minha posição é a de coordenação dos vários projetos, pelo que vou ouvindo aquilo que os meus colegas que estão mais próximos do terreno me vão dizendo. Muito embora estas pessoas tenham experienciado coisas aterrorizadoras e tenham vivido, ainda vivem, momentos de incerteza, que são extremos, existe um sentimento de esperança, existe uma perspetiva de que uma normalidade possível esteja para breve. Isto ainda é um mecanismo, daquilo que nós chamamos um mecanismo de coping bastante forte, esta perspetiva de que em breve a guerra poderá terminar. Se se irá verificar-se ou não, isso é uma questão a que não conseguimos responder.

 

Isso alimenta também a própria esperança das pessoas. Essa ideia de que a guerra em breve vai terminar?

Exatamente. O nosso papel é mobilizar essa esperança, porque ela é muito importante para fazer com que as pessoas prossigam a sua vida, o mais normal possível.

 

Foto: Lusa/EPA

Do que vamos vendo em mais de 100 dias de guerra, a separação das famílias, a interrupção da educação do trabalho, o impacto na saúde mental e na saúde física dos refugiados terão consequências duradouras. Estas imagens de guerra vão ficar sempre na vida destas pessoas?

A lógica da nossa presença, neste momento, é esta: quanto mais cedo se fizer uma intervenção terapêutica, maior o potencial de proteção e de prevenção do desenvolvimento de patologias mais graves ou de se tornarem crónicos os sintomas que que que existem. Em determinados casos é importante uma perspetiva ao longo termo, mas sabemos que a intervenção precoce é crucial.

Eventualmente haverá um subtipo de pessoas, uma subpopulação, que necessitará de cuidados a longo prazo. A lógica da intervenção no trauma é uma lógica muito semelhante à da cicatrização. Isto é: aconteceu um episódio traumático, na vida da pessoa, e isso fará parte da sua identidade. Não pode é dominar por inteiro a identidade. A nossa intervenção é na lógica de promover uma boa cicatrização daquela ferida que vai lá estar, que fará parte da experiência e da vida da pessoa. Vamos tentar ajudar a pessoa a prosseguir a sua vida, independentemente dessa cicatriz traumática.

 

Até porque não se pode fazer como nos computadores, um reset…

Exatamente. Nem seria o ideal, existe um crescimento pós-traumático. Nós tentamos promover que a pessoa se desenvolva, para além do trauma, e que possa prosseguir e persistir. Será natural que uma pessoa que viveu esta esta experiência potencialmente traumática, em ambientes que a façam relembrar, possa ter sintomas, possa ter sofrimento que recorda aquela experiência, mas que isso não domine por inteiro a sua vida.

 

A difusão permanente de imagens da guerra não poderá também ter efeitos negativos na saúde mental daqueles que são mais sensíveis?

É um facto. Uma das necessidades que o ser humano mais precisa de suprir é a necessidade de controlo. É importante que a pessoa esteja atualizada, esteja bem informada, mas existe o perigo de o excesso de informação ter efeitos perniciosos e poder ser, em si, também traumatizante. É importante que a pessoa identifique qual é o seu nível de tolerância face a esta informação.

Uma das regras essenciais é escolher um meio informativo que tenha informações corretas; as redes sociais, em regra, são um fator nefasto, porque muitas vezes promovem as chamadas ‘fake news’ e exploram bocadinho o medo.

A ideia é que a pessoa regule a sua necessidade de informação, para ter controlo sobre o ambiente e sobre o que se está a passar, mas não se exponha em excesso. Há o risco de um esgotamento emocional por via desta exposição excessiva a imagens terríveis de guerra e a informação que gera ansiedade.

 

As redes sociais são muito difíceis de controlar, mas no que diz respeito, por exemplo, aos media – e não estou aqui com esta pergunta a querer criar alguma situação de censura -, da parte da Comunicação Social não deveria ou não poderia haver um maior cuidado na transmissão, na difusão dessas imagens?

Sem dúvida, é um dos elementos essenciais na saúde mental de uma população. Acredito que que é importante haver – não estou a defender algum tipo de censura – standards de comunicação que devem ser promovidos a todo o custo.

 

Todos queremos que sejam cumpridos os padrões jornalísticos de mais alta qualidade, que sempre tivemos, porque muitas vezes, em cenários de guerra, o sensacionalismo toma esse lugar de destaque.

Exatamente.

 

Voltando ao cenário do conflito na Ucrânia: acredito que seja quase esmagadora, para quem chega a uma situação destas, a quantidade de sofrimento e de problemas que tem de enfrentar. Por que decidiu estar no terreno e ajudar no concreto? Acredita que pode fazer a diferença?

Uma pessoa de cada vez, acredito. Se não acreditasse, não estaria aqui ao fim de tantos anos e diversas missões. Acredito que só o estar lá, onde mais ninguém está, possa fazer a diferença na vida de uma pessoa, de um grupo de pessoas, da população, levando a estas pessoas cuidados de saúde de elevada qualidade, nesta fase onde tudo falta.

Quando falo em cuidados de saúde, não é apenas um medicamento, é todo um cuidar holístico geral, ter atenção a quais são as necessidades sociais. Tudo isto pode fazer a diferença, na vida de uma pessoa, por não se sentir abandonada e saber que existe quem cuida e quem tem atenção por ela.

 

Disse que a saúde mental não era algo muito desenvolvido na Ucrânia. Isso surpreendeu-o, de alguma forma?

Não me surpreendeu, na medida em que já tive noutros países da esfera de influência da antiga União Soviética, que seguem este modelo soviético de organização de serviço: um modelo muito virado, do ponto de vista da saúde mental, para a psiquiatria, para um doente mental grave e socialmente disruptivo. Surpreendeu-me, no entanto, a vontade de alterar esse modelo, que vem desde 2014, de uma reforma geral da saúde, onde se estabeleceu um objetivo de transformação.

Os ucranianos não param de relembrar que a Ucrânia está em guerra desde 2014, isto foi só uma acentuação do conflito, com uma invasão em larga escala. Portanto, as condicionantes de guerra fizeram com que a reforma da saúde mental não pudesse ter sido implementada plenamente.

Apesar de tudo, existe um movimento, a nível do Ministério da Saúde e das organizações, de tornar os serviços de saúde mental mais acessíveis e estabelecer uma maior proeminência da psicologia e de uma proibição e uma descentralização dos cuidados para a periferia, para os cuidados de saúde primários, que que não existiam antes. Esse movimento existe, mas ainda está bastante incompleto.

A nossa estratégia é inserir-nos nessa reforma, de uma maneira bastante modesta, porque não temos os meios para poder implementá-la nível nacional, fazendo com que a nossa intervenção se inscreva naquilo que são as linhas diretrizes da reforma da Ucrânia. Existem áreas que merecem desenvolvimentos e, naquilo que pudermos contribuir, a organização está cá para isso.

 

Há quem sugira que o esquecimento e o perdão vão demorar muitos anos a passar. No que às vítimas diz respeito, as sequelas serão para a vida?

Ajuda saber perdoar, porque isso permite encerrar, ajuda a encerrar sentimentos que são negativos e que consomem emocionalmente a pessoa. O que é importante é que as pessoas consigam integrar o episódio ou a experiência de guerra, a experiência potencialmente traumática, na sua narrativa de vida. Muitas vezes fala-se em síndrome pós-traumático, mas isso é só uma das potenciais sequelas deste tipo de experiências.

Sabemos que, em situações de conflito, a prevalência de doença mental duplica. Se a doença mental grave, em situações normais, existe em 2% da população, passa a 5%, em situações de conflito; nas doenças mentais moderadas a leves, passa dos 10% para os 20%. Sem falar no sofrimento generalizado, que não é patológico, mas que também atinge proporções e que merece atenção dos cuidados de saúde. Há todo um espectro de sequelas que pode decorrer da guerra.

O importante é que a pessoa consiga – muitas vezes, com a ajuda de um profissional – fazer com que o episódio potencialmente traumático seja delimitado, e que tenha uma compreensão da sua vida, dos sentimentos de culpa: “Porque é que eu não fugi? Porque é que eu fugi?”. É importante que a pessoa compreenda que tomou determinadas ações numa lógica que é excecional, tentar apaziguar um pouco alguns sentimentos de culpa, de raiva, que que possam decorrer desta situação.

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Agência ECCLESIA

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