Festival «Terras sem Sombra» em Alvito

Do Caminho de Santiago às Missões do Brasil

A igreja matriz de Alvito, famosa pela ambiência artística e pelas características acústicas, constitui a próxima meta do Festival Terras sem Sombra de Música Sacra do Baixo Alentejo. No dia 6 de Março, às 21h30, o agrupamento “Voces Alfonsinas”, sob a direcção de Manuel Pedro Ferreira, apresenta aqui o concerto “Cantares Antigos: Da Aquitânia ao Brasil”, que inclui um repertório deveras aliciante para um monumento cimeiro da arquitectura tardo-gótica e manuelina.

A experiência promete, valorizando a ligação entre a atmosfera muito especial da igreja, dedicada a Santa Maria (depois Nossa Senhora da Assunção), e um programa de grande beleza, executado com rigor histórico, que faz justiça ao passado religioso e musical de Alvito, terra que marcou muitos aspectos da vida alentejana na transição da Idade Média para a época moderna.

Meticulosamente preparada, esta intervenção reflecte alguns dos aspectos mais interessantes da zona ao longo de vários séculos: o culto da Virgem e dos santos, a passagem dos peregrinos com destino a Santiago de Compostela, os divertimentos cortesãos e a expansão missionária noutros continentes. Trata-se de um interessantíssimo capítulo da pequena “história da música” que constitui o Festival Terras sem Sombra, integrando o Baixo Alentejo nos percursos da arte musical do país e da Europa. Este ciclo de espectáculos, conferências, visitas guiadas e actividades pedagógicas rompe barreiras e põe em evidência a grande paixão dos alentejanos pela música, em particular a música sacra. Não faltam também visitantes de fora, nacionais e estrangeiros.

O Festival Terras sem Sombra é organizado desde 2003 pelo Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja e pela Arte das Musas com o apoio da Direcção-Geral das Artes (Ministério da Cultura), da Delta e dos municípios visitados.

Peregrinos e Missionários

Um vínculo de fundo une o espectáculo das Voces Alfonsinas a Alvito e ao “Grande Sul”, tirando partido das suas raízes ancestrais. Isto começa logo pela interpretação de peças dos séculos XII e XIII, oriundas da Aquitânia e de Compostela, destinadas a acompanharem a liturgia, as manifestações devocionais e as peregrinações. Evoca-se assim, com toda a propriedade musicológica, o papel do culto mariano, elemento-chave da espiritualidade medieval. Além de composições alusivas ao dia de Natal, de marcado carácter festivo, o agrupamento dirigido pelo Prof. Manuel Pedro Ferreira irá “ressuscitar”, em Alvito, duas notáveis “Cantigas de Santa Maria”, alusivas a Évora e Alcácer do Sal e muito representativas da atmosfera cultural do tempo de D. Afonso X de Leão e Castela, o “Rei Sábio”, e do seu neto D. Dinis de Portugal. Seguem-se os antigos cânticos entoados pelos peregrinos na sua caminhada para Santiago de Compostela, noutras épocas decerto também ouvidos nas ruas e nos templos do Alentejo.

O Festival Terras sem Sombra vem realizando, em sucessivas edições, uma chamada de atenção para o cruzamento das tradições musicais da Europa (o “Velho Mundo”) e dos territórios onde se manifestou a presença ibérica (o “Novo Mundo”). Teve aqui importante peso o Brasil, laboratório de miscigenação de correntes europeias, africanas e ameríndias. Voces Alfonsinas prestam tributo a esta herança, pondo em paralelo cantares cortesãos e ao divino. Os primeiros são introduzidos por um ciclo de composições do célebre Códice n.º 741 da Biblioteca Municipal do Porto, oriundo de Ferrara, com exemplos de música quatrocentista de Inglaterra, Flandres, Itália e França. O seu complemento, do outro lado do Atlântico, é dado por obras dos padres jesuítas Juan e José de Anchieta, tio e sobrinho. Juan foi um compositor insigne, gozando de grande apreço no seu tempo em Portugal e Espanha. Quanto a José, formado em Coimbra, coube-lhe papel pioneiro na evangelização do Brasil, sendo o primeiro especialista na língua tupi, para a qual adaptou canções correntes em Portugal e Espanha, destinadas à evangelização dos índios.

Voces Alfonsinas: na senda da “verdade histórica” da música ibero-americana

Desde a sua primeira apresentação no castelo de Leiria, em Junho de 1995, Vozes Alfonsinas tem-se afirmado no panorama nacional como um dos mais criativos e sólidos grupos musicais. Em 1998 publicou na Galiza o primeiro disco compacto, com as melodias de Martin Codax. Em 1997 o grupo gravou um CD dedicado ao vilancico renascentista, editado pela EMI-Classics em 2001. Em 1999-2000 realizou um novo projecto intitulado “O Tempo dos Trovadores” (cantigas de D. Dinis, Cantigas de Santa Maria, canções árabo-andaluzas) para a etiqueta Strauss/PortugalSom, tido pela crítica “um marco na discografia portuguesa”, evidenciando “grande consciência estilística” (“Público”) e uma “sonoridade de grande clareza” (“Expresso”). Outras obras suas revisitaram a liturgia bracarense (Ofício de São Geraldo e cânticos natalícios) e o panorama musical “Dos Visigodos a D. Sebastião” para uma “Antologia de Música em Portugal na Idade Média e no Renascimento”.

As Vozes Alfonsinas têm actuado, em Portugal, em diversos contextos, destacando-se gravações ao vivo para a Antena 2, uma gravação para a RTP (“Percursos da Música Portuguesa”), a participação no Festival de Música de Leiria, nas Festas de Lisboa, na Temporada de Música em S. Roque, no Festival do Atlântico (Açores), no Festival de Música Medieval de Sesimbra, no Festival de Música de Alcobaça e no Festival do Estoril. Em 1999 o agrupamento teve uma calorosa estreia internacional em Pesaro, Itália, no âmbito do Festival Sipario Ducale. Em Janeiro de 2003 realizou em Amsterdão um concerto integrado no ciclo “De Zuilen van Hercules”. Em 2006 apresentou-se na Smithsonian Institution, em Washington, onde realizou cinco actuações com música do Renascimento; e em 2009 participou no Festival de Música Antiga e Iberoamericana de Cáceres.

Um especialista à procura das sonoridades medievais

Manuel Pedro Ferreira (n. 1959) doutorou-se em Musicologia na Universidade de Princeton (Estados Unidos da América) com uma tese sobre o canto na abadia de Cluny; é actualmente Professor Associado na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde lecciona sobre a música da Idade Média e do Renascimento, coordena o Departamento de Ciências Musicais e é director executivo do Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical. Tem-se dedicado também à crítica musical, à interpretação e à composição, privilegiando neste domínio a voz e a música de câmara.

Como musicólogo, publicou uma vasta panóplia de artigos de investigação – mais de 70  –, versando temas que vão da monodia medieval à obra de compositores contemporâneos; é também colaborador de vários dicionários especializados internacionais. Foi responsável pela publicação fac-similada do “Cancioneiro de Elvas” (1989) e do manuscrito 714 da Biblioteca Pública Municipal do Porto (2001); recebeu o Prémio de Ensaísmo Musical do Conselho Português da Música pelo seu livro “O Som de Martin Codax” (Lisboa, 1986). Os seus últimos livros publicados são “Cantus coronatus – Sete cantigas d’amor d’El-Rei Dom Dinis” (Kassel, 2005) e “Dez compositores portugueses” (Lisboa, 2007).

Alvito, referência do Caminho de Santiago

A faixa oriental do Baixo Alentejo é sulcada por um eixo fronteiriço do Caminho, outrora famoso, que foi muito utilizado pelos peregrinos em trânsito para Santiago de Compostela. O seu percurso entrava em Portugal pelo concelho de Serpa e conduzia à passagem do rio no alfoz de Beja, seguindo depois para Alvito. A partir daqui o acesso a Évora tornava-se fácil. Esta alternativa do Caminho era, sem dúvida, a mais adequada para quem vinha da Andaluzia, designadamente de Sevilha, oferecendo uma alternativa célere aos itinerários da Meseta. Por ela circularam figuras de renome, como o médico e humanista Hyeronimus (Jerónimo) Münzer, cidadão de Nuremberga, enviado do imperador Maximiliano ao rei D. João II, que no dia 12 de Novembro de 1494 entrou por Ficalho e passou por Serpa, chegando a Évora no dia 16, onde foi solenemente recebido pelo nosso monarca. 

Alvito desempenhou um papel significativo no acolhimento dos peregrinos para Compostela. Esta ligação está a ser recuperada através de um esforço conjunto do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja e da Xunta de Galicia, o governo autonómico da Galiza, a que se associou o município local. A igreja matriz conserva uma excepcional composição pictórica “a secco”, do século XV, alvo de recente intervenção de conservação, que representa o apóstolo Santiago Maior, com atributos de peregrino (chapéu, capa ou esclavina, bordão), entre São Sebastião e Santo André, o que atesta o peso da tradição jacobeia. Os viandantes eram recebidos e agasalhados no hospital do Espírito Santo, depois de Nossa Senhora das Candeias, importante instituição assistencial que beneficiou da protecção dos barões – mais tarde condes e marqueses – de Alvito e da própria Coroa.

Ana Santos

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