Família e Reconstrução social

No Dia da Família na diocese do Porto A introduzirem a recente legislação facilitadora do divórcio, escreveram os proponentes que ela corresponde à sentimentalização, individualização e secularização contemporâneas. Tratar-se-ia de dar maior valor aos afectos como base dos compromissos, de substituir a preponderância das instituições pelas escolhas individuais e de tirar relevância pública às convicções religiosas. Sendo discutível que a sociedade actual se possa definir apenas em torno destes itens, não parece difícil concluir que sobre a “base” dos indivíduos e dos afectos ficará mais frágil a vida social. A noção de “indivíduo” incide mais no numérico e quantitativo e menos no relacional e qualitativo. Falando de nós, componentes do género humano, melhor se falará de “pessoa”, ou seja, de ser em relação, que só na relação se entende e realiza. Esta noção foi, aliás, enriquecida pela reflexão cristã sobre as “pessoas” divinas, a partir do que Cristo disse sobre si e o Pai: “Eu e o Pai somos um”. Juntando a isto o amor que Os une, os cristãos falam de um Deus uno e trino, em que a unidade coincide com a pluralidade: um só Deus em três “pessoas”, Cristo e o Pai no Espírito-Amor. A esta luz, os cristãos também entenderam melhor a disposição original das coisas, retomada por Cristo, sobre a família e a respectiva unidade plural: o homem e a mulher, como dois num só (“numa só carne”), o amor mútuo e gerador de vida, uma humanidade à maneira da Trindade, verdadeira “imagem e semelhança de Deus”. Um programa para o mundo, também ele uno e plural, a partir da família. Os afectos são igualmente imprescindíveis, mas exprimem e realizam algo que lhes é “anterior”, ou seja cada pessoa como ser em relação. A partir da atracção homem – mulher, expressa na sexualidade e na linguagem do amor, base de toda a vida, mas alargada e sublimada no relacionamento social, com igual complementaridade masculino – feminino. Ora, tratando-se de pessoas e não de meros indivíduos, estamos a falar do ser humano como presente, passado e futuro, ou seja como projecto. Na verdade, ninguém se esgota num momento ou sequer no tempo curto, realizando-se apenas como existência, isto é, como ser que perdura e só perdurando se conclui. Todos sabemos que, na consciência e no sentimento, somos constantemente ocupados por memórias e expectativas, em tempo alargado. Juntando este ponto com o anterior, compreenderemos que a “base” de qualquer sociabilidade assenta mais em pessoas e projectos inter-pessoais do que em indivíduos e afectos, no sentido efémero destes. Como também é da experiência comum que a vida se aprende vivendo e convivendo, aprofundando a relação e superando os obstáculos com que o crescimento dos seres humanos necessariamente depara. Vivendo num tempo muito tocado pelo libertarismo (liberdade individual em contraste com a vinculação social), inclusive nas instâncias político-legislativas, a família cristã e outras que coincidam em idêntica visão relacional da sociedade têm a indispensável função de demonstrar, pelo testemunho prático e a partilha teórica, a bondade e a conveniência do seu modo de ser e conviver. Acreditando na realização inter-pessoal da sociedade, com o que tal implica de projecto e compromisso, transportam um futuro que não querem atrasar. Ao entregar “diplomas” de congratulação e bênção a cerca de setecentos casais, com 25, 30, 60 ou mais anos de matrimónio, no Dia Diocesano da Família, celebro com eles a vitória certa destes valores seguros e (con)vividos para a (re)construção social. É possível e verificável! D. Manuel Clemente, Bispo do Porto

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