Como acreditamos e sabemos, à Luz da Ressurreição de Cristo, o Cristianismo não é a recordação de um ausente, mas a contínua celebração de uma presença. Por tal motivo, nós cristãos não dizemos que Cristo viveu, mas que vive (cf. Act 25, 19). Aliás, ao longo do Seu ensinamento, Jesus Cristo foi preparando os discípulos para a perenidade da Sua presença no mundo, «até ao fim dos tempos» (Mt 28, 20).
Esta nova presença de Cristo Ressuscitado, através da Sua corporeidade eclesial, Igreja Corpo de Cristo, ocorre especialmente na Eucaristia «fazei isto em memória de mim», (1 Cor 11, 24; Lc 22, 19), do mandamento da Missão «ide por todo o mundo e anunciai o Evangelho» (Mc 16, 15; Mt 28, 19) e do Mandamento do Amor «amai-vos uns aos outros como Eu vos amei» (Jo 15, 12; 13, 34). A presença real de Cristo na realidade do mundo atinge o seu ápice na Eucaristia. Porque é sobretudo na Eucaristia, como nos diz a 2ª Leitura, que se realiza o que Ele mandou fazer em Sua memória: comer o pão (cf. 1 Cor 11, 23-24; Lc 22, 19) e beber do cálice (cf. 1 Cor 11, 25; Mc 14, 23; Mt 26, 27).
Sucede que este pão já não é pão: é o Corpo de Jesus Cristo: «isto, ou (seja, o pão) é o Meu Corpo, que será entregue por vós» (1Cor 11, 24; Mc 14, 22; Mt 26, 26; Lc 22, 19). Do mesmo modo, este cálice já não é cálice: é o Sangue de Jesus Cristo: «isto (ou seja, o cálice) é o Meu Sangue da aliança, que vai ser derramado por todos» (Mc 14, 24; 1 Cor 11, 25; Mt 26, 28; Lc 22, 20).
Das suas próprias palavras depreende-se que Jesus está realmente presente naquele pão e naquele cálice. Pelo que há uma mudança de substância em tal pão e tal cálice. Nestes, como reparou S. Paulo VI, «já não há o que havia anteriormente, mas outra coisa completamente diferente». Esta mudança de substância (transubstanciação) configura, ainda segundo o Papa Montini, «o maior dos milagres». São Cirilo de Jerusalém verbalizou com suprema precisão o que se passa: «Aquilo que parece pão não é pão, apesar do sabor que tem, mas sim o Corpo de Cristo; e o que parece vinho não é vinho, apesar de assim parecer ao gosto, mas sim o Sangue de Cristo». O que passamos a ter, como notou Santo Ambrósio de Milão, já não é o que a natureza formou, mas o que a bênção consagrou». Por conseguinte e como observa de novo Paulo VI, não nos devemos guiar «pelos sentidos, que testemunham as propriedades do pão e do vinho, mas sim pelas palavras de Cristo, que têm o poder de mudar, transformar e “transubstanciar” o pão e o vinho no Seu Corpo e Sangue». Isso significa que, na Eucaristia, Cristo vem até nós e nós vamos até Cristo.
Ao mandar comer o pão e beber o cálice em Sua memória (cf.1Cor 11, 24-25), Jesus está a admitir que a Ceia não termina naquela noite. A conversão do pão e do vinho no Corpo e Sangue do Senhor são possíveis porque – sublinha Karl Rahner – «a ceia não acabou». O que então se verificou nunca deixa de se verificar pois «insere-se no espaço e no tempo que são nossos». Daqui resulta que toda a realidade de Cristo «estará sempre eficazmente presente onde se realiza a Ceia». Xavier Zubiri, um existencialista cristão do século XX, apercebeu-se que na Eucaristia somos visitados pela «actualidade do pão feita actualidade de Cristo». Pelo que «o pão eucarístico é o Corpo de Cristo; é Cristo mesmo». Cingindo-nos à celebração da Missa, é real a presença de Cristo na Palavra, no ministério ordenado do Sacerdote, na Assembleia Litúrgica convocada e reunida. A presença real de Cristo não é um exclusivo do Pão e do Vinho consagrados como se as outras presenças fossem irreais, mas acontece por excelência na Eucaristia. A presença real de Cristo na Eucaristia não é a única, mas – avisa o Catecismo – «o modo da presença de Cristo na Eucaristia é único». Trata-se de uma presença substancial dado que, ela, torna presente Cristo completo, ou seja, o Ressuscitado.
Experimentamos que a Igreja «vive da Eucaristia» porque vive de Cristo nela realmente presente. Para a Igreja, viver é sempre cristo-viver. É em Cristo que se estabelece um estreitíssimo vínculo entre a Igreja e a Eucaristia.
Na continuidade de uma convicção muito antiga (retomada entre outros por Henri de Lubac e S. João Paulo II), dir-se-ia que «a Igreja faz a Eucaristia», porque sabe que «a Eucaristia faz a Igreja». A Igreja, ao celebrar a Eucaristia, celebra a presença real daquele que deu a vida por ela: o próprio Cristo (cf. Ef 5, 25). Assim, a Igreja é de Cristo e com Ele, “Mistério da Fé”. Dizer, por conseguinte, que a «Eucaristia faz a Igreja» é, no fundo, dizer que quem faz a Igreja é Cristo. Se Cristo faz a Igreja entregando-Se por ela (cf. Ef 5, 25), então, ao fazer memória de Cristo, a Igreja na Eucaristia faz memória dessa entrega. Como assinalou o nosso Cardeal e Teólogo Português D. José Saraiva Martins «toda a existência de Cristo foi uma continua oferta sacrificial ao Pai pela salvação que Ele lhe tinha confiado. Ela teve, portanto, do início até ao fim, um valor expiatório, meritório e redentor». A entrega na Cruz é, porém, o máximo de tal sacrifício redentor. E esta entrega não está destinada a cessar, durando até ao fim dos tempos. Jesus quis que o Dom de Si mesmo na Cruz continuasse na Eucaristia; que o sacrifício pascal prosseguisse sob as espécies sacramentais pão e vinho.
São João Paulo II teve o cuidado de chamar a atenção para esta presença da Ressurreição. Com efeito, a Eucaristia, no momento em que «actualiza o único e definitivo sacrifício de Cristo na Cruz», «torna presente o mistério da Sua Ressurreição». É o que os nossos lábios afirmam na aclamação depois da Consagração: «Anunciamos Senhor, a Vossa Morte» e «Proclamamos a Vossa Ressurreição, Vinde Senhor Jesus». Assim sendo, «quem se alimenta na Eucaristia não precisa de esperar o Além para receber a vida eterna: já a possui na terra. Como primícias da vida futura». O próprio Jesus garantiu: «Quem come a Minha Carne e bebe o Meu Sangue tem a vida eterna» (Jo6, 54).
Como não agradecer tanta dádiva e tamanho dom? Curiosamente a palavra Eucaristia expande a ideia de gratidão, acção de graças. De resto, a Ceia de Jesus foi já dominada pela centralidade da «acção de graças». Antes de partir e distribuir o Pão, que é o Seu Corpo, Ele «deu graças» (1Cor 11, 24), fazendo o mesmo com o cálice que é o Seu Sangue (cf. Mc 14, 23). E «deu graças» (euchsristésas) porquê? Porque ocorreu aquilo que há tanto tempo se esperava; a redenção daqueles que a Jesus tinham sido entregues pelo Pai. Celebrar a Eucaristia implica uma identificação com Cristo, Aquele que nos deixou o Mandamento Novo do Amor, da Caridade e o exemplifica com o gesto forte e inequívoco do Lava-pés: «Assim como Eu Fiz, fazei vós também». Por isso a Eucaristia é indissociável do servir e do amar dando a vida. A Vivência da Eucaristia é afinal indissociável do testemunho de cada dia.
Diretamente ligado ao sinal do “Lava-Pés” surge a edificação da justiça e o urgente serviço à edificação laboriosa do Dom da Paz: “Deixo-vos a Paz, dou-vos a minha Paz”. Sim, a Paz é um Dom concedido ao coração dos Homens e uma luz capaz de iluminar as mentes, a fim de que estas vislumbrem com lucidez a racionalidade da Paz e a monstruosidade da guerra. De facto, com que facilidade de argumentos e justificações diversas se alimenta a guerra, e quão difícil se torna a reconquista da paz! Efetivamente, a sensatez da paz é um Dom de Deus.
Em Quinta-feira Santa imploramos o Dom da Paz para esta guerra espalhada por diversos países e continentes, uma guerra mundial aos pedaços, como designa o Papa. Longe de nós uma guerra global ou uma loucura nuclear! Saibamos ser com o nosso compromisso cristão, e através da nossa cidadania, construtores duma civilização de Paz. Que a Eucaristia seja pão partido para um mundo novo. Busquemos a Paz que nasce da Justiça e da Liberdade, nomeadamente a liberdade de consciência e da liberdade religiosa. Unamo-nos à Igreja sofredora e aos mártires com origem nas comunidades cristãs mais pobres. Que o seu sangue derramado pela intolerância da violenta seja sementeira do Reino de Deus na Paz, na Justiça e no Amor.
Santa Maria, Senhora do Cenáculo, rogai por nós pecadores!
+ Francisco José Senra Coelho
Arcebispo de Évora