1. Saiu segunda-feira para as livrarias, em Itália, o livro intitulado «Jesus de Nazaré. Do baptismo no Jordão à Transfiguração», da autoria de Joseph Ratzinger – Bento XVI, assim mesmo, com nome duplo. O livro regista 446 páginas distribuídas por 10 Capítulos, e é fruto da intensa busca pessoal, crente e intelectual, do Papa Ratzinger desde o Verão de 2003. O rosto de Jesus, traçado por Bento XVI neste livro a partir dos Evangelhos canónicos, não é, portanto, um acto do magistério do Papa, mas um texto vivido, rezado e pensado, e agora oferecido à fé dos crentes e à inteligência humana, sujeito a críticas como toda a obra humana. De resto, o Papa situa-se também claramente em confronto com várias tentativas recentes e redutoras, sedutoras em termos de mercado, travestidas de científicas, aparecidas quer em livro quer em filme, e que, deixando de lado os Evangelhos canónicos, exploram outras fontes e traçam de Jesus um retrato falseado e mentiroso, sem Deus! 2. O Papa tece a sua reflexão a partir dos quatro Evangelhos canónicos (Mateus, Marcos, Lucas, João), que são as únicas fontes contínuas acerca do Jesus da história que chegaram até nós. Esta última afirmação é um dos resultados mais consistentes que se podem ver no monumental estudo do padre e teólogo americano John Paul Meier, «Um Judeu Marginal. Repensar o Jesus da História», programado em quatro Volumes com cerca de 3000 páginas, porventura a análise histórica mais rigorosa acerca de Jesus levada a cabo nos tempos modernos (começou a publicar-se em 1991). Aos quatro Evangelhos canónicos, Meier apenas acrescenta as notas de Flávio Josefo, nas Antiguidades Judaicas, 18,§ 63-64. Meier exclui como fonte o Evangelho copto de Tomé, muito valorizado pela escola, também americana, do Jesus Seminar, que o põe ao nível, se é que não mesmo acima, dos Evangelhos canónicos. Meier mostra que o Evangelho de Tomé relê os ditos dos Evangelhos canónicos. Igual cepticismo mostra Meier pela chamada fonte Q. Meier exclui também qualquer relação de Jesus com a comunidade de Qumran, ao contrário do Papa que valoriza a aproximação de Jesus a Qumran. Mas os dois salientam a cronologia do Evangelho de João em detrimento da dos Sinópticos. Ainda assim, Meier adverte que o Jesus da história não passa de uma abstracção, chamando a atenção para a diferença entre o Jesus real e o Jesus da história, perguntando mesmo se alguém pode ter a certeza de conhecer plenamente a personalidade de alguém, mesmo de uma pessoa íntima. 3. Apareceu também recentemente (2006) um livro sério de Richard Bauckham, com o título de «Jesus e as testemunhas oculares. Os Evangelhos como testemunho ocular». Bauckham faz ver que o recurso a testemunhas oculares empenhadas, isto é, que foram parte dos acontecimentos e neles estiveram activamente envolvidas, e não neutras, era o normalmente usado pelos historiadores antigos, como Tucídides, Políbio, Flávio Josefo e Tácito, para acederem a acontecimentos históricos. Neste sentido, o facto de os acontecimentos de Jesus, narrados nos Evangelhos, serem vistos pelos olhos dos seus discípulos, enquanto testemunhas oculares neles efectiva e afectivamente envolvidos, não os desvirtua, mas confere-lhes credibilidade, e põe a história dos Evangelhos ao nível da história antiga. 4. Este regresso fundamentado aos quatro Evangelhos canónicos como únicas fontes contínuas credíveis para chegar ao Jesus da história vem depois de dois séculos de uma árdua crítica literária e histórica que tentou desautorizar os Evangelhos canónicos como documentos credíveis para se chegar ao verdadeiro Jesus da história. Para esse tipo de crítica, os Evangelhos são o resultado de um longo processo de anónima transmissão de tradições, em que os redactores apareceram em fase tardia e já desligados dos acontecimentos e das testemunhas oculares desses acontecimentos. Num tal processo longo e difuso, terá intervindo ainda a criatividade e o filtro das comunidades, que terão adaptado as tradições às suas necessidades e propósitos, se é que, nalguns casos, não as terão mesmo inventado. Assim sendo, refere este tipo de crítica, quando estas tradições chegam aos redactores, apresentam-se já muito desvirtuadas e despersonalizadas e pouco terão a ver com o verdadeiro Jesus da história. Nesse sentido, conclui essa crítica minimalista, os Evangelhos falam mais das comunidades do que de Jesus, não podendo, por isso, ser usados como documentos históricos para se chegar à pessoa de Jesus. 5. Desacreditados e descartados os Evangelhos canónicos como documentos credíveis, e não havendo outros documentos sérios de controlo, é então fácil que se possam fazer brotar do chão da Palestina do século I figuras de Jesus como cogumelos, ao sabor do (mau) gosto de cada um. É assim que psicólogos, jornalistas, literatos e cineastas podem criar e vender a sua figura de Jesus. Veja-se o Código da Vinci (Jesus e a Madalena), o Evangelho de Judas (gnóstico) e outros do mesmo teor descobertos em Nag Hammadi (Egipto) em 1945, e mais recentemente a fraude de «O túmulo perdido de Jesus» e «O túmulo da família de Jesus» de James Cameron e Simcha Jacobovici acerca do túmulo e (dos ossários) de Talpiot, descoberto em 1980, cinco km a sul da cidade antiga de Jerusalém. Os arqueólogos israelitas Amos Kloner, que escavou o túmulo em 1980, e Joe Zias, que classificou os ossários, já denunciaram as publicações feitas como «desonestidade intelectual e científica» e «insensatez». Por sua vez, o arqueólogo americano William Dever, que há mais de cinquenta anos dirige escavações em Israel, fala de «manipulação, engano, e mercado…». 6. No fundo, como bem acentua o Papa no seu «Jesus de Nazaré», Jesus não pode ser reduzido a um revolucionário, moralista ou mestre religioso, nem os seus ensinamentos podem ser reduzidos a princípios técnico-materiais, criticando aqui também capitalismos e marxismos e o tipo de ajudas ocidentais ao III mundo. O Jesus dos Evangelhos canónicos veio trazer-nos Deus!