Espiritanas no Huambo com quem a guerra mutilou

A guerra passou por ali durante muito tempo e com muita violência. O Huambo é uma das cidades mais marcadas. Os edifícios e as estradas mostram bem a crueldade dos combates. Mas também se notam, em muita gente, os efeitos da crueldade. No Huambo, vemos mutilados no virar de cada esquina. Uma das heranças mais pesadas da longa e cruel guerra de Angola. De todas a idades e proveniências. Com histórias dramáticas do passado para contar, mas sem futuro bom a augurar. Por ali andam, sem apoios, de mão estendida. Está esgotado, mesmo em Luanda, um CD de Justino Handanga que, em umbundu, a língua-mãe do Huambo, canta os horrores da guerra. Na canção “Ndetekateka”, fala dos mutilados: «Perdi as pernas, lutei. Agora estou condenado a pedir esmola. Vejo os outros a andar normalmente e eu, que lutei por Angola, não tenho pernas, não tenho que comer…». O título do CD é “Alvo atingido”. Triste sorte a daqueles a quem a guerra levou as pernas, os braços, os olhos, os ouvidos… e, com eles, boa parte do futuro. O sonho da Irmã Marguerite Mas há, desde há muito tempo, no Huambo, um espaço onde os mutilados têm direito a acreditar no futuro. Tudo começou em 1986 quando a Irmã Marguerite, Espiritana, lançou as bases do Centro de Reabilitação de Mutilados da Kamussamba. Contou com a ajuda preciosa da família Praia que aceitou ceder a sua casa para acolher os primeiros mutilados. Eram 25: faziam artesanato, costura, tricot, bordados, trabalhos com missangas, sacos, anéis, terços e até ali se fundou uma carpintaria e uma sapataria. Tudo muito simples, em pleno bairro periférico da cidade do Huambo. Arranjou-se mesmo um canto para instalar uma fundição para fazer imagens de metal. Depressa se percebeu que havia gente de mais para tão curto espaço. E arranjou-se um espaço para a construção do Centro, no local onde ainda está a funcionar, no Bairro da Kamussamba, nas periferias do Huambo. O Centro de Reabilitação de Mutilados A inauguração foi a 1 de Outubro e, por isso mesmo, dedicado a Santa Teresinha do Menino Jesus. O sonho de reabilitar os mutilados e outras pessoas portadoras de deficiência física ou mental estava a concretizar-se aos poucos. A construção começou em 1991 e muita gente ajudou. O padre Quirino Houdjik foi o grande angariador de fundos, na Europa. Também ajudaram a Cáritas, o PAM, a Cooperação Suíça e até os militares da UNAVEM (capacetes azuis) colaboraram no transporte dos materiais de construção. O grupo Amizade, coordenado pela Primeira Dama da Embaixada Portuguesa, ofereceu mesas e bancos. Outros apoios vão chegando de todo o mundo e permitem o funcionamento do Centro, dia após dia. O ano de 1993 foi o ano da Batalha dos 55 Dias, no Huambo. Aumentaram os mutilados e as crianças órfãs. A característica deste Centro – diz a Irmã Aurora, Espiritana de Vieira do Minho, a actual directora – é que todos trabalham. Ali vão chegando pessoas que querem comprar o que se produz nestas actividades, o que ajuda a manter o projecto. O Centro não tem ninguém lá a residir. É um local de trabalho e de encontro. Por isso, foram construídas três aldeias onde os mutilados vivem. Tudo ali no bairro, porque as deslocações são muitos difíceis. Cheguei à hora do almoço. Grandes panelas tinham o pirão (farinha de milho) e o feijão que ia sendo distribuído, com muita ordem e serenidade, pelos 125 utentes, muitos deles crianças. Fiz uma visita a todas as instalações: a cozinha, o refeitório, a sala das máquinas de costura, a carpintaria. Finalmente, a Irmã Aurora levou-me até à sala onde estão expostos os produtos feitos ali. Na hora do regresso ao trabalho, pude acompanhar o trabalho de pessoas invisuais a fazer artesanato, pessoas mutiladas a costurar ou a fazer colares de missangas. Ali há alegria, há festa, há empenho, há refeições, há casa para morar, há cuidados de saúde, há espírito de família, há futuro, garantiu a Directora. Números que falam, iniciativas que atraem Os números têm variado ao longo dos tempos. No período mais quente da guerra, chegaram a ser 400. Hoje são 125, entre adultos e crianças. O Centro é, hoje, muito conhecido e respeitado, a ponto de numerosos jornalistas nacionais e estrangeiros ali fazerem reportagens. Ao longo dos tempos, o voluntariado tem sido incentivado. Em 1997, por exemplo, um grupo de Jovens Sem fronteiras de Portugal, ali fez uma experiência missionária durante o mês de Agosto. Alguns dos actuais utentes ainda se lembram bem. Também a D. Ângela Praia, pilar desde a primeira hora, me perguntou por estes jovens. Uma Escola dedicada a Santa Teresinha Em 1997, o Centro avançou para a fundação e construção de uma Escola Primária, porque eram numerosas as crianças filhas dos mutilados ou órfãs que ali chegavam e que nunca encontravam lugar nas escolas oficiais. Assim nasceu a Escola Santa Teresinha. Iniciou actividades em Fevereiro e, até hoje, sempre teve cerca de 700 crianças. É uma escola aberta a todo o bairro da Kamussamba. É — no dizer da Irmã Palmira, natural de Tondela — «um espaço ecuménico, em que não se faz qualquer acepção de pessoas. A única lei é o regulamento da escola que todos têm que cumprir». Nos espaços envolventes da Escola, ali plantada em meio bem rural, há muitas árvores de fruto: mangueiras, abacateiros. Há ainda bananeiras e mamoeiros. O espaço é ainda valorizado com uma plantação de milho e de feijão, que em muito ajudam à sobrevivência da Escola. Numa das salas de aula, encontrei uma pintura mural que resume bem os objectivos desta Escola: «Vamos à escola construir uma Angola nova». Tony Neves – Missionário Espiritano

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