Especial: Papa assume risco do desconforto, em conversa inédita com jovens

Programa da «Disney Plus» aborda temas como abusos de menores, feminismo, racismo, sexualidade ou o papel da mulher na Igreja

Lisboa, 05 abr 2023 (Ecclesia) – A ‘Disney Plus’ lançou hoje o documentário ‘AMEN: Francisco Responde’, no qual o Papa conversa com jovens de vários países, sobre temas como o abusos de menores, a sexualidade ou o papel da mulher na Igreja.

“A verdadeira Igreja está nas periferias. No centro há gente boa, sã, mas também há muita corrupção e é preciso reconhecer isso”, assinala Francisco, ao condenar os “abusos de poder” do que denomina como “instituição eclesiástica”, a qual distingue da “eclesial”.

“A reforma da Igreja tem de começar a partir de dentro”, insiste.

A conversa foi gravada no verão de 2022, com o Papa a prestar homenagem à irmã Luisa Dell’Orto, que tinha sido assassinada no Haiti.

Entre os testemunhos, contou-se o de uma antiga religiosa, peruana, que deixou a fé católica e se apresenta como agnóstica, denunciando o “abuso psicológico” que sofreu na sua formação.

Francisco manifesta solidariedade com o sofrimento da jovem, assumindo que o mesmo aconteceu noutros casos, que já o levaram a intervir, em congregações religiosas, e deixa-lhe um pedido: “Embora não ter apercebas, alguém está a acompanhar-te”.

“Deixa que te acompanhe, mesmo que não lhe ligues nenhuma”, insiste.

Numa conversa em língua espanhola, os jovens colocam várias perguntas: “recebe um salário?”, “tem telemóvel?”, “sabe o que é uma pessoa não-binária?”, “se não fosse feminista, seria melhor cristã?”, “é feliz, alguma vez se sentiu só?”.

“As pessoas estão desiludidas com a Igreja, não com Deus”, diz um dos jovens participantes.

O Papa admite que há “abandono, distanciamento” da Igreja, nas cidades, considerando que a solução passa por comprometer-se e pela coragem de “sair às periferias”.

“Quando não há testemunho, a Igreja enferruja”, alerta.

Os jovens mostram-se particularmente críticos da Igreja ao ouvir o testemunho de Juan Cuatrecasas, vítima de abusos sexuais num colégio católico, que lamenta a “recusa” de muitos em acompanhar as vítimas de abusos, colocando-se do lado dos abusadores.

A vítima dá o seu testemunho, em lágrimas, e devolve uma carta ao Papa que escreveu ao pai de Juan, na qual lhe recomendava que se dirigisse à então Congregação para a Doutrina da Fé – a qual se decidiu pelo arquivamento do processo; na justiça civil, acabou por haver uma condenação, que já transitou em julgado.

“Estos casos de abusos com menores não prescrevem”, assume Francisco, para quem é necessário enfrentar este “drama”.

O Papa agradeceu a “coragem” de quem denuncia e, às vezes, tem de enfrentar acusações e até “torturas”, por parte de quem trata do seu caso.

“A cultura do abuso está em todo o lado, lamentavelmente”, acrescentou.

Outro tema discutido foi o do aborto, com o Papa a pedir maior compreensão para a mulher que aborta, sem que isso sirva para “justificar o ato”.

Francisco explica a posição católica com a necessidade de defender uma “outra vida”, a do bebé, e pergunta se é “lícito eliminar uma vida humana para resolver um problema”.

O debate é conduzido por duas jovens com posições diferentes, que acompanham mulheres no processo de decisão sobre o aborto, e alimentado pelas várias mulheres presentes, com vários pontos de vista sobre as questões de saúde pública, os riscos do aborto ilegal e a necessidade de oferecer alternativas a quem desejaria levar a gravidez por diante.

“Não é um problema matemático, é um problema humano”, assume o Papa, para quem “não se pode deixar só uma mulher que aborta, é preciso acompanhá-la”.

O documentário, realizado pelos espanhóis Jordi Évole y Màrius Sánchez, foi filmado num bairro de Roma e tem uma duração de 82 minutos.

Francisco começa por surgir na Casa de Santa Marta, de manhã, a tomar o pequeno-almoço e a cumprimentar os vários funcionários, antes de ir ao encontro dos jovens, sendo ainda filmado no seu escritório, a falar ao telefone.

“A solidão é como o inverno da vida”, um tempo em que “não se deve mudar de rumo”, diz ao grupo, aconselhando os jovens a procurar a ajuda de “pessoas de confiança”, nas alturas mais difíceis.

“Eu passei momentos feios na vida”, refere.

O Papa explica que não tem salário e diz que, no Vaticano, tem um “modo de vida bastante honesto, de um empregado de nível médio, talvez um pouco mais baixo”.

Sem telemóvel nem redes sociais – as contas do Twitter são geridas por responsáveis do Vaticano -, Francisco assume, emocionado, as saudades das família, em particular dos irmãos, na Argentina, três dos quais já faleceram.

O grupo de dez jovens, com cristãos, um muçulmano e agnósticos, inclui filhos de migrantes, que falam das suas experiências de racismo; um jovem do Senegal falou do seu irmão, que atravessou o mar, aos 14 anos, para chegar à Espanha, “onde começaram, realmente, os problemas”.

O Papa lamenta a “exploração” e a “tortura” promovida nos canais ilegais de imigração, que acontece “nas fronteiras da Europa”, advertindo para a persistência de uma ideia de “escravatura”.

“Não te recebo como irmão, uso-te”, exemplifica.

Francisco foi questionado sobre o papel histórico da Igreja, no colonialismo, assumindo erros do passado e denunciando as “escravaturas modernas”.

Em resposta a uma das questões, o Papa assume que o acesso das mulheres ao ministério ordenado está vedado por ser “um ponto dogmático, sério”.

Francisco alerta para o que chama de “machismo ministerial” que pode privar as mulheres de viver a sua “originalidade” nas comunidades católicas.

O Papa brinca com os jovens, por não conhecer as aplicações de encontros como o ‘Tinder’, aparentemente surpreendendo-os ao recordar que namorou, antes de entrar no seminário, e elogia a “ausência de fronteiras” nas novas gerações, capazes de “ir mais além”.

Uma da jovens do grupo apresentou-se como produtora de conteúdos para adultos, na internet, e levou Francisco a sublinhar a importância de “distinguir entre a riqueza de um meio [digital] e a moralidade do que se faz”.

“A pornografia diminui, humanamente” e não deixa a pessoa desenvolver-se, prosseguiu.

Na conversa, que apresentou visões diversas sobre a vivência da sexualidade, o Papa sustenta que é preciso evitar tudo o que “diminua a real expressão sexual”, como “expressão do amor”.

“O sexo é uma das coisas belas que Deus concedeu à pessoa humana”, afirma.

Francisco aponta à necessidade de uma “catequese madura” sobres estes temas, na Igreja Católica, considerando que “a catequese sobre o sexo ainda está de fraldas”.

Questionado sobre o lugar na Igreja para pessoas homossexuais e não-binárias, o Papa começa por alertar quem vive para “condenar os outros”.

“Não tenho o direito a expulsar ninguém da Igreja”, defende, afirmando que “todas as pessoas são filhas de Deus”.

No final do encontro, o Papa agradece o testemunho de uma jovem do Caminho Catecumenal, sublinhando que a verdadeira fé é “provada” e tem momentos de “escuridão”.

“Ter fé é uma graça, uma graça muito grande”, afirma.

Francisco conclui a conversa agradecendo a todos pelo “bem” que lhe fizeram e falando de uma imagem do que deve ser a Igreja, “todos irmãos, todos unidos”.

“Em frente, a vida é bonita, a vida é muito bonita. Há que cuidar dela, para que dê frutos”, recomenda.

Em 2018, o Papa promoveu uma Assembleia Sinodal dedicada aos jovens, no Vaticano, cujo documento final serviu de base à exortação apostólica ‘Cristo Vive’, dedicada às novas gerações.

OC

Sínodo 2018: Documento final propõe Igreja à escuta para recuperar a confiança dos jovens

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Agência ECCLESIA

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