Escola de participação cívica e religiosa

Dos militantes da AC era esperado que fossem o «fermento da massa» e, em muitos casos, foram-no – sublinha João Almeida Em 1933 a Acção Católica Portuguesa (ACP) era fundada para incentivar a participação dos leigos no apostolado da Igreja Católica sob a direcção episcopal e unir os católicos no terreno religioso e social. Setenta e cinco anos depois pedem-me uma opinião sobre a ACP por ter publicado um livro intitulado A Oposição Católica ao Estado Novo (1958-1974). Há algo de paradoxal nesta situação e trata-se de um paradoxo estimulante que nos permite tomar consciência do caminho percorrido, e dos riscos e acidentes de percurso de quem o percorreu. Há um fio condutor neste percurso, que é anterior à AC, e é por ela assumido: o da valorização do papel dos leigos na Igreja Católica e a procura de uma resposta à descristianização da sociedade. As palavras foram mudando conforme mudava o lugar concebido para os leigos na Igreja: «participação», no tempo de Pio XI, «colaboração», com Pio XII e, por fim, «apostolado dos leigos». Dos militantes da AC era esperado que fossem o «fermento da massa» e, em muitos casos, foram-no. Da JUC e das actividades desenvolvidas em torno do jornal universitário Encontro e do Centro Católico de Cinema, saiu o grupo que, com António Alçada Baptista como director, fundou, em 1958, a Editora Morais e, em 1963, a revista O Tempo e o Modo. Editora e revista publicaram livros e artigos de teologia favoráveis a uma renovação eclesial consagrada no II Concílio do Vaticano. A tentativa de aggiornamento do catolicismo português teve alguns reflexos na organização da ACP: a partir de 1966 passou a ser dirigida por um leigo, sendo o primeiro mandato cumprido pelo Eng.º Sidónio Paes. E deu frutos na cultura portuguesa: na literatura, no Movimento de Renovação da Arte Religiosa, no teatro, no cinema. Uma consequência inesperada, inclusive para alguns assistentes eclesiásticos, da dinâmica das elites formadas pela ACP é a dissidência em relação ao Estado Novo, que adquire uma inegável visibilidade pública a partir das eleições de Humberto Delgado, em 1958. O fenómeno punha em causa uma divisão de esferas de acção consagrada pelo regime nos anos trinta: os católicos que desejavam fazer política ingressavam na União Nacional (UN); os católicos motivados por uma intervenção no terreno social e religioso aderiam à ACP. O problema é que alguns católicos achavam que só podiam dar testemunho da sua fé e dos seus valores tomando, face às injustiças sociais, uma posição política contrária às posições da UN. Como o Bispo do Porto assinalava na sua célebre carta a Salazar, o regime colocava os católicos e a Igreja numa situação de menoridade política. Dirigentes da JUC e da JOC desempenham um papel importante na resistência ao Estado Novo. O fantasma de transformação da ACP num partido político, levantado pelo regime vigente, nunca vingou. Verificou-se antes um processo de consciencialização dos militantes da AC que adquiriu uma dimensão política diversificada. Os militantes católicos envolvidos na democratização da sociedade portuguesa adquiriram na AC a consciência dos problemas sociais e o gosto pela intervenção cívica; a experiência de dirigir grupos, participar em eleições e assembleias deliberativas; o convívio com pessoas de diferentes sensibilidades políticas. Ainda na fase final da ditadura e após o 25 de Abril usaram esta experiência formativa em partidos e sindicatos. O método de «revisão de vida» da AC – ver, julgar, agir – eliminou barreiras entre a vida quotidiana, concreta, e a devoção religiosa, levando a consciência e a prática católicas para a vida política, sindical, laboral, familiar, social. A extinção da Junta Central da AC, em Dezembro de 1974, marca o fim da concepção e da prática da AC como corpo orgânico. Esta reformulação reflecte o que eu considero outro paradoxo da ACP tal como existiu de 1945, ano de instauração do quadro orgânico da AC assente na idade, género, meio social e profissão, até 1974. É que, apesar desta «arrumação» dos militantes da ACP por diferentes secções, tenho observado, ao conviver com eles, e até tendo entrevistado alguns, uma tendência para o tempo esbater as diferenças e sublinhar uma formação comum. Partilham um modo de ver, julgar e agir sobre o mundo originado pela sua fé em Cristo, modo que muitas vezes se mantém mesmo tendo-se perdido a referência a Cristo. Nos tempos que flúem, marcados por uma vivência individualista da fé e dos estilos de vida, pela fragmentação social, a acção católica terá de ser outra, gerando outros paradoxos e desafios. João Miguel Almeida, Centro de Estudos de História Religiosa – UCP

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