Episódios do exílio de D. António Ferreira Gomes na diocese de Valência

O bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, esteve exilado na diocese de Valência (Espanha) de 1960 a 1963. Passados 50 anos deste exílio, em entrevista à Agência ECCLESIA, o padre Nuno Vieira, da diocese Segorbe-Castellón, relata alguns episódios deste período que o prelado portuense esteve «ausente» do país.

O bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, esteve exilado na diocese de Valência (Espanha) de 1960 a 1963. Passados 50 anos deste exílio, em entrevista à Agência ECCLESIA, o padre Nuno Vieira, da diocese Segorbe-Castellón, relata alguns episódios deste período que o prelado portuense esteve «ausente» do país.

Agência ECCLESIA (AE) – No início do II Concílio do Vaticano, D. António Ferreira Gomes estava exilado na diocese de Valência (Espanha). Apesar das contingências, não deixou de exercer o seu múnus episcopal nas terras levantinas?
Nuno Vieira (NV) – Além de um exílio forçado, se um bispo se retirasse – ainda para mais com a idade que tinha D. António Ferreira Gomes e tal como se encontrava de saúde – seria uma dupla humilhação. Foi acolhido em Valência e o bispo da diocese espanhola contou com ele para fazer as visitas pastorais. Sabe-se que deu também algumas conferências no seminário, mas em âmbitos mais reduzidos. O grande contacto que teve foi com as paróquias e com as comunidades religiosas que visitou também durante as visitas pastorais.

AE – Visitas pastorais que eram preparadas de forma minuciosa?
NV – Verdade. D. António Ferreira Gomes tinha uma desvantagem muito grande porque não conhecia o meio. Por isso, tinha reuniões periódicas com o bispo titular (D. Marcelino Olaechea) e também com o bispo auxiliar (D. Rafael González Moralejo) para poder organizar essas visitas. Além do mais, era fundamental perceber o momento político e histórico que se vivia.

AE – Antes de chegar a Valência, D. António Ferreira Gomes esteve em Santiago de Compostela. Existe alguma razão para este salto territorial?
NV – Alguns historiadores apontam para a proximidade da fronteira portuguesa. No entanto, suponho que quando esteve em Santiago de Compostela esperava-se que não fosse um exílio tão prolongado. O facto de estar perto, a qualquer momento possibilitava a entrada em Portugal.
Como essa entrada em terras portuguesas não se verificou, os bispos espanhóis e o núncio não tinham grande desejo que D. António Ferreira Gomes estivesse fora de Espanha. Chegaram à conclusão que esta parte da Península Ibérica seria uma boa opção. Consta também que, o primeiro contacto feito é com a diocese de Segorbe-Castellón porque estava recém-nomeado o bispo para aquela diocese espanhola (formou-se em 1960).

AE – A hipótese da diocese Segorbe-Castellón foi colocada de lado?
NV – Suponho que sim. Vi um documento onde se perguntava ao bispo da diocese se tinha disponibilidade em recebê-lo – não sei a resposta porque o arquivo da nunciatura ainda não está disponível -, mas suponho que os motivos alegados foram que a diocese era recente e pequena. Numa informação obtida com um padre colaborador directo do bispo da época, este disse-me: “Seria melhor que ele [D. António Ferreira Gomes] estivesse numa diocese maior e com outro dinamismo pastoral”.

AE – Como foi o acolhimento de D. Marcelino Olaechea [bispo titular de Valência] ao bispo português exilado?
NV – Não foi uma situação nova na diocese de Valência. Quando o bispo do Porto chegou, já vivia em Valência o arcebispo de Lima, (Peru), D. Emílio Francisco Lissón Chaves, que estava em condições similares. Tinha trabalho pastoral na diocese, mas estava muito limitado devido à doença e à idade (faleceu dois meses após a chegada do bispo português). Valência contava apenas com um bispo auxiliar, D. Rafael González Moralejo, que se tornou íntimo amigo de D. António Ferreira Gomes.

AE – D. António Ferreira Gomes foi fazer o «papel» de um bispo auxiliar?
NV – Pode dizer-se que sim. D. Marcelino Olaechea era um homem muito independente e, em simultâneo, muito organizado. É da tradição dos arcebispos de Valência, homens de grande actividade pastoral. O arcebispo titular contou com D. António Ferreira Gomes para as visitas pastorais.

AE – Nos três anos (1960-63) que esteve nesta diocese espanhola realizou 173 visitas pastorais. Um número muito alto, sabendo que passou bastante tempo no Vaticano na preparação e no concílio?
NV – Verdade. Fez, talvez, aquelas que teria feito na diocese do Porto (risos…).

AE – Este número, demonstra o seu empenho pastoral.
NV – A diocese de Valência é enorme. D. António Ferreira Gomes deu uma ajuda preciosa.

AE – A chegada do bispo do Porto à diocese de Valência suscitou um interesse especial nos movimentos com sensibilidade social. Estes movimentos tinham conhecimento do percurso de D. António Ferreira Gomes?
NV – Foi uma chegada muito abafada. Os jornais espanhóis da época não dizem absolutamente nada da questão. Visitei a hemeroteca onde pesquisei todos os jornais daqueles dias (antes e depois) e não há nenhuma referência à chegada do bispo do Porto. Excepto a ECCLESIA (revista espanhola), que noticia que o bispo do Porto estabeleceu a residência na diocese de Valência. Por outro, através de testemunhos das religiosas que atendiam D. António Ferreira Gomes, as visitas eram bastante controladas e escassas.

AE – Visitas de portugueses?
NV – Sim. Essencialmente de padres e, muito poucas vezes, de leigos. Sabe-se também que eram visitas rápidas. As visitas mais alargadas aconteciam quando D. António saía de Valência.

AE – O General Franco não mostrou reticências em acolher um bispo que foi expulso por António Oliveira Salazar?
NV – Franco era um homem profundamente católico, com uma eclesiologia antes do II Concílio do Vaticano. Sempre respeitou os bispos. Se houve algum temor do poder político foi na chegada de D. António Ferreira Gomes… Algum temor por aquilo que pudesse acontecer e da possível aproximação de alguns grupos sociais que pudessem tomar o bispo do Porto para a questão social. Tal como noutras ocasiões, D. António Ferreira Gomes demonstrou a sua inteligência e não se deixou expor a nenhum tipo de contacto.

AE – Ele sabia que estava controlado pela polícia política de Portugal e Espanha?
NV – Não há conhecimento de agentes da PIDE na diocese de Valência, mas sabe-se que a polícia espanhola passava informações à polícia portuguesa. A polícia espanhola controlava-o.

AE – Mesmo nas visitas pastorais?
NV – Algumas sim.

AE – Alguns discursos dele eram proferidos na língua de Camões com receio de ser mal entendido em castelhano. Ele dominava a língua de Cervantes?
NV – Ele dominava o castelhano, mas sentia-se mais à vontade a falar português. As testemunhas da época dizem que ele falava um «portunhol», por outro lado seria também uma desculpa para não entrar em determinados temas.

AE – Existe alguma razão específica para que D. António Ferreira Gomes tenha ido viver para uma casa de religiosas e não para a casa episcopal?
NV – Não há tradição em Valência que o bispo titular viva com os seus auxiliares. D. Marcelino Olaechea vivia no Paço Episcopal e o seu auxiliar, D. Rafael González Moralejo, vivia noutra residência. O bispo titular tinha uma vida autónoma.

AE – Apesar de exilado, D. António Ferreira Gomes escreve uma missiva [datada de 27 de novembro de 1961] a Guilherme Braga da Cruz onde sublinha que “afinal o desterro é a liberdade e alguma possível aspiração de verticalidade”.
NV – Era liberdade porque lutava pela causa da liberdade. Ele continuava a pensar que era possível a liberdade. Foi um homem com grande liberdade interior e isso ficou demonstrado quando ele voltou a Portugal.

AE – Mas os discursos feitos na diocese levantina não tinham o mesmo teor daqueles que fazia no Porto.
NV – Não podia fazê-los. Primeiro por cortesia com o arcebispo que o recebeu, por outro lado ele também sabia a situação delicada em que se encontrava. Teve de ser muito prudente para chegar ao fim.

AE – D. António Ferreira Gomes nunca pensou em fixar-se, definitivamente, em Valência?
NV – Suponho que não. Apesar do sucesso que teve e de ser reconhecido – foi convidado para os grandes actos sociais – sempre desejou, até pelo seu temperamento, voltar ao Porto. Foi homem muito empenhado na diocese – fazia cerca de 60 visitas pastorais por ano – mas também dedicou muito do seu tempo a preparar as sessões do II Concílio do Vaticano.

AE – No início, devido à situação deliciada esteve ausente dos media. Depois, no fim de mostrar o seu valor e de ser conhecido, deu alguma entrevista a algum órgão de comunicação social?
NV – Não existe nenhuma entrevista de D. António Ferreira Gomes. Nas consultas feitas, todos são unânimes: o bispo do Porto era um homem muito reservado.

AE – Mas em Portugal concedeu entrevistas.
NV – Em Valência, a situação era muito comprometedora. Apesar de se considerar livre interiormente, D. António Ferreira Gomes estava muito condicionado na acção.

AE – O clero de Valência tinha conhecimento que D. António F. Gomes era um bispo exilado?
NV – Tinha conhecimento e comentavam. Os comentários, por norma, eram acolhedores. Ninguém percebia como se podia exilar um bispo, só se fosse por prepotência do poder político. Havia um profundo respeito por D. António Ferreira Gomes e, inclusivamente, chegou a ordenar um sacerdote. O bispo português sempre foi muito educado e carinhoso para com as pessoas.

AE – Nas cerca de 180 visitas pastorais que realizou na diocese e naquilo que escreveu dá para perceber que D. António Ferreira Gomes deu uma atenção especial aos mais desfavorecidos.
NV – Era o momento pós-guerra e havia muita miséria. D. Marcelino Olaechea chegou a fundar 200 congregações religiosas que se dedicavam a apoiar os mais pobres e necessitados. Foi quando começou a instrução primária e havia um índice de analfabetismo tremendo. Encontravam-se casos dramáticos.

AE – Sendo D. António Ferreira Gomes um bispo intelectual e que falava para as elites, em Espanha mudou o seu estilo de linguagem?
NV – Era um homem mais simples porque tinha uma realidade diferente. Tinha um povo marcado e dividido. É conveniente não esquecer que na guerra espanhola houve confrontos entre pais e filhos. Famílias inteiras divididas. Uns no «bando» republicano e outros no «bando» nacional. Realizaram-se autênticos massacres e a Igreja contribuiu na restauração da paz social. Esta serviu-se continuamente do apelo ao perdão e ao esquecimento.

AE – O bispo do Porto soube compreender a realidade onde estava inserido e ajudou a apaziguar os ódios.
NV – Isso foi notório. Era a grande missão da Igreja, basta ver as cartas pastorais e as homilias dos bispos. Fazia, com frequência, um apelo à fraternidade e à unidade.

AE – Não era perigoso falar de pobreza naquela época? Ser-se conotado com os partidos políticos da esquerda?
NV – Quando D. António Ferreira Gomes esteve nas terras levantinas, já não era muito perigoso porque havia bispos que tinham essa sensibilidade social.

AE – Alguns bispos estavam na iminência de serem desterrados. O caso do bispo de Bilbau, D. António Añoveros, é disso um exemplo.
NV – Naqueles anos ainda não, mas poucos anos depois sim. Pretenderam expulsá-lo do país repetindo na íntegra o método de Salazar, por atrever-se a publicar, em 1973, uma homilia hostil ao governo com a ordem expressa de ser lida pelos sacerdotes em todas as igrejas da sua diocese. No entanto, Franco voltou atrás. Apesar da linha ideológica que tinha, Franco era um homem profundamente religioso e respeitador da Igreja.

AE – O silêncio de Franco em relação ao exílio de D. António Ferreira Gomes pode ser entendido com aprovação ao acto de Salazar?
NV – Não. O silêncio de Franco significa mais o respeito que ele tinha para com os bispos.

AE – Mas Salazar também era católico…
NV – Franco pensava de forma diferente de Salazar. Franco necessitava da Igreja para levantar o país. Este sabia que o único aliado que o podia ajudar a trazer a paz social era apenas a Igreja. A Igreja era a única que conseguia juntar os dois «bandos» da guerra: os nacionais e os republicanos.

AE – As visitas e inaugurações de cemitérios faziam parte do programa das visitas pastorais. Havia um grande culto aos mortos naquele tempo?
NV – Actualmente perdeu-se bastante, mas havia um grande culto. Tanto que uma actividade específica desses actos pastorais era a visita aos defuntos.

AE – O bispo do Porto não foi convidado para leccionar?
NV – Li autores que dizem que ele deu aulas no Seminário de Valência. No entanto, quando fui investigar cheguei à conclusão que não deu aulas em nenhum sítio (risos…). Nos livros do seminário não aparece nenhum registo onde apareça D. António Ferreira Gomes como professor. Estranhei bastante as afirmações de tais autores porque sabia que os professores eram todos vistos «à lupa».

AE – Devido à sua intensa actividade, D. António Ferreira Gomes não dispensava o seu tempo de férias. Nesses locais também recebia familiares e elementos do clero do Porto?
NV – Recebia muitas visitas. É curioso que algumas delas foram feitas no carro porque se sentia vigiado. Era mais fácil estar em Valência do que fora da cidade.

AE – Durante o período (1960-1963) que esteve em Valência, D. António Ferreira Gomes travou uma grande amizade com D. Rafael González Moralejo, bispo auxiliar da diocese. O conhecimento teve o seu início no Porto (num congresso) e aprofundou-se na diocese valenciana.
NV – D. Rafael González Moralejo manifestou sempre um sentimento de carinho para com D. António F. Gomes pela situação que estava a viver. Muitas vezes, pensamos que tudo isto é fácil, mas desterrar um bispo da sua sede deve ser difícil…

AE – O bispo auxiliar era professor do Instituto Social Leão XIII de Madrid. As questões sociais eram uma preocupação dos dois prelados.
NV – Na diocese de Valência era D. Rafael González Moralejo que tinha o pelouro das questões sociais.

AE – Desempenhou também um papel importante junto da Santa Sé.
NV – Importantíssimo. Ele acabou por ser o intermediário entre D. António Ferreira Gomes e a Santa Sé. Estabeleceu-se uma relação de confiança entre os dois. Mesmo depois de ter sido nomeado bispo de Huelva, D. Rafael e D. António continuaram amigos.

LFS

 

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