Entrevista: «Temos mais quantidade de tempo para viver. É bom, mas não basta» – Maria João Valente

No dia 1 de outubro, o Dia Internacional das Pessoas Idosas por decisão da ONU, a demógrafa e professora universitária  analisa o contexto do envelhecimento em Portugal, afirma que a maioria está dependente de transferências sociais e defende maior educação e relacionamento entre gerações

Foto: Lusa

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Paulo Rocha (Ecclesia)

Como é que a sociedade e os governos olham para os nossos idosos?  Este país não é para velhos?  

Bem, eu diria que este país,  apesar de tudo,  está hoje bem melhor do que estava no passado. A pobreza extrema, a falta de condições de higiene e de saúde, os comportamentos e estilos de vida matavam muito precocemente.  E eram muitas as pessoas que não tinham qualquer chance de chegar às idades mais altas. Isto é muito importante lembrar. Portanto, hoje, para alguém, envelhecer é melhor do que envelhecer no passado.

E o panorama hoje em Portugal também é muito diferente. Existem muito mais pessoas nas idades superiores do que existiam no passado. Lembro apenas que nas últimas cinco décadas, passaram a existir mais de cerca de 1,6 milhão de pessoas com 65 ou mais anos.  E que, em 1970, este grupo de 65 ou mais anos representava 10% da população e hoje já representa 23%. Ou seja, cerca de 1 em cada 4 residentes em Portugal tem 65 ou mais anos. Mas, e aqui a grande questão, a razão para isto ter acontecido não foi um por acaso. Ou seja, esta evolução, que se saudou pelo aumento de pessoas nas idades superiores, chamadas vulgarmente de velhos, aconteceu em resultado da diminuição da mortalidade. E a diminuição da mortalidade é muito fruto do desenvolvimento social. Ou seja, hoje vivemos muito mais anos em média do que no passado. À nascença temos a esperança de vida de 81 anos, mais cerca de 14 anos do que era em 1970.  E, aos 65 anos, a esperança de vida é de cerca de 20 anos. Ainda temos mais 20 anos pela frente, quando chegamos aos 65. Isto é mais 6 anos que em 1970. Portanto, diria que vivemos em média mais tempo e que temos mais quantidade de tempo para viver. É bom, mas não basta.  Ou seja, muitos desses anos nas idades superiores são vividos sem qualidade, com problemas de saúde muito especial no caso das mulheres e em Portugal. Aliás, Portugal, no quadro da União Europeia, é um dos países com maior proporção de tempo de vida após os 65 anos sentido com incapacidades. Isto é, nós temos mais tempo para viver, mas muito desse tempo é vivido com problemas de saúde.  Não tem que ser assim, mas está a sê-lo e, por isso, quantidade e qualidade de anos de vida não são sinónimos.

 

Mas isso quer dizer que o cuidado que se tem com as pessoas mais idosas não é aquele que a sociedade deveria ter?  

Já vamos aos cuidados… Mas eu gostaria ainda de notar que a qualidade de vida tem muito a ver ou está muito relacionada com a escolaridade.  Envelhecer bem, envelhecer com qualidade, a escolaridade é aqui uma dimensão importante para isso. Não só pelos maiores rendimentos que estão associados, que fazem também aumentar a nossa capacidade de acesso a recursos, designadamente de saúde, como também pela maior consciência e adoção de comportamentos e estilos de vida menos nefastos para a saúde.  Portanto, diria para já que estudar e ter estudos faz bem à saúde e aumenta as hipóteses de envelhecer de forma mais saudável e ativa.

E, por isso, uma das partes que pode ajudar a compreender este nosso envelhecer mal em Portugal ou menos bem do que em outros países, tem a ver com a baixíssima escolaridade das pessoas nas idades superiores. Metade das pessoas com 65 ou mais anos tem no máximo o primeiro ciclo de escolaridade, ou seja, a antiga 4ª classe.  Portanto, apesar de já vivermos muitos anos em média, há aqui um aspeto que é muito importante a ter em conta.  E é claro que isto tem implicações na necessidade de cuidados, como colocou a questão.

A população nas idades superiores, de facto, é uma população particularmente vulnerável e,  embora muitas vezes nós também sejamos tentados a considerar os mais velhos como um grupo homogéneo em que todos são iguais, nós não somos todos iguais quando chegamos a uma determinada faixa etária. No entanto, eu diria que o grupo, de uma maneira geral, dos mais velhos,  é um grupo particularmente frágil, quer em termos financeiros, e isto é muito importante ter em conta. Em 2021, quase 90% das pessoas com 65 ou mais anos seria pobre se não tivesse transferências sociais. Ou seja,  após as transferências sociais,  que grande parte são as reformas e as pensões, este valor passa para 17%. A esmagadora maioria da população mais velha seria pobre se não recebesse pensões. Isto coloca a população numa dependência e numa vulnerabilidade financeira muito grande em relação aos outros.

Mas não é só isso que nos torna mais frágeis. Embora envelhecer não seja uma doença porque senão nós estaríamos doentes desde que somos concebidos, também acontece que o avançar na idade faz aumentar a prevalência de certas patologias, nomeadamente, doenças crónicas e degenerativas.

E o cuidado não se prende só com os cuidados de saúde.  É uma abrangência maior nesse relacionamento com os idosos e que implica o cuidado.

Claro, a saúde é um aspeto importantíssimo, mas também existem outras situações igualmente importantes. Também vimos a questão financeira e realmente a população idosa é uma população onde prevalecem situações de enorme pobreza. E, para além disso, também temos situações ligadas à solidão e muitas vezes ao isolamento social, que tornam também este grupo particularmente frágil.

Diria eu, para concluir, que no fundo chegar às idades avançadas poderia ser entendido como um enorme privilégio. Mas, de facto, vivermos em idades avançadas nem sempre nos traz grandes vantagens. Isto porque o avançar na idade é muitas vezes acompanhado de processos de fragilização individual e social e que necessitam de proteções e de cuidados especialíssimos de vários tipos. Esses grupos ficam muito afetados quando esses cuidados não existem ou não chegam.

 

Falou precisamente da questão da saúde.  O acesso à saúde é também um grande problema em Portugal e uma situação dramática, sobretudo junto da população mais idosa como sublinhou há instantes. O que é que podemos ou devemos esperar do Estado na procura de soluções para esta franja de portugueses mais vulneráveis?  Há também uma preocupação particular com a saúde mental? O impacto da solidão é também um desafio importante para ser abordado?  

São várias questões que me coloca. Mas, em primeiro lugar, penso que nós devemos lembrar-nos que hoje, o presente, é muito diferente do passado.  Isto significa que as questões de saúde e os desafios que se colocam à saúde nos obrigam a rever e repensar o sistema tal como foi montado. Porque hoje a resposta para problemas episódicos ou agudos em termos de saúde já não basta. Portanto, nós temos situações de multimorbididade, que se juntam múltiplas doenças ou problemas em cada uma das pessoas. As doenças crónicas e degenerativas são cada vez mais importantes. A cura para um problema ou uma doença já não é suficiente. É preciso também apostarmos muito na prevenção.

O perfil das pessoas é muito diferente do que era no passado. Nós temos um panorama, como eu comecei por dizer, em Portugal comparativamente ao que tínhamos no passado que é muito diferente. Isto obriga o Estado, os poderes públicos e todos nós a repensarmos as respostas que temos de dar perante estas novas realidades e exigências.  Por forma a que, de facto, aquilo que está reconhecido na Constituição, que todos têm direito à proteção na saúde, seja uma realidade para todos e não mais para uns do que para outros. Normalmente quando eu falo dos outros, são as pessoas mais frágeis, pertencentes a grupos sociais mais baixos, que ficam claramente neste momento em enorme desvantagem em relação à saúde. Portanto, o Estado tem obrigação de encontrar soluções que não sejam a réplica ou mais do mesmo que tínhamos no passado e que funcionavam bem no passado, mas que já não funcionam bem nem no presente nem em relação ao futuro.

Sobre a saúde mental, é claro que há aqui um problema muito grave. Muitas das pessoas que vão envelhecendo vão ficando expostas a certos estereótipos muito negativos e a sua capacidade cognitiva e de memória muitas vezes diminuem em função disso, e a solidão fica muitas vezes reforçada. Há aqui uma série de aspetos que se combinam e que se combinam de uma forma muitas vezes dramática para muitos. Por isso, é essencial, na minha ótica, para o combate à solidão, reforçar os laços de interação social.

Para tal, existe um aspeto que tem que obrigatoriamente ser combatido por todos.  E esse aspeto chama-se o idadismo. Eu não gosto da palavra, mas é assim que nós a conhecemos.  Ou seja, a discriminação da pessoa em função da idade.  Este preconceito é terrível e cria enormes problemas às pessoas que, de um momento para o outro, se veem afastadas do seu quadro social apenas porque têm ou porque atingiram uma determinada idade. E as Nações Unidas realmente reconhecem, num relatório recente de 2021, que o preconceito de idade prejudica o nosso bem-estar e a nossa saúde, incluindo a saúde mental, e constitui um obstáculo importante à adoção de políticas eficazes e à tomada de medidas para um envelhecimento saudável. Ou seja, nós podemos envelhecer de uma forma saudável, mas é preciso removermos alguns obstáculos.

 

O que é que aconselharia para alterarmos este panorama?  

Mais uma vez, que nós nos repensássemos perante uma sociedade que é bem diferente, é uma sociedade de vidas longas.  As pessoas têm hipótese, e bem, de viver mais tempo. Quem não gosta de viver bem, não é?  Porque não basta só esticarmos anos à vida. É preciso que este bónus, como eu aliás dizia num livro recente que publiquei, que se chama «Um Tempo Sem Idades»… O que nos tem acontecido é que o bónus de anos que temos vindo a ganhar, no fundo, tem correspondido a mais tempo para ser velho. E era muito importante que existisse mais tempo para se viver, para se viver em todas as idades. Porque falar de envelhecimento não é só falar das pessoas mais velhas, é falar de todos. Todos nós somos pessoas, todos nós temos um valor no quadro da sociedade.  E não podemos ser colocados à margem por rótulos vários, desde se somos homens ou mulheres, a nossa origem ou a idade que temos. Este é o primeiro ponto, remover esses obstáculos que criam ou que fragilizam a sociedade e que têm enormes dificuldades.

 

Infelizmente, por vezes, e com muita mais frequência que o que desejaríamos, chegam notícias de maus-tratos a idosos.  E são também frequentes os relatos de lares de idosos sem condições. Neste nosso país, o quarto mais envelhecido do mundo, colocaria a questão do abandono entre os principais problemas dos idosos?  

Bem, eu penso que, por um lado, os maus-tratos não têm apenas a ver, infelizmente, com os idosos. São também um problema relativo aos idosos, mas não são unicamente os idosos. Nós também sabemos que existem maus-tratos em relação às crianças. Normalmente são os grupos mais frágeis que são o alvo deste tipo de situação. Por outro lado, diria que não é por sermos um dos países mais envelhecidos do mundo que este problema dos maus-tratos se torna um problema grave. E mesmo que fôssemos o país mais envelhecido do mundo, este problema do abandono de pessoas é um problema gravíssimo, sempre do ponto de vista social.  E exige respostas estruturadas e não avulsas de defesa e de segurança dos mais vulneráveis e que estão em situação de dependência. E essa, diria eu, é uma das grandes missões do nosso Estado Social, missão essa que nem sempre tem sido, como disse, concretizada da melhor forma. Portanto, é aqui que nós devemos também colocar a nossa maior atenção: ao abandono e a tudo que é consequência desse mesmo abandono, e olhando, em particular, para os grupos mais frágeis,  mais vulneráveis, quer do ponto de vista social, quer do ponto de vista físico,  quer do ponto de vista financeiro.

 

O Papa Francisco defende uma maior interação entre gerações. Estamos a perder aos poucos essa importante ligação entre, por exemplo, avós e netos?  

Em primeiro lugar, é preciso notar que hoje, felizmente, as hipóteses que os netos têm para conhecer os seus avós com vida, avós, bisavós, etc. são imensamente maiores do que no passado. Isso é muito bom! Aliás, desde 2010, em Portugal existem mais pessoas com 80 ou mais anos do que pessoas com menos de 5 anos, ou seja, existem cada vez mais avós por criança.  Portanto, com vida, as hipóteses são várias.  No entanto, o que acontece é que, com a rapidez da mudança, muitas vezes as distâncias geracionais vão-se acentuando. A começar pelas diferentes linguagens, que são usadas entre gerações, pelas diferentes redes de interação social que se têm, pelos diferentes espaços públicos em que as pessoas se movem e frequentam. Dá por vez a sensação de que, apesar de termos muito mais gerações em presença do que existiam no passado, temos vários mundos a rodarem em simultâneo. Uns povoados por mais velhos e outros povoados por mais novos.  Mas o mundo é só um. E nada disto, na minha perspetiva, faz sentido vivermos em mundos paralelos em nome da coesão e da harmonia social. E por isso é muito importante fomentar a interação entre diferentes gerações. E como é que isto se faz?  Há várias formas. Mas eu diria que, por exemplo, era essencial apoiar projetos públicos ou privados que promovessem a partilha, as relações inter-geracionais, através de partilha de espaços e de saberes,  que fossem transversais. Espaços, por exemplo, escolas. Por que razão? As escolas deveriam ser frequentadas por várias idades e por todas as idades. E aprender nas escolas, independentemente das idades que temos, saberes que interessam a todos. Por exemplo, saberes e competências ligadas à literacia financeira, à literacia digital,  são saberes que interessam a todos. Porque não encontrarmos espaços importantes de partilha, em que todas as gerações possam estar presentes? Talvez fosse assim um caminho para aproximarmos as gerações e para reduzirmos estas fissuras que se vão notando em virtude de nós nos envolvermos em mundos muitas vezes paralelos.

 

Será necessário, até na linha do que dizia,  o maior protagonismo aos mais velhos,  rejeitando a ideia de descarte que o Papa Francisco tanto tem denunciado?  

Descartar, como disse há pouco, as pessoas com base na idade, pois na realidade a idade descrimina nesta sociedade, é mau. É mau, é redutor, por um lado, pois as pessoas, como nós sabemos, não são todas iguais e cada um de nós é muito mais do que a idade que tem. Nunca é demais lembrar algumas das implicações que a discriminação, com base na idade, tem, nomeadamente, representa um desperdício de capital humano incrível.  As pessoas, a partir de certa idade, são postas à margem, independentemente dos seus saberes e daquilo que ainda podem dar à sociedade e contribuir para a sociedade. Há um desperdício enorme de capital humano. Também o facto de descartarmos as pessoas em função da idade contribui também muito para um aumento, como vimos há pouco, das despesas com a saúde, pelos efeitos que esta discriminação pode ter na vítima, ou seja, naquela pessoa que é discriminada. Também esta discriminação agrava riscos de fragilidade social, de pobreza e acentua claramente a exclusão social dos mais velhos. Ou seja, nada disto faz sentido.

Todos nós, cada um de nós, cada pessoa tem um imenso valor e nós temos de olhar para as pessoas e não nos descartarmos delas, seja por que razão for. Aliás,  é estranho que numa sociedade como a nossa, cada vez mais dependente do conhecimento para obter algum dinamismo económico,  é o conhecimento que faz a diferença entre o dinamismo económico das cidades. É estranho que,  sabendo que o conhecimento é um valor que não tem idade,  não é por sermos mais velhos ou mais novos, que somos mais conhecedores e sabedores.  É estranho que, numa sociedade como esta, continuemos a pensar que a pessoa mais velha é menos interessante para a sociedade que a pessoa mais nova. Portanto, é preciso evitar ou combater esta chamada ditadura da idade. E isso é um passo essencial e também repensarmos que a nossa vida, que está organizada de uma forma espartilhada em fases: temos uma fase para formação, uma fase para trabalho e uma fase para descansar ou uma fase de reforma. Tal como nós temos, este nosso mapa de vida  já não nos serve para os dias de hoje de vidas longas, foi pensado  para uma situação de vidas curtas. Portanto, o que é que nós temos aqui como mensagem? Temos que nos repensar enquanto sociedade, para tirarmos os verdadeiros dividendos de vivermos mais tempo. De outro modo,  viver mais tempo, mais quantidade, mas se essa quantidade não estiver associada à qualidade,  sinceramente, eu acho que estamos aqui a perder muito e grandes oportunidades.  Portanto, devíamos estar satisfeitos porque temos mais idosos connosco, mas é preciso saber que hoje as pessoas mais velhas não são necessariamente bem tratadas pela nossa sociedade e por isso é preciso olhar para elas. O assunto do envelhecimento e da longevidade… Nós começamos a envelhecer desde que nascemos, portanto,  temos de olhar para todos e por isso termos pessoas de várias idades é uma riqueza social enormíssima e temos mesmo que aproveitar custe o que estar. Mas, para isso, precisamos de mudar a nossa forma de pensar e passarmos a pensar em função da realidade que hoje temos, que é uma realidade bem diferente da do passado e que nos permite viver mais anos e não continuarmos a pensar em função de uma realidade que tínhamos no passado e que felizmente essa mesma realidade já não existe.

 

 

 

 

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Agência ECCLESIA

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