Encíclica social num mundo em crise

O mundo está em forte crise e muita gente sofre muito por causa dela. Este é o momento para o Papa dirigir uma palavra de conforto e orientação ao povo católico. Está anunciado para esta Terça-feira, 7 de Julho, um texto longamente amadurecido, Caritas in veritate, primeira encíclica social de Bento XVI. Para além da evidente oportunidade, ela tem um significado histórico assinalável. Vale a pena ver brevemente o seu enquadramento.

Há quase 120 anos, um Papa prudente e devoto teve um gesto espantoso. Ao tratar da «condição dos operários» na sua encíclica Rerum Novarum, Leão XIII estava consciente que se ia envolver na «sede de coisas novas, que há muito tempo se apoderou das sociedades e as tem numa agitação febril» (Rerum Novaram 1), como afirma a expressão inicial que lhe deu o título. Nascia assim em 1891 a Doutrina Social da Igreja, reflexão católica contemporânea sobre as questões sócio-económicas.

Leão XIII era um tomista profundo e sabedor e foi em S. Tomás de Aquino que inspirou os princípios da sua encíclica fundadora. Das catorze citações não bíblicas do texto, nove são directamente do Doutor Angélico, além de muitas alusões e paráfrases. A escolha foi judiciosa, porque o teólogo dominicano foi o primeiro grande pensador que lidou com o capitalismo nascente nos empreendimentos comerciais italianos do século XIII.

Além de S. Tomás, e também através de S. Tomás, a encíclica usou toda a tradição dos 1891 anos de Igreja e 4 mil anos de revelação, que assim ressoaram neste tratamento das questões contemporâneas. Porque a verdadeira Doutrina Social da Igreja vem do Alto, começou no Evangelho e foi sucessivamente desenvolvida e aplicada ao longo de séculos pelos Padres, Doutores, Bispos e fiéis, inspirados pelo Espírito. A proclamação de Leão XIII, momento especialmente marcante dessa actividade, integra-se e partilha assim dessa incomparável linhagem.

Em seguida, durante o primeiro século após a genial intervenção do Papa Pecci, sucederam-se os pronunciamentos do magistério, todos com alta qualidade e oportunidade, e todos invocando a Rerum Novarum como referência original. A Quadragesimo Anno de Pio XI, os discursos de Pio XII, as constituções do Concílio e os textos de João XXIII, Paulo VI e João Paulo II foram renovando e interpretando este extraordinário tesouro espiritual e intelectual para as circunstâncias do momento.

Naturalmente que no centenário da Rerum Novarum, a encíclica Centesimus Annus de João Paulo II, de 1 de Maio de 1991, foi um texto marcante. Mas, poucos anos após a queda do «muro de Berlim» e no ano da derrocada da União Soviética, a oportunidade que se vivia contribuiu para gerar um texto capital. A doutrina exposta alimentou a reflexão económica católica durante 18 anos.

Todo o trabalho desse majestoso primeiro século acabou depois compilado e organizado no Compêndio de Doutrina Social da Igreja, publicado pelo Conselho Pontifício «Justiça e Paz» a 2 de Abril de 2004. Este livro notável, cheio de referências e índices detalhados, assinala só por si a maturidade da Doutrina. A partir de então os católicos passaram a dispor de uma orientação clara, coerente e completa sobre a reflexão sócio-económica.

Nunca pode ser subestimado o valor espantoso deste corpo conceptual. Nenhuma outra instituição ou agrupamento humanos tem algo de semelhante. Nenhuma entidade, com esta abrangência e dimensão, alguma vez definiu princípios tão nítidos, vastos e operacionais como a Igreja. Os católicos possuem assim, como guia para a sua vida concreta, de um conjunto de linhas de orientação claras, elaboradas e fundamentadas. Infelizmente nem sempre as usam.

A encíclica agora anunciada será a primeira do segundo século da Doutrina Social da Igreja. A primeira depois do Compêndio, a primeira depois da grande crise de 2008-2009. Embora siga certamente o caminho traçado e aplique o Espírito, os textos e orientações de sempre à situação actual, como fizeram todos os casos anteriores, ela trará simultaneamente a abordagem original do seu autor e o sabor da conjuntura em que nasce.

Não compete ao Papa fazer análises económicas ou sequer apresentar soluções políticas. Mas é importante compreender a necessidade e urgência desta intervenção. Como explicou Leão XIII na encíclica inaugural, «é com toda a confiança que Nós abordamos este assunto, e em toda a plenitude do Nosso direito; porque a questão de que se trata é de tal natureza, que, se não apelamos para a religião e para a Igreja, é impossível encontrar-lhe uma solução eficaz.» (Rerum Novarum 8).

João César das Neves

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Agência ECCLESIA

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