“Encarnação e Missão”

Homilia do Cardeal Patriarca na Solenidade do Natal do Senhor 1. A Igreja de Lisboa celebra este ano o Natal, interpelada por três dimensões do mesmo mistério: a encarnação do Verbo de Deus, que torna Deus plenamente presente na realidade humana, a actuar como força decisiva da nossa história; o “Ano da Eucaristia”, proclamado pelo Santo Padre João Paulo II, desafiando-nos a descobrir a dimensão eucarística de todas as nossas festas e de todas as expressões da fidelidade cristã; e a preparação do Congresso da Nova Evangelização e da missão na cidade, que só têm sentido como expressão da coerência da nossa fé em Jesus Cristo, Deus feito homem, a plenitude de Deus expressa na realidade humana. A harmonia destas três dimensões havemos de procurá-la no Natal, ser seus peregrinos na Quaresma, celebrá-la na Páscoa, descobri-la como dinamismo transformador da história no Pentecostes, que encerra a promessa da universalização do dom do Espírito Santo, “o Espírito derramado em toda a carne”. 2. A Palavra de Deus hoje proclamada revela-nos que a encarnação do Filho de Deus em Jesus Cristo é a plenitude de um processo e a plena realização do desejo de Deus de estar próximo dos homens que criou: “Muitas vezes e de muitos modos falou Deus antigamente aos nossos pais, pelos Profetas. Nestes dias, que são os últimos, falou-nos por Seu Filho, a quem fez herdeiro de todas as coisas e pelo qual também criou o universo”. E o Evangelista São João diz-nos como isso aconteceu: “E o Verbo fez-Se carne e habitou entre nós. Nós vimos a Sua glória, glória que Lhe vem do Pai, como Filho Unigénito, cheio de graça e de verdade. O autor da Carta aos Hebreus, ao lembrar-nos que este Verbo encarnado foi quem criou o Universo, situa Jesus Cristo no âmago da criação. Ele é a mais radical expressão do amor de Deus pelos homens que criou. Mas Ele não se reduz às possibilidades da criação, sobretudo da criação que nós conhecemos e experimentamos, marcada pela fragilidade do pecado, que guarda intacto o desejo de absoluto, mas acerta dificilmente com o caminho que aí conduz. Por isso, ao falar da encarnação do Verbo de Deus, São João o apresenta como “cheio de graça”. A graça é a força transformadora com que Deus vem em auxílio das suas criaturas, para elas poderem atingir a plenitude para que foram criadas. Todo o drama da salvação se situa no quadro desta relação da natureza criada, que deseja a plenitude, e a graça como força que vem de Deus, para que essa plenitude não seja uma miragem. Nenhuma pedagogia da salvação seria verdadeiramente humana, se desconhecesse a natureza; nenhum entusiasmo pelos dons naturais do homem é caminho realista de plena realização, se não nos abrirmos a essa força do amor de Deus em nós, em cada momento em que vivemos a nossa vida, a que chamamos graça. É de tal modo assim, que o Evangelista fala de “plenitude de graça” referindo-se à plenitude da vida. Toda a santidade vivida é uma plenitude de graça. Ela aparece-nos, no mistério da encarnação, afirmada em dois planos: o de Deus, em Jesus Cristo, onde essa plenitude da força de Deus se exprime totalmente no Homem Jesus, devido à “unção” que recebeu do Pai; e o das criaturas transformadas em Jesus Cristo, pela mesma “unção do alto”, realizada pelo Espírito Santo, na sequência da sua Páscoa. Essa união mística a Jesus Cristo, realizada em nós, pelo Espírito Santo, na fé e no baptismo, torna possível aplicar às criaturas redimidas a noção de “plenitude de graça”. Aplicou-a o Anjo Gabriel a Maria, no momento da encarnação; há-de aplicá-la a todos os Santos o Anjo que tocará a trombeta congregando todos os eleitos para a definitiva plenitude, em Deus. A união de cada homem redimido a Cristo, no baptismo, enriquece o coração humano com uma capacidade divina de amor, que purificará continuamente a mais bela força da natureza, que é a capacidade de amar e de viver em comunhão, com Deus e com os homens seus irmãos. Essa capacidade divina de amar é a novidade cristã, realidade que vale a pena anunciar e nos torna capazes de anunciar, pois podemos dar testemunho da força do amor de Deus em nós. 3. O mesmo São João, no decorrer do seu Evangelho, completa a afirmação: “e o Verbo fez-Se carne e habitou entre nós”, com esta outra que respira já a realidade cristã, pondo na boca de Jesus estas palavras dirigidas aos discípulos: “Permanecei em Mim e Eu permanecerei em vós” (Jo. 15,4). O “habitar no meio de nós”, aplica-se a todos os homens nascidos depois da Páscoa. O “permanecei em Mim e eu permanecerei em vós” aplica-se àqueles que, na fé e no baptismo se uniram a Jesus Cristo e partilharam com Ele essa capacidade divina de amar. E a Eucaristia é a mais forte expressão deste mistério. Na nossa vida de peregrinos neste mundo, a Eucaristia é a mais completa vivência do mistério da encarnação do Verbo, porque envolve a Igreja nesse mistério de presença de Deus em nós, e também por nós, no meio dos homens. O Santo Padre João Paulo II, na Carta Apostólica “Fica connosco Senhor” parte, exactamente, dessa visão alargada do mistério da encarnação, ao mesmo tempo fonte e testemunho da nossa vida criada para o amor e comunhão. Escreve ele: “ao pedido dos discípulos de Emaús, para que ficasse «com» eles, Jesus responde com um dom muito maior: através do sacramento da Eucaristia encontrou o modo de permanecer «dentro» deles. Receber a Eucaristia é entrar em comunhão profunda com Jesus. (…) A comunhão eucarística foi-nos dada para «nos saciarmos» de Deus sobre esta terra, à espera da saciedade plena no Céu (n. 19). 4. É por isso que a Eucaristia é, inevitavelmente, o ponto de partida da missão. Ouçamos ainda o Santo Padre: “Os discípulos de Emaús, depois de terem reconhecido o Senhor, «partiram imediatamente» (Lc. 24,23) para comunicar o que tinham visto e ouvido. Quando se faz uma verdadeira experiência do Ressuscitado, alimentando-se do Seu corpo e do Seu sangue, não se pode reservar para si mesmo a alegria sentida. O encontro com Cristo, continuamente aprofundado na intimidade eucarística, suscita na Igreja e em cada cristão a urgência de testemunhar e evangelizar. Quis sublinhá-lo precisamente na homilia em que fiz o anúncio do Ano da Eucaristia, referindo-me às palavras de Paulo: «Sempre que comerdes este pão e beberdes este cálice, anunciais a morte do Senhor até que Ele venha» (1Cor. 11,26). O Apóstolo coloca em estreita inter-relação o banquete e o anúncio: entrar em comunhão com Cristo no memorial da Páscoa significa ao mesmo tempo experimentar o dever de fazer-se missionário do acontecimento que esse rito actualiza. A despedida no final de cada Missa constitui um mandato, que impele o cristão para o dever de propagação do Evangelho e de animação cristã da sociedade. Para tal missão, a Eucaristia oferece não apenas a força interior, mas também em determinado sentido o projecto. Na realidade, aquela é um modo de ser que passa de Jesus para o cristão e, através do seu testemunho, tende a irradiar-se na sociedade e na cultura. Para que isso aconteça, é necessário que cada fiel assimile, na meditação pessoal e comunitária, os valores que a Eucaristia exprime, as atitudes que ela inspira, os propósitos de vida que suscita. Como não ver nisto o mandato especial que poderia brotar do Ano da Eucaristia?” (n. 24-25). Partamos da Eucaristia e anunciemos o amor de Deus no meio da cidade. E Maria, a cheia de graça, dir-nos-á, em cada momento, que a “plenitude de graça” só estará completa, quando encher o mundo e transformar o coração de cada homem. † JOSÉ, Cardeal-Patriarca

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