EMRC conquista os alunos e a escola

Marco Bernardino, 38 anos, licenciado em jornalismo e aluno de doutoramento em teologia, fala à Agência ECCLESIA do seu trabalho enquanto professor de Educação Moral e Religiosa Católica (EMRC), nem sempre facilitado mas compensador

Marco Bernardino, 38 anos, licenciado em jornalismo e aluno de doutoramento em teologia, fala à Agência ECCLESIA do seu trabalho enquanto professor de Educação Moral e Religiosa Católica (EMRC), nem sempre facilitado mas compensador. O trajeto docente de 10 anos foi percorrido em escolas estatais até setembro deste ano, quando começou a dar aulas na escola Salesiana de Santo António do Estoril, concelho de Cascais.

 

Agência ECCLESIA (AE) – O que o atraiu nas aulas de EMRC?

Marco Bernardino (MB) – Sempre gostei de estar e lidar com jovens. Era também um jovem na altura e considerei que as aulas eram uma maneira diferente e apelativa de falar de Jesus Cristo, de uma forma que fosse ao encontro das expectativas dos alunos e pudesse ajudá-los a descobrir a linguagem religiosa no mundo onde estamos, dando-lhes ferramentas para verem o seu quotidiano e em que medida Deus estava presente nele.

Desde o início encarei as aulas não como uma profissão mas como uma missão. Ter o mandato do bispo não é decisivo mas lembra-me que não estou cá por mim e sim pela Igreja. Mais do que a minha opinião é-me pedido que transmita claramente o que a Igreja pensa. Isso sempre me encantou porque não é uma doutrinação, não é uma lavagem ao cérebro, é dar ferramentas ao jovem para analisar o que está à sua volta.

 

AE – Ser professor de EMRC implica testemunho de vida cristã?

MB – Sim, muito mais do que qualquer outro professor. Sempre dei aulas em escolas públicas, à exceção deste ano. Mais do que os alunos, são os professores que analisam o comportamento – a atitude, o que se fala, como nos comportamos, como se acolhe a diferença na escola – e nos olham como assertivos e conciliadores em determinadas situações.

O professor de Moral tem de ter conhecimentos muito sólidos mas também «jogo de cintura» para se adaptar às situações, sem ultrapassar a sua missão e sem ferir ninguém. Com os alunos isso é notório: se a vida não coincide com o que se mostra dentro da sala de aula, eles desligam.

É preciso ter uma sólida doutrina para responder às perguntas que os jovens colocam e senso de adaptação às situações, dando exemplos e não tendo medo de dialogar com os alunos sobre a minha própria vida.

 

AE – Como é a relação entre si e os seus alunos?

MB – Tem sido muito boa. Pode haver antagonismo no início, não contra o professor ou contra mim em particular, mas contra a disciplina. É preciso conquistá-los. Não com a minha pessoa mas com o que digo e faço. No final do ano quase todos são meus amigos. A disciplina ajuda a criar um ambiente descontraído e essa relação permite olhar para o professor não enquanto tal mas como alguém mais velho e que ajuda a refletir sobre várias situações.

Já tive confrontos e ameaças mas nunca me atemorizei. Com o tempo ajudei-os a encontrar a fórmula certa para estarem na sala de aula e respeitarem os colegas e o professor, mesmo em ambientes muito adversos.

Se o professor se mostrar realmente interessado pelos alunos e pela sua vida – e os jovens e crianças pressentem isso muito rapidamente – cria-se um clima favorável a uma boa participação conjunta. Mesmo nos bairros mais desfavoráveis os alunos aderiram bem.

Tive algumas dificuldades com a matéria em certos contextos culturais, onde o conteúdo não diz nada aos alunos. Transmitir-lhes alguma coisa que seja importante e vá de encontro à sua vida é muito complicado, pois se não lhes interessa desligam e dispersam. Houve alturas que consegui e outras não.

 

AE – Em EMRC há problemas disciplinares?

MB – Já tive problemas com alguns alunos, mas a nível preventivo. Os jovens medem sempre o ponto até onde podem ir. Quando fui aluno fazia o mesmo e enquanto professor estou alertado. Ao explicarmos as regras de forma clara, os alunos entendem que estão a agir mal. Noutros o mau comportamento manifesta-se na sala de aula, normalmente porque têm problemas em casa de afirmação ou autoafirmação. A esses é preciso mostrar fronteiras firmes e decisivas para saberem até onde podem ir.

Já marquei faltas disciplinares, não para castigar mas para prevenir. Nas aulas seguintes foi tudo mais saudável. Resultou mas podia não ter resultado. Quando os alunos sentem que o professor está a ser justo reconhecem o que fizeram mal.

Mais do que transmitir uma ideia, nas aulas interessa que o aluno se sinta à vontade e que a turma não tenha escolhos que impeçam o diálogo.

 

AE – Todos os alunos desta disciplina estão de livre vontade nas aulas?

MB – Muitos estão lá não por quererem mas porque os pais os inscreveram. É mais uma hora, as aulas de EMRC são colocadas depois das restantes disciplinas ou acabam remetidas para o primeiro tempo, e assim dormem menos que os colegas; ou então são à hora de almoço e têm de almoçar mais rapidamente. Não é a disciplina em si mas o horário nos extremos que torna a situação complicada.

Há aqueles que querem mesmo; quando assim acontece é muito bom e obtém-se uma atitude muito positiva para o professor e para a disciplina.

E há os alunos que se inscrevem porque com outro professor faziam viagens de estudo constantes. Nas minhas aulas relaciono as visitas com a matéria dada: por exemplo, se é sobre arte cristã vamos ao Museu de Arte Antiga; mas eles não gostam e preferem ir passear durante dois ou três dias.

 

AE – Há temas que não estão definidos no programa da disciplina?

MB – Sim, é óbvio. Várias vezes os alunos perguntam-me por que é que os padres não podem casar. Não posso dizer que isso não faz parte da matéria. Já sei que essa vai ser uma aula perdida – ou uma aula ganha porque vai ao encontro das suas questões e de outras que se levantam pelo meio. Essas, para mim, são as aulas mais agradáveis.

Ocasionalmente deixo frases no ar, normalmente polémicas, e se eles questionam gera-se debate, o que é muito agradável. Não deixo passar, dou sempre resposta, contextualizando bem, com informações históricas e espirituais, olhando para o presente. Gera-se diálogo, torna-se uma aula muito mais rica que eles recordam no futuro.

Preparo as aulas e por vezes eles destroem o esquema. Mas é preciso saber ir ao seu encontro. O facto de o aluno se abrir numa sala, ter à vontade, no meio de outros colegas de turma, é uma riqueza humana muito grande, mas se o professor não tiver base doutrinal ou científica onde se apoiar, fica descalço. Se mudar de assunto e quiser dar matéria, também não ficam contentes e desligam.

Se são perguntas despropositadas, corta-se e remetem-se para o final da aula. Quando são questões bem colocadas ou alguém partilha um problema e os outros ajudam é uma enorme riqueza. O essencial é sempre o aluno e o que ele quer transmitir.

 

AE – Como é que as aulas de EMRC são vistas pelos restantes docentes e pela direção das escolas?

MB – Depende das escolas e do professor que lá esteve antes. Quando chego às escolas, a minha preocupação é acentuar a EMRC como uma disciplina que, embora com especificidade, deve ser respeitada como as outras. Tem uma base científica onde se apoia, a Teologia, baseada em outras ciências – Sociologia, Filosofia – e tem um programa a cumprir de forma adequada aos alunos. Há sempre um descrédito sobre a disciplina e eu percebo isso quando chego a uma escola nova.

Houve estabelecimentos em que os diretores de turma iam ver os sumários que eu escrevia. Alguns questionaram o que eu dava nas aulas, se falava sobre a Igreja ou sobre a sua doutrina social, e perguntavam se os alunos escutavam. «Ah, que estranho», diziam eles quando eu respondia afirmativamente. Aconteceu-me o diretor da escola pôr-se à escuta a ouvir o que eu dizia. Mas isto é a primeira fase.

Pela qualidade das aulas, da pedagogia e da afirmação do que se diz na sala, os outros professores ficam sem margem para dizer mal da disciplina e acabam por respeitá-la. Ao ver que o docente de EMRC tem critérios de avaliação e uma planificação específica bem feita, faz testes, corrige-os e tem trabalhos discutidos na sala de aula, os restantes professores percebem que se trabalha e que a aula não é um intervalo.

Já tive colegas que me vieram dizer que a disciplina de EMRC é muito importante e faz falta nos dias de hoje porque os jovens não têm valores nem onde se apoiar. Esta posição tem consequências. Os outros professores, se gostam de nós, abrem-nos portas para ir às suas aulas; já me aconteceu ir falar sobre religião à aula de filosofia e os alunos ficaram agradados.

Nas inscrições [para o ano letivo] acontecem outros casos. Nunca gostei de me impor e estar presente, mas há colegas que desincentivam a inscrição por causa dos horários de EMRC e do seu regime de faltas [idêntico ao das restantes disciplinas]. Na escola pública isto é um problema.

Conseguir chegar a todos os professores para que todos trabalhem no mesmo sentido, mostrando que a disciplina é credível e necessária, é algo essencial a construir todos os dias.

 

AE – Deu aulas a que anos de escolaridade?

MB – Do 5.º ao 12.º. Tive períodos em que lecionei desde o 5.º ao 11.º, o que é difícil nos primeiros anos. As linguagens são diferentes e mudar de registo apenas numa hora foi difícil ao início. Mas com o tempo isso contorna-se.

São muitos níveis de ensino, às vezes em escolas diferentes, e tem de se dar uma aula de qualidade em todos os 45 ou 90 minutos. É necessário traquejo. Às vezes os horários díspares obrigam a ficar na escola, mas é bom para estar com os alunos nos pátios. É um desafio constante.

 

AE – Quais as maiores dificuldades que enfrentou nas aulas de EMRC?

MB – A principal é os alunos olharem para a disciplina de forma completamente diferente da minha. A primeira pergunta que me fazem é: «Faz testes?». Eu respondo: «Faço». «Oh, se soubesse não me tinha inscrito», replicam.

Segunda pergunta: «Vamos fazer uma visita de estudo por período?»: «Não, é impossível, nem a escola deixa nem conseguia dar matéria». «Ah, então já não gosto, não me inscrevo mais».

Perguntam-me também: «Mas vamos dar matéria e é preciso caderno e livro?». «Não, claro que não. Viemos para aqui passear…».

Por vezes tenho de ter conversas duras ao início. Explico que damos matéria e estamos numa sala de aula, mas com a colaboração de todos pode tornar-se muito mais interessante. Há muita coisa que se pode fazer de forma lúdica e educativa, como debates e filmes. Muitos alunos vão à partida com a ideia errada e nós temos de os conquistar. Esse é o maior desafio que enfrentei.

Chegar a uma escola nova e conquistar os colegas todos os anos, procurando fazer projetos interdisciplinares para que os alunos vejam que o professor de EMRC é capaz de falar de temas diferentes em outras circunstâncias, é uma riqueza grande para os jovens e para a disciplina.

 

AE – Alguns alunos ficam surpreendidos quando sabem que podem reprovar?

MB – Constantemente. Ao longo dos anos já dei negativas e alguns questionam o que fizeram para ter essa nota. E eu respondo: «Pergunta antes o que é que não fizeste». Nos períodos seguintes melhoram. É o que chamo de prevenção. Quando vejo os alunos a resvalarem, fundamento o motivo da nota negativa e eles percebem. Mas o primeiro impacto é a surpresa.

Os critérios de avaliação são também fator surpreendente. Os testes valem 30%. O restante prende-se com a participação na aula, a maneira de estar com os colegas e com o professor, o caderno. Significa que ter uma participação com qualidade, ser apoio para os colegas e procurar ajudar é fator de avaliação.

Não adianta estudar muito para um teste e tirar boa classificação se depois têm negativa por não participarem na aula. Se se é rigoroso na preparação e na lecionação espera-se uma correspondência. Se ela não acontecer, explica-se a situação ao aluno e ele entende.

 

AE – Que histórias felizes guarda nestes anos a lecionar EMRC?

MB – Muitas histórias, positivas e boas. Na primeira vez que lecionei, com 21 anos, havia um aluno que dava muitos problemas e estava para ser expulso. O diretor da escola pediu-me para falar com ele, com o objetivo de tentar obter mudanças. Conversei com ele a sós e houve logo compatibilidade entre nós. Respeitava-me, gostava de mim e das minhas aulas. Com esforço, melhorou muito. No termo do segundo período não era o mesmo e no final passou de ano. Foi um caso de sucesso. E se temos um, vale a pena.

Há alunos que nos consideram um ponto de apoio nas aulas e contam connosco. Saber que confiam é muito importante. É muito importante para mim ter a certeza que a confiança é bem canalizada e saber que gostam da disciplina e questionam as coisas.

 

AE – Este ano a semana de Educação Cristã vai destacar a importância da família. Qual a sua importância para as aulas de EMRC, não só no momento das inscrições, mas também ao longo do ano?

MB – A família tem um papel decisivo, não só na escola pública mas principalmente nela. Muitos pais interrogam-se: se o filho participa na catequese ou nos escuteiros, por que há de ir às aulas de EMRC?

Alguns alunos perguntam por que é que não rezamos na aula. «E era para rezar?», respondo eu. «Pois, eu pensava que isto era mais ou menos como a catequese», dizem eles. Catequese é uma coisa e EMRC é outra.

A família é fundamental. Ouvi pais dizerem que o filho não quis inscrever-se e eles condescenderam.

Em determinadas alturas os pais têm uma missão indispensável na formação dos jovens e não se podem demitir disso, mesmo sendo difícil. Nota-se nas aulas quando os alunos têm famílias sólidas e firmes; são muito mais felizes e têm um papel mais positivo dentro da sala do que outros com famílias desfeitas e sem ponto de apoio. 

A família sempre foi a base nuclear. Ter alguém com quem os jovens podem contar em casa, que lhes dê regras firmes com muito amor à mistura, é importante para o seu progresso na sala de aula. Alguns têm muito potencial mas não são confirmados em casa, onde os pais estão cheios de trabalho. Um aluno acolhido, com ponto de apoio na família e que sente que o seu trabalho tem eco positivo, é meio caminho andado para ter uma vida mais feliz e estável.

 

AE – Como avalia os manuais dos alunos?

MB – Não conheço os do primeiro ciclo, que nunca lecionei. Aqueles com que trabalho são, neste momento, manuais com qualidade. O problema é que algumas matérias decisivas são complicadas de abordar noutras disciplinas, e mais ainda em EMRC.

No 8.º ano, por exemplo, refere-se muito a história da Igreja. Eu falo de cristianismo primitivo, mas o que eu digo pressupõe que os alunos saibam alguma coisa sobre o Império Romano; caso contrário tenho de explicar tudo de raiz.

A esses alunos eu tenho quase de fazer o pino para conseguir dar uma aula que entendam, gostem e sintam minimamente que tem a ver com eles. O problema não está nos manuais mas em eles gostarem da disciplina de História e de aprenderem alguma coisa.

Os livros do Secundário incluem assuntos interessantes e importantes mas têm de ser completados com outros materiais – filmes, documentários, textos, fichas de trabalho e outros meios.

 

AE – Que importância têm as indicações dadas pelas dioceses aos professores?

MB – O professor de EMRC tem o mandato do bispo para dar aulas. E na paróquia o prior tem de o conhecer e atestar que está em condições de lecionar, pelas qualidades técnicas e sobretudo cristãs que demonstra. A imagem e o testemunho são decisivos.

A relação com os alunos e os outros professores tem de visar a integração, não a confrontação e reclamação. É verdade que os horários são maus e as aulas são espalhadas ao longo do dia. Mas o que ajuda a construir uma escola sólida é a relação com professores, alunos e a direção, num todo integrador da missão do professor, que é levar Jesus Cristo à escola.

Deve-se cumprir este propósito não com a piedade popular mas apoiado na teologia. Se não for assim pode ser-se muito bom tecnicamente mas não se é levado a sério.

Os párocos têm aqui um papel muito importante porque os secretariados do ensino religioso das dioceses confiam na sua informação, que confirma as qualidades, o compromisso e o testemunho do professor.

 

AE – Um professor de EMRC tem de ser criativo nas aulas?

MB – Muito criativo. Esse é um dos meus defeitos, que sou demasiado técnico. Tenho de falar das coisas mas de maneira a que os alunos não fiquem a dormir após os primeiros 10 minutos.

Há colegas brilhantes que transformam uma aula, com jogos e debates, e conseguem ensinar conteúdos iguais aos que eu daria mas de maneira muito mais apelativa. É preciso integrar o aspeto lúdico para cativar os estudantes, especialmente em pontos difíceis de abordar. O Secretariado Diocesano de Ensino Religioso podia apoiar mais a formação dos professores neste aspeto.

RJM/LS

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