Educar para a paz

Ruben de Freitas Cabral – Instituto Inter-Universitário de Macau Educar para a paz Há cerca de vinte anos fui convidado para falar sobre este mesmo tema a um grupo de jovens, Americanos e Japoneses, estes oriundos das cidades de Hiroshima e de Nagasaki. De súbito, senti-me pouco à vontade. Que dizer? Se bem que a paz não fosse um dado adquirido por alturas da minha adolescência (Hungria, guerras coloniais, Argélia, Vietname, Palestina, América do Sul, e um sem número de outras violências perpetradas por Estados e por situações políticas extremadas), parecia-me não haver dúvidas sobre o que devia ser a paz. Hiroshima e Nagasaki, todavia, permaneciam como símbolos, nessa altura relativamente recentes, de algo que desafiava a imaginação humana. E eram reais. Que dizer a jovens cujos avós, directos ou não, haviam por um lado lançado a Bomba, e, por outro, haviam sofrido as consequências desse acto, na sequência duma política também de grande violência? Um dia, seguia eu no carro, quando na rádio surge a entrevista feita a um líder da comunidade negra norte-americana. Falavam exactamente de paz. As palavras desse homem, todavia, chocaram-me. Para ele a paz não era uma prioridade. A vida humana negra era barata e, portanto, um convite à violência, institucionalizada ou não. Para ele a prioridade era a Justiça. Não era nada que não tivesse já ouvido. De Fanon a Freire, esse tinha sido um dos fundamentos ideológicos dos movimentos de libertação colonialista, ou das lutas pelos direitos civis e económicos de milhões de pessoas. Uma coisa era, no entanto, ter lido essa postura política em circunstâncias de conforto descontextualizado, outra era ouvi-la naquele momento. De repente, isso de paz não era necessariamente tão óbvio, como também nada evidente era essa outra prioridade, a que já se chamava educação para a paz. Lembrei-me, também, que quando estudante na Alemanha, havia presenciado as famosas marchas para a paz lideradas por esse ícone venerável que era, à altura, Bertrand Russell. Lembrei-me também de discussões acaloradas que duravam noites inteiras e em que se discutia se o nosso papel devia ser o de pacifistas, ou o de pacificadores. Lembrei-me especialmente duma que tivera com o primeiro hippie, que havia conhecido pessoalmente, e que defendera sem hesitações a posição dum pacifismo extremado. O pano de fundo era, naturalmente, o duma Alemanha que, nos começos dos anos sessenta, ainda era um acampamento de armas nucleares dum lado e doutro do checkpoint Charlie. Hoje, passados que são cerca de vinte anos, a situação parece não ter mudado. Os Hitlers, os Pol Pots, os Idi Amins do último meio século, deram lugar aos Saddam Hussein, e a tantos outros senhores do ódio, da opressão e da guerra que ensombram os nossos dias. Talvez seja algo com que tenhamos de viver. Qual, no entanto, deve ser a nossa posição ética? Que é isso de paz? A mera ausência de guerra? O conformismo para com situações desumanizantes? E não falamos nós tanto de solidariedade? Será que teremos de optar? Será que poderemos não ter de optar pela situação dos palestinianos? Ou pela dos judeus de Auschwitz e Dachau? Ou por tantas outras situações? Será que teremos de acudir a todas? Será que poderemos justificar a nossa não-acção pela enormidade da tarefa? Confrontados com a guerra no Iraque, com o 11 de Setembro, com os dilemas de tantos Afeganistões; com guerras toleráveis porque juridicamente funda-mentáveis; por outras que o são por outras lógicas; com as guerras contra o terrorismo, contra a droga, contra a escravatura que subsiste ainda em tantas formas, que fazer? Por que optar? Será que teremos de tolerar a violência dos senhores da droga, da imigração clandestina, mesmo ao lado das nossas casas? Será que deveremos deixar os nossos filhos entregues à rapacidade dessa gente? Que fazer da assustadora violência doméstica? Dos crimes contra as crianças? Interrogo-me hoje como me interroguei há vinte anos. Que dizer aos jovens de hoje? Que educação para a paz? O próprio conceito não é nada fácil. Será que a educação para a paz, é a mera educação contra a violência? Ou a mera promoção de atitudes mentais baseadas na cooperação, no respeito, na compreensão? Não me parece, pelo menos à primeira vista, que qualquer delas, ou em conjunto, nos possam ajudar muito numa tomada de posição face ao lado hediondo da vida humana. É fácil decidirmo-nos emocionalmente por uma ou outra posição quando o nosso conhecimento dum determinado contexto de violência se resume ao imediatismo de imagens de crianças e mulheres feridas no ecrã frio duma televisão. Mais difícil é a tomada de posição quando confrontados com a violência à nossa porta. Que dizer da fome? Não será essa também uma forma de violência? Será que nos tentamos informar desses contextos de violência comodamente escondida? Será que somos capazes de desviar os nossos carros para os bairros de lata das nossas cidades? Será que queremos mesmo confrontar essa realidade? E quando confrontados, que fazer? Parece-me que, como a felicidade, a paz é mais um sucedâneo que um objectivo. Se assim é, a paz é a consequência natural de muitas coisas que nós fazemos nesse sentido. Tal e qual como a felicidade. Eu não sou feliz porque algures no tempo estabeleci um plano de cinco pontos para o conseguir. A nossa felicidade tem muito mais a ver com as escolhas que fazemos e com as opções que tomamos. É evidente que precisamos de educar os nossos filhos e filhas na multiculturalidade que define o nosso mundo, no respeito pela singularidade de cada pessoa, na compreensão da complexidade da vida. É imprescindível que as nossas filhas e filhos aprendam a tomar decisões éticas que os comprometam com a vida. Aprende-se fazendo. Parece-me mesmo que se queremos que os nossos filhos e as nossas filhas aprendam a viver a paz, e não somente em paz, teremos de criar nos nossos lares e nas nossas escolas os contextos da democracia, da justiça e da liberdade que lhes permitam esse direito primário da cidadania: o de se construírem como cidadãos conscientes, responsáveis, livres, corajosos, solidários, profundamente éticos. Infelizmente, esse espaço da cidadania raramente existe. Urge começar por aí. Ruben de Freitas Cabral Instituto Inter-Universitário de Macau Março de 2003

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