Dorsal atlântica – Dia mundial da paz: a força não faz a união

Padre José Júlio Rocha, Diocese de Angra

A expressão “ano novo, vida nova” conta cada vez com menos adeptos. Não comer doces, deixar de fumar, ir ao ginásio, ter mais tempo para a família são alguns dos mais amados propósitos da infinita parafernália de desejos para um ano novo. Os propósitos de ano novo são uma instituição. O seu fracasso também. A questão terá a ver com o conceito que temos de futuro. O que é o futuro? “Amanhã jejuo eu”. E, quando chegar o amanhã, continuarei a dizer “amanhã jejuo eu”, porque há sempre um amanhã. Até ao infinito. O problema é quando o futuro se faz presente, quando o amanhã se faz hoje. O futuro não existe. O futuro fabrica-se agora, não se espera. A procrastinação como estilo de vida leva-nos ao cenário de uma poltrona, uma televisão, umas pantufas e um telecomando para ver, passivamente, o mundo passar por nós.

No primeiro dia de cada ano, de há cinquenta e seis janeiros para cá, os Papas têm-nos oferecido mensagens de paz. No seu conjunto, contêm uma extraordinária riqueza doutrinal e pastoral, onde a esperança e a exigência da construção da paz têm a primazia. Este ano, o Papa Francisco encontrou um título estranho para a mensagem de ano novo: “Ninguém pode salvar-se sozinho. Juntos, recomecemos a partir da covid-19 para traçar sendas de paz.” Confesso que esperava a palavra “Ucrânia” no título ou, pelo menos, uma referência mais ou menos explícita à invasão russa e à guerra na Europa. Em vez disso, tão atual e urgente, o Papa refere-se, outra vez, à pandemia que parou o mundo. Mas tem toda a lógica. Todos recordamos que o primeiro país europeu a ser flagelado seriamente pelo famigerado coronavírus foi a Itália. Estávamos em Março de 2020 e tudo fechou, tudo parou. Na expetativa e no medo, começaram a aparecer cartazes nas varandas e nas janelas, com um esperançoso arco-íris e a frase que se tornou viral: “andrà tutto bene”. Em Portugal, quando a vaga chegou, traduzimos para “vai ficar tudo bem”. O mundo juntava-se à volta de um inimigo comum. O universo unia-se, respirava-se esperança, porque a esperança brilha forte nos lugares mais escuros e mais temíveis. O coro ruidoso dos “opinionmakers” ressaltava aos quatro ventos que essa pandemia tinha que trazer lições para um futuro melhor, mais humano e justo. Essa travagem a fundo trazia, como fator positivo, a exigência de, juntos, pensarmos um mundo melhor. A imagem de um papa solitário a caminhar, sob os pingos de chuva, pela deserta praça de São Pedro, era o cenário perfeito para o mundo inteiro mudar: estamos no mesmo barco, ou nos salvamos juntos ou nos perdemos juntos.

Piorou…

Os extremismos extremaram-se política e socialmente; a emergência ambiental agravou-se drasticamente; a guerra, essa realidade estúpida e abstrusa, que acompanha a humanidade como se lhe estivesse presa à pela, regressou em toda a sua magnífica estupidez e brutalidade; as consequências económicas e financeiras parecem formar a tempestade perfeita.

É por isso que o termo “juntos” é, mais uma vez na ética de Francisco, uma questão de vida ou de morte. A globalização de quase todas as coisas menos da fraternidade e do amor estabeleceu clivagens quase incuráveis no nosso planeta ferido. Já não temos saídas de emergência: ou nos juntamos para salvar isto tudo ou destruiremos o nosso mundo enquanto jogamos à bisca de três.

O jogo do patriarca das Rússias, Kirill II, tem sido um pouco pior do que execrável. Com uma fortuna pessoal avaliada entre 1,5 e 4 mil milhões de dólares, oligarca como os outros, o patriarca escandalizou-se com a possibilidade de uma parada gay em Kiev e preferiu aderir à insanidade de Putin, justificando uma guerra infame, com a morte de milhares de inocentes e um país destruído, à invasão dos contravalores corrompidos do Ocidente.

Diz o papa: “Esta guerra, juntamente com todos os outros conflitos espalhados pelo globo, representa uma derrota não apenas para as partes diretamente envolvidas mas também para a humanidade inteira. E enquanto para a Covid-19 se encontrou uma vacina, para a guerra ainda não se encontraram soluções adequadas.”

2023, como quase todos os anos, não vai ser fácil. Há demasiadas guerras em curso, demasiadas guerras na forja. A nossa incapacidade para trabalharmos juntos pela paz é perturbante.

“Juntos” é a palavra que ainda não sabemos declinar. É por isso que este é um tempo de esperança.

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Agência ECCLESIA

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