Padre Miguel Neto, Diocese do Algarve
Estamos a viver um divórcio permanente.
Primeiramente, como sociedade, nós somos cada vez menos, ou seja, há menos população e estamos cada vez mais sozinhos. E tal não acontece, apenas, porque temos cada vez mais separações, apesar de, pela primeira vez, haver mais pessoas com o estado civil “divorciado”, do que com o estado civil “viúvo”, dizem dados dos últimos Censos, realizados em 2021. Mas porque as famílias estão mais pequenas e os dados da natalidade indicarem que seremos ainda menos, no futuro.
Em 2021, a dimensão média dos agregados domésticos privados era de 2,5 pessoas por lar, sendo que um terço destes núcleos familiares era composto por apenas dois elementos. A média em 2011 era de 2,6 pessoas. Por sua vez, os agregados de uma pessoa (unipessoais) representam 24,8%, tendo o seu número aumentado 18,6% na última década.
Em contrapartida, as famílias numerosas têm perdido peso no país. Em 2021, famílias com quatro pessoas representam 14,7% da população e as de cinco, apenas 5,6%, quando, em 2011, significavam 16,6% e 6,5%, respetivamente.
Somos 10 344 802 habitantes em Portugal (menos 2,1 % que há dez anos) e continuamos a ter uma população maioritariamente solteira (43,4%), número que, até, aumentou ligeiramente. Os casados (41,1 %) estão a perder terreno para os divorciados, estes últimos com mais 2% que em 2011, totalizando 8 %.
Ou seja, podemos não estar solitários, mas claramente vivemos sozinhos. Sim, porque a solidão não implica que não habite com uma família, ou um grupo heterogéneo de pessoas, da mesma forma que viver sozinho não implica que estejamos em solidão. E as implicações maiores que estes dados têm na forma como vivemos, como nos relacionamos e pertencemos a comunidades, tem mesmo a ver com esta dicotomia solidão/sozinho fisicamente. Longe, vai o tempo em que ser ermita, era fisicamente estar mais perto de Deus.
Viver sozinho pode ter a implicação de se ter relações descartáveis, pouco duráveis temporalmente, embora muito intensas. Aliás, hoje a intensidade é muito mais valiosa do que a durabilidade. E não é só nos eletrodomésticos, ou outros objetos, mas, sobretudo, nas relações. Arriscava, mesmo, a dizer, que já não se criam relações duráveis, nem pensadas para tal e, por isso, vivemos permanentemente “divorciados” de tudo e todos.
Engana-se, quem esteja a pensar que vou somente falar da realidade familiar. A família é apenas uma das realidades nas quais encontramos esta questão mais visível. Mas há outras, mais profundas e complexas, em que se vê esta forma atual de viver e que vão perdurar pelo futuro. Em primeiro lugar, há imensas franjas da sociedade que têm uma capacidade de relacionamento forte somente com quem pensa de forma igual, ou semelhante. Não há gosto, tempo e espaço para o confronto com o contraditório. Só tem valor quem pensa como nós e quem vai ao encontro das nossas opiniões e gostos. E não é uma questão geracional. É um modo de vida que reúne várias pessoas de idades, proveniência social, estatuto económico, formação académica/profissional distintas, em torno de um grupo, para quem um determinado pensamento reinante é único e inquestionável.
Posso concretizar isso com os imensos grupos religiosos cristãos católicos, físicos ou digitais, que só se reúnem à volta daqueles que partilham do seu olhar e convicções, defendem uma vivencia cristã particular, sejam eles tradicionalistas, conservadores, vanguardistas, ou progressistas. Nesses grupos fechados não há espaço para aquele que pensa de outra forma e, quando há vozes dissonantes, ou são excluídas, ou essas vozes não se sentem, elas mesmas identificadas com essa linha de pensamento e de partilha da Fé, acabando por sair, criando outros grupos, que se alicerçam noutra ideia. Esquecemo-nos, tantas vezes, que os discípulos de Cristo discordavam entre si, mas permaneceram, antes e depois da ressurreição, em volta do único Cristo. Discutindo, mas nunca se expulsado, desligando, ou bloqueando.
Por outro lado, as relações laborais também estão cada vez mais precárias e temporais. Sinto que há menos fidelidade, assim como menos valor, não só quantitativo, mas qualitativo, no trabalho realizado. Por fim, a família permanece junta, porque tantas vezes não existe possibilidade financeira para o divórcio, aumentando a ‘solidão acompanhada’. «O advogado especializado em divórcio Ricardo Candeias ouve cada vez mais a menção a constrangimentos financeiros para a realização de divórcios, ao ponto de os considerar, neste momento, quase “um luxo”. Do que observa, o advogado diz haver um “empobrecimento dos casais”. Muitos não chegam a conseguir separar-se, aumentando os ex-casais que permanecem a viver juntos, “em quartos separados e com vidas opostas”, por impedimentos como a taxa de esforço calculada pelos bancos ultrapassar o máximo que permitiria a um e a outro elemento do casal ficar com o empréstimo sozinho», relatava-se num artigo do Expresso, das jornalistas Joana Ascensão e Sofia Miguel Rosa[1]. Ou podemos também analisar como provável «que os números oficiais de divórcio não expressem a efetiva vontade dos casais, situação que explica que os pedidos que lhe chegam ao escritório de advogados procuram “no fundo, explicar os direitos, os deveres, o que é que pode acontecer, o que é que não pode acontecer, a demora, a situação final das pessoas no caso de dar esse passo” e, acrescenta que se há dez anos o maior problema dos casais eram os filhos, “a decisão final, hoje em dia, está muito dependente da parte financeira das pessoas”», dizia a CNN, num artigo de Patrícia Pires[2].
Perante este divórcio coletivo entre tudo e todos, que igualmente tem repercussões na vida publica e politica, onde há imensa dificuldade em compreender as medidas de quem governa, na minha perspetiva há dois caminhos a tomar: ou lutar contra a evidencia de que a realidade é bastante diferente do que queremos e passamos, permanecendo anacronicamente na vida atual; ou tentamos compreender o Evangelho à luz da atualidade, como disse o Papa Francisco, no passado dia 22 de dezembro, à Cúria Romana: «”Não é o Evangelho que muda, somos nós que começamos a compreendê-lo melhor” [S. João XXIII]”. A conversão, que o Concílio nos ofereceu, foi a tentativa de compreender melhor o Evangelho, torná-lo atual, vivo e operante neste momento histórico. E assim (…) também na nossa época nos sentimos (…) chamados à conversão. E este itinerário está longe de terminar. A reflexão atual sobre a sinodalidade da Igreja nasce, precisamente, da convicção de que o percurso de compreensão da mensagem de Cristo não tem fim e desafia-nos sem cessar. O contrário da conversão é o fixismo, ou seja, a sub-reptícia convicção de não precisar de qualquer nova compreensão do Evangelho. Trata-se do erro de querer cristalizar a mensagem de Jesus numa forma única e sempre válida; ao passo que a forma deve poder sempre mudar a fim de a substância permanecer sempre a mesma. A verdadeira heresia não consiste apenas em pregar outro Evangelho (…) mas também em deixar de o traduzir nas linguagens e formas contemporâneas»[3].
Eu vou tentar caminhar pela segunda via. Um Feliz ano de 2023.
[1] https://expresso.pt/sociedade/2022-12-20-Pela-primeira-vez-houve-mais-divórcios-de-casamentos-pelo-civil-do-que-pela-Igreja-que-tendem-a-tornar-se-residuais-d0c7a1d9
[2] https://cnnportugal.iol.pt/geral/nunca-tantas-pessoas-se-quiseram-divorciar/20241225/618a55aa0cf2648aa1633110
[3] https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2022/december/documents/20221222-curia-romana.html