Diversidade cultural e os novos direitos de cidadania

Nas últimas décadas, a globalização acelerou, de um modo sem precedentes, os fluxos de pessoas e a troca de bens, de ideias e de valores, tornando o mundo étnica e culturalmente muito diversificado. De acordo com os relatórios da OCDE no final do século XX mais de 20 milhões de estrangeiros viviam nos países da área económica europeia (OCDE, 2001.12), o que representa cerca de 5.3% da população total residente. Estas estimativas não incluem migrantes naturalizados nem tão pouco imigrantes clandestinos ou refugiados. Mais recentemente, o relatório da OIM de 2003, utilizando um critério de estimativa menos rígido, estima que o número total de migrantes a residir no continente europeu eleva-se a 56 milhões, ou seja, 7.7% da população total. No caso português, a emigração e a imigração constituem hoje em dia elementos estruturais da sociedade portuguesa. Presentemente, a população emigrante representa mais de 40% do total da população portuguesa residente no país. Quanto aos fluxos imigratórios, o número de estrangeiros a residir em Portugal eleva-se a 5% da população total, comparando com 2.8% em 2000. Contudo, o impacto destes fluxos não se pode medir somente através dos números. No último quartel do século XX, tem sido evidente a acentuação das desigualdades sociais e económicas e a emergência de novas formas de exclusão social associadas aos processos de desindustrialização e de reestruturação das economias capitalistas. Estas novas realidades têm acentuado a margi-nalização e a exclusão de muitos sectores da população, sobretudo os mais vulneráveis, nomeadamente os migrantes. A partir da década de setenta, a crise do “regime fordista” e a crise do Estado-Providência e das suas instituições sociais e políticas traduziram-se na redução das despesas públicas, privatização de serviços públicos, e no consequente enfraquecimento do papel social do Estado. Este processo tem sido acompanhado de profundas transformações das relações entre o Estado e os cidadãos, sustentadas por uma ideologia neo-liberal, que tendeu a valorizar o activismo económico desenfreado e o individualismo em detrimento do interesse público. Por outro lado, temos vindo, igualmente, a assistir à emergência de novas formas de mobili-zação por parte de grupos de cidadãos e de indivíduos que se constituem como novos protagonistas sociais, trazendo para o topo das agendas políticas as questões dos direitos humanos, das migrações, do género, da pobreza, da discriminação e da opressão. Estes movimentos sociais têm vindo a questionar a lógica liberal de atribuição de direitos, introduzindo novas interpretações de cidadania, que vão ao encontro do pluralismo social e cultural, que caracteriza as sociedades contemporâneas. Entre estes múltiplos e diversificados grupos e organizações, as populações migrantes através das suas associações têm desempenhado um papel fundamental no alargamento de direitos de cidadania. Para além das reivindicações cen-tradas em torno da atribuição de mais direitos cívicos, sociais e políticos aos migrantes, a luta pela atribuição de direitos de cidadania independentemente da nacionalidade dos indivíduos tem suscitado um intenso debate na sociedade civil assim como no campo político europeu. Um outro aspecto não menos importante, e que está directamente relacionado com o anterior, é a reivindicação do reconhecimento de identidades culturais como um direito fundamental para o progresso das liberdades humanas e da democracia. O respeito pela diferença e pela liberdade cultural tem sido objecto de grande controvérsia, por exemplo a educação bilingue ou o uso do véu na França são questões muito problemáticas e que têm gerado inúmeras tensões sociais e políticas. O reconhecimento da identidade cultural e da diversidade ganhou uma grande centralidade na agenda das organizações migrantes em todo o mundo assim como no nas esferas política e académica. Tanto assim que o Relatório do Desenvolvimento Humano de 2004, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento foi inteiramente dedicado à liberdade cultural e à sua expansão e legi-timação num mundo globalizado. Segundo o Relatório a “liberdade cultural é uma parte vital do desenvolvimento humano” e, como tal, os Estados deverão promover não só “a tolerância e o entendimento cultural, mas também a aceitação de práticas religiosas, de vestuário, e do estatuto de dupla cidadania”. A ideia central é de que as pessoas têm múltiplas identidades que são complementares e que a “identidade não é um jogo de soma zero”. Neste sentido, o Estado não tem que escolher entre a coesão social e o reconhecimento das diferenças culturais, de facto, estas duas dimensões podem e devem co-existir. O Relatório considera ainda fundamental a implementação de políticas multiculturais que visam a incorporação de migrantes, reconhecendo o valor da diversidade como um direito humano. Isto não implica a ausência de um “compromisso social” relativamente a valores considerados nucleares, os quais não devem ser objecto de negociação, designadamente os direitos humanos, o Estado de Direito, a igualdade entre os sexos, a diversidade e a tolerância. Esta questão é particularmente importante no que respeita às comunidades migrantes, pois traz para o centro do debate os modelos de regulação social do Estado e as políticas de migração, sobretudo quando o novo paradigma da cidadania europeia constitui, presentemente, uma das principais prioridades da União. Contudo, este novo projecto de cidadania europeia, não deixa de ser contraditório. Por um lado pretende-se forjar um novo idioma assente nos princípios da liberdade, da justiça e na promoção da cultura europeia e da diversidade. Por outro lado, vincular a cidadania europeia à nacionalidade implica, necessariamente, a exclusão de milhões de imigrantes que residem na União, muitos deles já nascidos nos Estados-membros, não lhes reconhecendo uma grande parte dos direitos que configuram a cidadania. Proporia, assim, três questões que, pela sua importância, poderiam vir a ser objecto de reflexão e de discussão por parte dos participantes neste Encontro: Será que o que se prometeu sob o nome da Europa não implica uma Europa de todos os cidadãos? Não será que a ideia de democracia que a Europa defende obriga não apenas a acolher o estrangeiro, mas também a reconhecer a sua alteridade? Que tipo de direitos de cidadania e de políticas multiculturais poderão assegurar o aprofundamento da democracia e a expansão das liberdades culturais e religiosas nas sociedades contemporâneas de hoje? Ana Paula Beja Horta Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais (CEMRI) Universidade Aberta

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