Discurso de D Manuel Clemente na Entrega do Prémio Padre Manuel Antunes 2010

1. As razões essenciais para a atribuição do Prémio Padre Manuel Antunes 2010 à Diocese de Beja já são conhecidas e figuram na acta do respectivo júri. No entanto –  e exactamente por serem essenciais – permitem-me algum sublinhado neste momento:

Quando esteve entre nós, no passado Maio, o Santo Padre dirigiu-se expressamente ao mundo da cultura, dizendo o seguinte, entre o muito mais a reter: “Para uma sociedade composta na sua maioria por católicos e cuja cultura foi profundamente marcada pelo Cristianismo, é dramático tentar encontrar a verdade sem ser em Jesus Cristo. […] A convivência da Igreja, na sua adesão firme ao carácter perene da verdade, com o respeito por outras ‘verdades’ ou com a verdade dos outros é uma aprendizagem que a própria Igreja está a fazer. Nesse respeito dialogante, podem abrir-se novas portas para a comunicação da verdade”.

Fixemo-nos neste ponto: Numa sociedade como a nossa, tão cristãmente (de)marcada, “é dramático tentar encontrar a verdade sem ser em Jesus Cristo”.

Assim o sentimos, de facto, como outros o podem ressentir. Ainda há pouco faleceu um importante vulto das letras portuguesas, para quem uma certa ideia de Cristo foi problemática e quase lancinante. Mas assim aconteceu antes com vários outros e certamente continuará a acontecer.

Não é só por conservar no seu escudo as cinco quinas interpretadas como cinco chagas, ou por se ter encontrado fora de si nas velas da cruz de Cristo, que Portugal tem nesse motivo a sua cultura mais argamassada e profunda, pronta a vir surpreendentemente ao de cima, como na última visita papal. Nem é preciso ser muito perspicaz para deparar com alusões cristãs nas mais diversas ocasiões e vicissitudes da vida pessoal ou colectiva, mesmo quando se presumem totalmente laicas e profanas.

As palavras disponíveis estão cristãmente referenciadas, da salvação à redenção, do sacrifício à mensagem, do pródigo ao samaritano, da terra ao céu. E os símbolos disponíveis dificilmente se esvaziam do preenchimento litúrgico que tiveram ou continuam a ter, na linha da encarnação do verbo, no lance para a eternização da circunstância: palavras ditas e cantadas, silêncio e absorção do escutado, presença do sinal causador daquela “comunhão” de amigos – do retrato de quem se lembra aos restos mortais de quem partiu -, esperança alimentada em tudo isto e apesar de tudo…

Em Portugal, qual semente desfeita na terra, o cristianismo – e especialmente o cristianismo católico, tão “sacramental” -, é inevitavelmente cultural, podendo por isso mesmo ser “dramático”, na relação que cada um tenha com ele e com as instituições que mais expressamente o assinalem, como dramáticas são todas as coisas inevitáveis. Felizmente dramático, digo eu, pois isso significa algo de questionador e vivo.

 

2. Mas retomemos outro ponto do discurso papal: “A convivência da Igreja […] com a verdade dos outros é uma aprendizagem que a própria Igreja está a fazer. Nesse respeito dialogante, podem abrir-se novas portas para a comunicação da verdade”.

A verdade evangélica – outro modo dizer tudo quanto em Jesus Cristo nos interpela – transporta a Igreja, ainda mais do que é transportada por ela. E, como acontecia com o primeiro grupo de Jesus com os discípulos, da Galileia a Jerusalém, é uma verdade “ambulante”, que se desdobra e precisa no que encontra pelo caminho e naqueles – por vezes tão outros ou nem tanto – com que depara e se tornam motivo de actuação, descoberta e parábola.

Ora, o que começou há dois mil anos é o nosso caminho actual, quer na verdade pascal da presença de Cristo, quer no progresso histórico em que a humanidade – também dramaticamente – se evidencia. De facto, coexistem as duas afirmações do último versículo de Mateus: “Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos” (Mt 28, 20). Uma presença permanente e um destino projectado.

Viver no Espírito de Cristo, significa prosseguir em diálogo, estrada fora. A Igreja comunica o que aprendeu e vai aprendendo, experimentou e vai experimentando, na comunhão com Cristo vivo. Mas sabe que, partindo da referência iniludível ao que Cristo disse e fez há dois mil anos, a sua relação actual com Cristo o vislumbra em qualquer tempo e circunstância, nessa “Galileia” em que constantemente nos desafia e espera: “Afastando-se rapidamente do sepulcro, cheias de temor e de grande alegria, as mulheres correram a dar a notícia aos discípulos. Jesus saiu ao seu encontro e disse-lhes: ‘Salvé!’ Elas aproximaram-se, estreitaram-lhe os pés e prostraram-se diante dele. Jesus disse-lhes: ‘Não temais. Ide anunciar aos meus irmãos que partam para a Galileia. Lá me verão” (Mt 28, 8-10).

Assim mesmo se converte o diálogo cultural entre a Igreja e o Mundo – transformado este numa “Galileia dos Gentios”, tão obrigatória como reveladora – na primeira instância duma “pastoral da cultural” que se queira tal.

 

3. Também por isso se atribuiu o Prémio Padre Manuel Antunes 2010 à Diocese de Beja. Nas últimas décadas, a Igreja de Beja tem protagonizado um exemplaríssimo percurso de diálogo cultural.

Sob a égide e com o estímulo dos seus Bispos – D. Manuel Falcão e D. António Vitalino – ouviu,  recolheu e trabalhou musicalmente as suas tradições orais e melódicas (Padres António Marvão, António Aparício, António Cartageno…), prosseguindo com a salvaguarda e a valorização do seu património edificado, plástico e pictórico (Doutor José António Falcão e os seus colaboradores), além de sucessivas iniciativas e encomendas da exposição e composição.

Com tudo isto realizou e realiza do modo mais estimulante e certeiro aquele desiderato evangélico e papal. Como não deixa de ser também evangélico o facto de tudo suceder na Diocese que menos recursos teria à partida… Não lhe faltou nem falta o essencial: inteligência, sensibilidade e vontade.

Esta a razão dos nossos sinceros parabéns e da nossa responsabilidade acrescida. – Parabéns à Diocese de Beja!

Manuel Clemente, Presidente da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais

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