Padre Rui Pedro
1. A maioria das pessoas que continua a decidir emigrar, incluindo mesmo aquelas que o fazem de modo forçado por razões de sobrevivência, de exílio ou fuga, têm no horizonte do seu projeto a meta de uma vida melhor, mais digna e segura.
A nossa condição migrante de povo que, no seu DNA, tem a mobilidade como uma das mais visíveis características estruturais da identidade explica quanta heroicidade, aventura e força de ânimo tem havido na alma de tantos portugueses. Hoje como ontem, eles continuam a não encontrar no nosso país e suas políticas, as condições desejadas para uma vida feliz, desafogada, um trabalho suficientemente remunerado e uma estabilidade económica mais aderente aos projetos familiares e à formação profissional adquirida.
Nesta procura de uma vida melhor, todos nós conhecemos emigrantes portugueses, alguns das nossas próprias famílias e, nas últimas duas décadas, também já alguns imigrantes a viver em Portugal, que conseguiram ter uma trajetória de sucesso no próprio emigrar apresentando sinais de plena integração. Neste caso, a migração foi, sem dúvida, uma bênção para si próprios, suas famílias e projetos de vida.
Contudo, muito desse sucesso de hoje, para quem não sabe, e na maioria dos casos, é fruto de grandes dificuldades pessoais, discriminações sociais, incertezas familiares, injustiças laborais, riscos culturais e fracassos a vários níveis. Estes eventos constituem o “segredo” que encerra a aventura da emigração real. Tal como o imigrante brasileiro em Portugal nunca irá dizer aos seus familiares lá longe que as coisas não vão bem por cá, também de muitos dos nossos emigrantes portugueses desconhecemos em absoluto os traços de exclusão e situações de sofrimento vividas lá por fora. Na verdade, nas férias nunca há tempo para falar disso pois há que ser positivos e mostrar que a experiência migratória valeu e vale a pena e todo o processo atingiu seu objetivo.
2. A verdade é que, cada vez que entramos mais neste universo complexo da mobilidade humana – portuguesa, lusófona, europeia e mundial – vemos que a migração, em geral, não obstante os tantos progressos a nível de filosofias e políticas migratórias, continua associada a situações de grande vulnerabilidade de vida e exclusão social e económica. Por esse facto, faz todo o sentido que a Igreja e as religiões em geral, se interessem pelo bem-estar das pessoas em movimento e continuem a criar estruturas, itinerários e modelos de acompanhamento para defesa dos direitos humanos, culturais e religiosos.
Seguem alguns casos e situações vividas por tantos voluntários cristãos que, pelo mundo, nas várias organizações cívicas, congregações missionárias e associações de imigrantes trabalham em prol da unidade da “Família humana”, como recomenda Bento XVI na sua Mensagem para o Dia do Migrante e Refugiado.
Uma vulnerabilidade que assume tantos rostos, consoante o país, o género, a cultura e as histórias de vida e de viagens.
Uma pessoa, pelo facto de não viver na própria terra, e ser considerada estrangeira, è habitualmente alvo de discriminações mais ou menos consentidas pela comunidade local, que mesmo não se reconhecendo xenófoba, nem racista, dificulta através de preconceitos e “nacionalismos exacerbados” a integração social, a habitação condigna, o acesso à saúde e a igualdade de tratamento. Que o digam alguns emigrantes africanos na Europa e portugueses na França e Reino Unido.
Uma pessoa, pelo facto de não ter os documentos em ordem, por variadas razões administrativas, e ter necessidade, como toda a gente, de um trabalho para viver de forma autónoma e digna, não lhe resta que recorrer ao trabalho informal da economia submersa, sujeitando-se a condições precárias e incertezas salariais, mas alimentando assim a produtividade do país que lhe nega a residência. Pensemos nos emigrantes romenos e marroquinos em Itália e Espanha.
Uma pessoa que vivendo num país empobrecido, em transição política violenta, ou nas mãos da corrupção, encadeada pela riqueza da Europa Ocidental, se entrega a “passadores”, “traficantes” e “agências” para que, a troco de avultados pagamentos, a transportem até a terra prometida. Pelo caminho, ela e seus companheiros de viagem, são despojados dos seus parcos haveres, contraem outras dívidas e empréstimos, sofrem humilhações e muitos adoecem durante as longas e arriscadas travessias. Recordemos as travessias dos nossos portugueses dos anos sessenta rumo á França, as recentes viagens atribuladas dos imigrantes ucranianos e moldavos até Lisboa, e aquelas dos tunisinos e outros norte-africanos de hoje que morrem de esperança no mar mediterrâneo ou, mesmo sobrevivendo, são encarcerados de forma indigna na ilha de Malta.
Enfim, pensemos nas consequências da maior patologia da emigração que, ao longo da história da mobilidade sempre deu sinais da sua horrenda presença: o tráfico de pessoas para a exploração sexual e laboral. Quantas pessoas, homens e mulheres, menores, enganados por amigos e familiares – influenciados por redes criminosas! – são aliciados a deixar seu país para conseguir trabalhos melhor remunerados, mas perdem a própria dignidade humana em terras estrangeiras porque condenados a lugares de indignidade. Pensemos às mulheres oriundas da Nigéria e Brasil comercializadas na Europa.
3. A mobilidade humana, não obstante tudo, é normalmente veículo de progresso, oportunidades, emancipação e sucesso para muita gente. Porém, como o atestam os casos apresentados anteriormente, pode tornar-se, quando espontânea, não acompanhada, mal gerida e vivida na desinformação, um lugar de indignidade, de desumanização, de perda da identidade e da própria vida.
Diante das mudanças rápidas e complexas que caracterizam os movimentos migratórios hodiernos e as crescentes “resistências” políticas e ideológicas, sobretudo, na Europa onde assistimos a um retrocesso a nível das políticas migratórias, a Igreja deve continuar a dar o contributo que se propôs dar à sociedade por ocasião do I Encontro Mundial das Comunidades Portuguesas. Encontro realizado em 2005 e organizado pela Comissão Episcopal da Mobilidade humana, com o apoio da Obra Católica Portuguesa de Migrações. Nos Atos do Encontro foram apontadas duas prioridades para ação: a “reconceptualização” da mobilidade que atravessa o país, a nível da emigração e imigração, e a reestruturação dos modelos pastorais, com vista a acompanhar de forma mais adequada as “novas mobilidades” em curso, a mitigar o sofrimento dos migrantes mais isolados e a prever situações de futura vulnerabilidade que possam vir a desvirtuar as migrações como caminho para a felicidade, segurança, liberdade e procura de dignidade de vida.
Padre Rui Pedro, missionário scalabriniano