Octávio Carmo, Agência ECCLESIA
Olhos no ecrã, olha apenas o tempo suficiente para se assegurar de que o veículo que se aproxima a viu e vai travar, na passadeira. Passa em segurança, porque o condutor travou a tempo, e segue o seu caminho, sempre com o olhar no telemóvel. A cena não tem nada de invulgar, mas há um pormenor que ainda não lhe contei: o veículo era uma ambulância com a marcha de urgência sinalizada, através de sinais luminosos, dado que a situação no seu interior não deveria permitir o recurso à sirene.
Vi todo este episódio parado no semáforo, já depois de ter dado passagem à referida ambulância, numa das avenidas de Lisboa. Não resisto a partilhá-la como ponto de partida para esta reflexão: quanta indiferença há, afinal, na nossa diferença?
Em última instância, conto eu. E mais eu. Não há sequer tempo para deixar passar uma ambulância em que alguém se poderia estar a debater, entre a vida e a morte, para sobreviver. Nada pode esperar, porque eu sou demasiado importante. Afinal, não há outro como eu.
O nosso discurso sobre a fraternidade, os Direitos Humanos e a igualdade entre todos cai por terra, sucessivamente, aos mais pequenos testes: primeiro eu. A globalização da indiferença, de que tantas vezes tem falado o Papa Francisco, por exemplo, entranhou-se profundamente na digitalização da existência, onde o olhar foge cada vez mais para o virtual e cada vez menos para o que nos rodeia.
O Covid-19 não traz um pequeno teste, como deixar passar uma ambulância que se dirige a toda a velocidade para um hospital. É um teste muito maior, que questiona profundamente o nosso sentido de comunhão e de comunidade. A tentação da “diferença” é muito grande: ser especial, não fazer como os outros, exibir uma força física ou espiritual maior do que a multidão, porque afinal, eu sou único, não é?
Salve-se quem puder é, acima de tudo, “salvo-me como puder”. A exibição de pequenos e grandes poderes não é uma manifestação de diferença e superioridade. É a mostra da pequenez da indiferença de quem não consegue reconhecer no outro alguém igual a si. Resta a cada um saber de que lado quer ficar, nesta dor sem fim a que tantos irmãos e irmãs estão sujeitos.
O novo coronavírus é, afinal, o desafio – legalmente imposto e moralmente incontornável – de quebrar os hábitos rotineiros, renovando escolhas e a própria existência, cada qual com a quota de poder que lhe cabe. Para que possamos fazer diferente e, finalmente, nos unamos num projeto comum, a que ninguém seja indiferente.
Aos católico, convém lembrar que não há amor a Deus sem amor ao próximo e que ninguém se salva sozinho.