Dia da Terra: Questões ambientais na literatura portuguesa

Do medo da tosse na garganta provocada pelo fumo da fábrica à simples nostalgia do velho plátano que estava junto à escola

Cidade versus campo, medo pela extinção dos peixes, invocação dos lobos, grito contra o nuclear, aridez territorial e desertificação humana. Assim chegaram as questões ambientais à pena de muitos escritores portugueses. Alguns anteciparam-se às preocupações do futuro mas os ouvidos não saborearam a escrita profética. Outros sentiram saudades do verde. Medo da tosse na garganta provocada pelo fumo da fábrica ou a simples nostalgia do velho plátano que estava junto à escola.
Os escritores e poetas portugueses, desde Eça de Queiroz e Júlio Dinis até Ruy Belo anunciam sempre esse sentido estético de temor pela paisagem em transformação. Neste Ano Internacional dos Desertos e da Desertificação viajámos até ao interior destas obras suculentas e apologistas do “bom” ambiente.
No “Diário” – obra de Miguel Torga – o escritor assume, fiel e medularmente, essa condição, como autêntico “selo de origem, impresso no barro da carne”. Por isso, o “Diário” é o auto-retrato de Portugal. Como escreveu Jacinto Prado Coelho “Torga não é apenas a expressão de uma paisagem ou de uma alma colectiva: a sua obra é ele e a Natureza; ele e Portugal, um Portugal que o fez, mas que em parte ele inventou” (Miguel Torga, Poeta Ibérico).
Eis, segundo cremos, a chave-mestra, o fulcro desta obra fundamental da literatura portuguesa, que representa, no dizer de Carlos Reis, “notável contributo para o conhecimento da mundividência dum escritor incapaz de viver divorciado do que o cerca” (Homenagem a Miguel Torga). Ora, o que cerca o escritor, é Portugal, “um Portugal com oito séculos de existência e que não encontrou ainda a sua identidade nacional”(Diário XII). É essa identidade que Torga procura, e encontra, no apelo constante das suas (nossas) raízes profundas. A realidade de um povo “timbrada na carne e no espírito como uma tatuagem dignificadora” (Fogo Preso).
É por isso que Torga visita e revisita todos os recantos da Pátria, numa procura insofrida do núcleo essencial da matriz lusitana. “Vi Portugal sozinho, sem guias, sem interlocutores, a ouvir apenas nas fragas, nos matagais, nos restolhos, nas areias e nas calçadas o eco dos meus próprios passos” (Diário XI). Não houve aceno de monte ou de planície a que não respondesse. “Subi todas as serras e calcorreei todos os vales desta pátria” (Diário VIII).
Torga palmilhou o País, não por nacionalismo, como ele próprio reconhece, mas por uma “funda necessidade cultural”. “A realidade telúrica de um país descoberta pelos métodos de um almocreve”….. pois é “com o seu próprio corpo que o homem mede o berço e o caixão” (Diário V). Este escritor transmontano (nasceu em São Martinho de Anta, Sabrosa) reconhece qualquer lugar português por coisas aparentemente tão simples, como tactear a terra que pisa ou provar o tempero da carne de porco. A derme e a epiderme da mesma realidade, desvendada pelo sentido físico e metafísico, pois se a terra é a face visível, o tempero é “assinatura inconfundível que identifica a região e o habitante dela. A pimenta e o cravo das nossas andanças marítimas, e o vinho, o alho e o louro da nossa rotina telúrica, depois de complicadas alquimias, passaram de meros condimentos a puras essências de sabedoria” (Diário VII).
Sentido e nostálgico é o receio de Júlio Dinis. O autor de “Morgadinha dos Canaviais” assusta-se pelo perigo de ver a paisagem ser triturada pelo progresso. Nesta obra, ele comove-se diante do abate de árvores pela voz do Velho Vicente. Vê-las tombar é um suplício. Com coração sentimental, Júlio Dinis escreve: “exalte-se embora a rápida carreira da locomotiva, que atravessa, como meteoro, as povoações e os ermos; mas não seja isso motivo para condenar a compaixão pela violeta dos campos que as rodas deixaram esmagada à beira do carril”.
Eça de Queiroz – um observador sagaz – exalta os valores do mundo campestre e da natureza, primeiro em “Civilização”, o conto que dará origem a “A cidade e as Serras”, uma das obras mais conhecidas do escritor e mais óbvias neste contexto do Ano Internacional dos Desertos e da Desertificação. Em relação às cidades revela que os “prédios obstrutores de seis andares, a fumaça das chaminés, o rolar moroso e grosso do ónibus, a trama encarcerada da vida urbana… Mas que diferença, num cimo de monte, como Torges”.
Luís Filipe Santos – AE

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