Pe. Vítor Pereira, Diocese de Vila Real
Andam por aí muitas confusões à volta de Deus e das religiões. E o mais chocante e incompreensível é que são as próprias religiões a colaborar para a confusão, quando deveriam contribuir para a clarificar e purificar. Vou servir-me da atualidade, mas todas as religiões têm um baú de barbaridades e contradições, de que pouco ou nada se orgulham. Desde o início da guerra da Rússia à Ucrânia, a igreja ortodoxa russa tem sido uma fonte de perplexidades, nomeadamente pela voz do Patriarca de Moscovo, Kirill. Já se sabia que era um grande amigo de Putin, considerou, desde a sua aurora, o seu governo “uma bênção de Deus”, e elogiou e aprovou a guerra contra a Ucrânia. Algumas das suas últimas intervenções não podem deixar de escandalizar e confundir os crentes e os homens de boa vontade, como prometer aos militares russos a lavagem dos pecados pelo cumprimento do serviço militar na guerra, com a possível morte. Primeiro pergunta-se como é que uma religião cristã pode apoiar um regime ditador e oligarca como é o regime de Vladimir Putin. Depois pergunta-se como é que se pode obter qualquer graça ou indulgência de Deus, combatendo-se numa guerra em que a Rússia não foi atacada, uma guerra que é profundamente insustentável, injusta e imoral, levada a cabo ao arrepio de todos os acordos e tratados internacionais, que a Rússia assinou. Nenhum sacrifício da vida vale o que quer que seja numa guerra profundamente cruel e sem sentido. O que dizer quando se descobrem valas comuns onde estão enterrados, na sua maioria, velhos indefesos e enterradas mulheres e crianças que foram barbaramente torturadas e assassinadas? Quem fez isto ainda vai ter um perdão dos pecados?
É lamentável vermos uma religião cristã provocar tantos equívocos e gerar tantas contradições, que são um tenebroso contratestemunho, em profunda infidelidade ao Evangelho. É o que dá a religião viver colada ao poder, aliança que nunca dá bons resultados para os interesses de Deus e para a verdade do Evangelho. As Igrejas e as religiões devem estar acima e além de todo e qualquer poder, para não perderem a sua consciência crítica e a sua liberdade no anúncio e testemunho do Evangelho de Jesus Cristo. Quando religião e poder entram em núpcias, há uma grande probabilidade de uma confissão religiosa distorcer a sua mensagem e trair a sua missão.
Na Bíblia, todos conhecemos a célebre passagem do livro do Génesis, em que Abraão se dispôs a cumprir a ordem de Deus de sacrificar o seu próprio filho Isaac, matando-o num altar. A cena ainda hoje escandaliza, reveste-se de uma especial dramaticidade, gerou e gera muita acesa discussão à volta de Deus, como é que Deus se pode revestir de tamanha crueldade. Contudo, essa não é a questão, nem o tema. A mensagem é muito mais profunda. Na dita cena, no derradeiro instante do sacrifício, em que a sombra do cutelo já pendia sobre o filho amarrado, Deus manda suspender o sacrifício. É aqui que está a grande e luminar mensagem: não se pode matar ou sacrificar ninguém em nome de Deus ou de qualquer outro valor dito supremo. Abraão ia fazê-lo, obedecendo cegamente a Deus, o tal valor supremo, mas Deus não quer isso. Em nome de Deus, ninguém está autorizado a levantar a mão contra outro ser humano. Já chega de violência entre seres humanos por causa de Deus! Os dez mandamentos não querem dizer outra coisa, e Jesus aclarou isto mesmo de forma nova e límpida. Não há qualquer violência que se justifique entre pessoas humanas em nome de sistemas de valores, por muito superiores que possam ser. Costuma-se dizer que outros valores se levantam, mas não para matar, esmagar ou aniquilar o outro em nome de Deus. Jamais Deus exige o que quer que seja contra o ser humano. Isso não passa de pura idolatria e trampa ideológica para se manter o poder e atingir a concretização dos interesses humanos, como se tem visto nesta guerra da Ucrânia, com o patrocínio da bênção de um líder religioso para se defender, segundo dizem, uma certa luminosa e superior civilização cristã, a luz contra as trevas, a pureza contra a podridão e a devassidão, os “bons valores” contra a decadência.
Ainda assim, brilha o Papa Francisco ao não se cansar de pedir a paz. Quando um jornalista lhe pergunta, num podcast, o que gostaria de pedir como presente, no marcante aniversário que celebra à frente da Igreja Católica, o Papa responde: “A paz, precisamos de paz”.
Não há guerra nenhuma que se justifique e que seja inevitável. E confesso que senti sempre no ar a impressão de que não se fez tudo para evitar a guerra contra a Ucrânia e não se está a fazer tudo para a parar. Fora o Papa Francisco, e quando em vez António Guterres, no ocidente só se fala de armamento e cedência aos interesses da indústria belicista. É confrangedor não se ouvirem vozes firmes e tonitruantes na defesa da paz e a propor caminhos de paz.
Na criação do Dia Mundial da Paz, em 1967, O Papa Paulo VI afirmou: “a paz é possível, se for verdadeiramente querida; e se a paz é possível, ela é obrigatória”. A caminho da celebração de mais uma Páscoa, que nós católicos nos unamos mais à volta da paz e façamos por fazer chegar o apelo do Papa Francisco, que é um apelo da Páscoa, que se a paz é possível, então, “paz, precisamos de paz”.