Descobrir o caminho num percurso pessoal

O dia amanhece no pavilhão em Redondela. Com o grupo de peregrinos de Vila Nova de Famalicão, pernoitou também um casal de portugueses a caminho de Santiago de Compostela, mas com início do percurso em Fátima. A próxima etapa vai levar os peregrinos a Pontevedra, num percurso de 20 quilómetros. A cidade de Redondela apesar de não muito grande é bastante movimentada. Todo o percurso português em Espanha é acompanhado pela Ria de Vigo, por onde os peregrinos seguem “contornado a ria por norte e este”, segundo explicação do Pe. António Machado. O concelho de Redondela está marcado por cartazes e mesmo pinturas amarelas nas paredes que dizem “auto-via em Redondela, não obrigada” ou “não às variantes”. Mas o caminho seguido pelos peregrinos indica que se segue pelas ruas paralelas ao centro e assim se começa o dia. Ruas antigas, de antigas casas em pedra. Saindo da estrada principal a pouco e pouco se vai deixando a cidade para trás para se entrar num bosque. 81.775 para Santiago de Compostela, mostra a concha. A primeira etapa do caminho destina-se à ponte Sampaio, em Arcade, onde se dá a junção da ria de Vigo e do rio Vedungo. Mas antes de aí chegar, ainda há caminho pela frente. “Os restantes dias do caminho proporcionam um maior contacto com a natureza, trilhando caminhos entre o bosque”, explica o responsável pelo grupo aos estreantes. E as histórias pessoais vão-se cruzando por entre os trilhos do caminho. As conversas triviais dos primeiros dias dão lugar a estados de alma, a partilhas da experiência, mas onde a alegria e a boa disposição encontram lugar. É frequente ao longo dos trilhos ouvir sonoras gargalhadas de boa disposição entre todos os peregrinos. 81.233 entra-se no campo onde as vinhas e as espigas são uma constante. Nunca se caminha com a mesma pessoa ao lado. As passadas são diferentes e também as partilhas que se vão fazendo com as diferentes pessoas. Caminhar em grupo Agora quem se chega é a Helena Faria. Está no caminho pela primeira vez. Veio pela experiência diferente que poderia viver, “e porque muitos já me falaram do caminho”. Não se trata apenas do caminho em si, a Helena valoriza a experiência de grupo que se vive, a entre ajuda. A experiência do caminhar “apela à desinstalação e gera uma abertura para quem acredita num caminho a percorrer”. 79.807 e a conversa continua amena, mas com o terreno a subir. “A chegada a Santiago será o alcançar um objectivo, assim como acontece na nossa vida”, explica a Helena e “a chegada conjunta a Santiago tem de ser transposta para a vida em sociedade, quando temos objectivos que envolvem os outros”. Andar seis dias apenas por andar não proporciona crescimentos, “a experiência que se faz do caminho sim”, afirma a Helena que confidencia ainda “convidei Deus no início da caminhada para nos acompanhar”. Vai-se descendo o caminho de terra já marcado por tantos passos e o rio desenha-se à frente dos peregrinos, por entre os ramos das árvores. E seguindo caminho, agora quem se aproxima é Eduardo Vinhas, repetente na peregrinação. Na sua primeira experiência do caminho partilhou trilhos com um casal que durante a peregrinação celebrou aniversário de casamento. “Recordo essa história porque achei que era uma boa forma de celebrar o seu matrimónio”, explica. Quem sabe se com ele não acontecerá o mesmo, pois este ano partilha este caminho com a namorada, Helena Faria. “Esta experiência partilhada vai ser muito importante para nós, porque nos estamos a conhecer e a ajudar-nos no caminho”. A partilha entre os dois é uma constante. “Esta é uma partilha que nos vais acompanhar os dois e nos vai marcar”, assegura. O Eduardo acredita que o caminho pede disponibilidade física, mas sobretudo espiritual. “Uma pessoa pode até não se aperceber disso, mas ela acaba por surgir”. Durante o caminho pensa-se na vida, “nos desafios que nos surgem”, adianta. Como repetente, “este ano estou a valorizar muito a descoberta que estou a fazer de São Tiago”, explica motivado. O caminho “obriga quem o faz a parar”, e inevitavelmente “a vida muda”. Para Eduardo a oração é a dimensão a que também quer dar mais atenção. A companhia é uma constante no caminho. Mas o silêncio também encontra espaço. Silêncio para pensar na vida, olhar à volta, ouvir a natureza, ou não pensar em nada quando o cansaço se vai impondo, ou mesmo aproveitando esses momentos para rezar. Crise de vocações Quilómetro após quilómetro aparece a Ponte Sampaio, em Arcade, que se atravessa para chegar à praia fluvial. Ocasião para descansar as pernas e para dar um mergulho na ria que convida a um banho. O grupo de São Martinho do Vale opta por ficar junto à ria, almoçar naquele lugar e tem um início de tarde «tertuliana». A proposta é falar sobre as vocações onde a partilha dos dois sacerdotes que acompanham o grupo, o Pe. António Machado e o Pe. José Carlos Barrroso é essencial e genuína. “A pior crise de vocações que existe não é a sacerdotal, mas a matrimonial”, aponta o Pe. António Machado. Muita curiosidade e abertura culminam com um pedido: “descubram a vossa vocação para serem felizes. Essa é uma resposta que apenas vocês podem dar”, pede o Pe. José Carlos Barroso “e procurem-na no vosso íntimo”. O grupo deixa Arcade para trás e pelo meio das casas, quem lembram aldeias, seguem para a segunda etapa do dia. Passando a vila, sobe-se uma estreita e empedrada calçada. Chegamos a um caminho empedrado, em grandes partes formado por grandes lousas: são restos da antiga calçada romana que unia Braga a Astorga. Trilhos pela calçada romana Na segunda etapa do caminho tem uma subida mas a paisagem vale a pena: água corrente e muita vegetação. Mesmo de Verão há caminhos onde corre muita água. O sol queima, mas a boa disposição reina. Entra-se pela estrada principal para um desvio provisório do caminho, onde o grupo se cruza com os carros que passam. Volta-se a entrar nos campos onde as vinhas se perdem de vista e o verde inunda a respiração. A vegetação ajuda a atenuar o calor que se sente e a inclinação da calçada romana que pedra sobre pedra, se sobe. 72.358 dá um descanso às pernas e à subida. O percurso final é feito em estrada que leva o grupo para Pontevedra, onde o albergue aguarda à chegada, ou assim se pensa. Odisseia no fim do dia O albergue de Pontevedra fica no início da cidade. O movimento das ruas é uma constante. Aqui percebe-se que a cidade se organiza também em redor do caminho de Santiago. «Bar del Peregrino» ou «Hotel Virgen del Camiño» mostra o quanto a peregrinação norteia a cidade. O grupo sobe a calçada de acesso ao portão e logo um cartaz a vermelho indica “Albergue completo”. As 56 camas estão já ocupadas. Nada que já não estivesse previsto. A recepcionista dá indicação de algumas congregações que poderão abrir as portas aos peregrinos. Cansados de 20 quilómetros sob um sol quente os peregrinos põem-se a caminho de novo albergue. As instalações da paróquia estão fechadas, “só a partir das 19 horas”. Há que procurar alternativas. No albergue informaram também da presença dos Franciscanos na cidade. Dois ou três peregrinos acompanham os sacerdotes para pedir guarida. Mais um caminho para percorrer. Este pelo meio da cidade, na rua principal onde lojas inundam e chamam as muitas pessoas que ali se encontram ao final da tarde. Os espanhóis jantam tarde, e depois do trabalho reúnem-se para um aperitivo antes da refeição. Os portugueses são os primeiros a pedir a ementa. Pela rua principal se chega ao Convento dos Franciscanos que informa não ter capacidade de alojar os peregrinos. “Experimentem o Colégio do Sagrado Coração de Jesus, da responsabilidade dos Dehonianos”. Nova caminhada encetam os mandatários para arranjar guarida. Chegando ao local do colégio ilustrado no mapa da cidade, ninguém atende, está tudo fechado. “Talvez estejam de férias”, diz um grupo de mulheres que aproveita o fresco do fim de tarde para conversar. Nova caminhada para encontrar nova guarida e novamente “não temos alojamento”. De volta à paróquia, se consegue chegar à fala com o pároco, que relutante, abre as portas aos peregrinos, onde se estendem os sacos cama para mais uma noite dormida no chão. Com o desejo de banhos e descanso, sugerem que “sem espaços para duches, talvez no albergue, mostrando as credenciais carimbadas nos deixem tomar banho”, lembra alguém. Os albergues, como o infra estruturas gratuitas não podem ser cobrados. Pede-se sim aos peregrinos que deixem um donativo para ajudar às despesas. Não foi o caso. A proposta do recepcionista de turno no albergue, após recusa em permitir tomar banho pois “apenas podem usar as instalações os que aqui pernoitam”, é que os peregrinos paguem por esse serviço, “dois euros por cada um”. Mais descontraídos, mas também indignados, os peregrinos acreditam que “esta será uma história para contar”.

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