Descobrir a beleza e a alegria da fé

Homilia da entrada solene de D. António Marto na Diocese de Leiria-Fátima Foi com intensa emoção que cheguei à catedral e me ajoelhei, à entrada, para beijar as pedras deste templo. O templo é sinal da comunhão dos crentes unidos pela presença de Deus que mora no meio do Seu povo. A Ele, Deus santo, no Seu Amor trinitário, dou hoje glória e louvor no limiar desta catedral. Chegou, finalmente, o dia do meu encontro convosco. Desde que disse sim à nomeação do Santo Padre, vós entrastes no meu coração de pastor. Dele não sairão os muitos que até agora amei e guiei na fé, mas com eles – tende a certeza – entrais todos vós com pleno direito de filhos. É esta relação de amor simples e verdadeiro, leal e fiel, transparente e alegre, capaz de escuta, de diálogo e fortaleza na fé, que desejo estabelecer com todos e cada um de vós. Saudação Neste amor, saúdo afectuosamente toda a Igreja de Leiria-Fátima, a cada um e a cada uma de vós: o Rev.mo Vigário Geral – a quem agradeço a calorosa saudação, como gentil intérprete dos vossos filiais sentimentos –, o Il.mo Cabido, os estimados sacerdotes, as pessoas consagradas, os seminaristas, os muitos amigos que me acompanham, todos os fiéis, particularmente os doentes, os jovens e as crianças. A todos dirijo a saudação do apóstolo Paulo: “O Deus da esperança vos encha de toda a alegria e paz na fé, para que abundeis na esperança pela virtude do Espírito Santo” (Rom 15, 13). Muito obrigado por este caloroso acolhimento! Saúdo com muita estima o Senhor Núncio Apostólico e, na sua pessoa, o Santo Padre, a quem testemunho o meu afecto filial. Saúdo fraternalmente o senhor arcebispo de Braga, Presidente da Conferência episcopal, o meu caro predecessor, senhor D. Serafim, e os demais irmãos no episcopado, a quem agradeço o afecto colegial; e estendo esta saudação aos mui dignos representantes das outras Confissões cristãs, cuja presença me é particularmente grata. Saúdo por fim e agradeço às autoridades civis e militares que quiseram honrar este encontro com a sua presença e me manifestam um afecto que eu desejo retribuir de todo o coração, com a lealdade de uma colaboração verdadeira, franca e desejosa do bem comum. A fé perante uma viragem civilizacional Não é este o momento para vos propor metas e itinerários precisos de um programa pastoral. No espírito do diálogo de coração a coração, posso desde já dizer-vos que prosseguirei o programa que vós já traçastes com o belo lema “Testemunhar Cristo, fonte de esperança”. Desejo, contudo, oferecer-vos uma meditação sobre o horizonte do nosso ser cristãos hoje, na sociedade complexa em que nos é dado viver; e apresentar algumas prioridades que daí derivam. Faço-o a partir do texto do Evangelho que acabámos de escutar. A narração evangélica da tempestade acalmada fala de nós e do nosso tempo: interpela-nos e estimula-nos. S. Marcos sabia que os cristãos de Roma estavam em perigo, como uma barca no meio da tempestade. A barca é uma grande metáfora não só da condição humana, mas também da Igreja de todos os tempos que atravessa o mar tempestuoso da história, muitas vezes exposta à fúria dos ventos e das ondas. Ao sabor de forças externas e obscuras, a pequena barca mais se parece a uma casca de noz temerária, destinada a ser engolida. O caminho da fé dos discípulos e da Igreja não é uma marcha triunfal; está semeado de provações. As duas últimas décadas do séc. XX e os primeiros anos do séc. XXI desencadearam abalos sísmicos profundos, de ordem cultural e espiritual, na consciência humana. Evoco-os simplesmente: a queda do muro de Berlim e o surgir de uma nova Europa hoje em dores de parto para a sua configuração; a revolução informática com a globalização do conhecimento, do mercado e do consumo; a revolução biotecnológica com novas esperanças e novas ameaças que põem em causa o sujeito humano; a violência do terrorismo global que transferiu a guerra dos exércitos para as consciências, dos porta-aviões para os indivíduos, ameaçando alterar as relações de confiança entre as pessoas e os povos e levar a um confronto de civilizações; a cultura dominante da era do vazio de valores e verdades universais, que resvala para o agnosticismo e o relativismo. Quem não se apercebe que estamos perante uma nova paisagem cultural e religiosa, perante uma viragem epocal, uma mutação civilizacional? Vivemos uma época cheia de paradoxos, aos quais é preciso prestar atenção. Nunca houve tanto desejo de espiritualidade e interesse pela religião; por outro lado, há muito individualismo, consumismo e materialismo. Nunca houve tantos meios de comunicação e, contudo, as pessoas têm necessidade de falar, de se encontrar. A característica da nossa geração informática é que nós podemos estar virtualmente em comunicação com o mundo inteiro, mas diante do ecrã estamos sós. Nunca houve tanto conforto possível e todavia estamos confrontados com a pobreza, o desemprego, as depressões, os suicídios, os sem abrigo… Nunca se falou tanto de liberdade e cada vez mais se acumulam regras e leis na sociedade. Este é o novo contexto em que somos chamados a viver como cristãos. As convulsões da história assustam-nos, suscitam os nossos medos e o mal-estar, também em relação à fé. O recente fenómeno do Código da Vinci é um termómetro cultural que nos convida a reflectir sobre a religiosidade actual e a fé incerta e vacilante de tantos cristãos. Também a nós, hoje, o Senhor Jesus dirige a interrogação que fez aos discípulos assustados pela tempestade: “Porque tendes medo? Ainda não tendes fé?” É como se Jesus dissesse: o verdadeiro problema é que vós acreditais pouco; por isso, não compreendeis o significado das provações e provocações históricas e culturais em que estais mergulhados, para pôr à prova e purificar a vossa fé. Na verdade, não é Jesus que dorme na barca; é a fé dos discípulos que está adormecida. Se o Senhor nos deixou entrar numa tempestade, é porque sabe que pode pôr no coração de quantos crêem e esperam, a força e a energia, a calma e a serenidade, a inteligência e a paixão para enfrentar as ondas e os ventos. Falamos de uma nova qualidade de evangelização hoje. Mas a questão central, à partida, é a qualidade da nossa fé. O que caracteriza o nosso tempo não é propriamente o ateísmo, mas antes a confusão relativa à fé, a indiferença, a tibieza, a superficialidade da fé, o analfabetismo religioso, a perda da memória cristã, o complexo de inferioridade que se apoderou de muitos cristãos. Descobrir a beleza e a alegria da fé O mundo exige-nos hoje a razão de ser da nossa fé no meio das convulsões da história, a sua comunicação simples, alegre e bela, para que o núcleo da fé cristã volte a resplandecer em toda a sua beleza e frescura. Isto pede um regresso às fontes e uma grande regeneração espiritual. E daqui derivam algumas prioridades. 1. Começar de novo a partir de Cristo Talvez tenhamos de admitir com o cardeal Ratzinger, hoje Bento XVI, que “a Igreja, com frequência se ocupa demasiado de si mesma e não fala com a força e a alegria necessária de Deus e de Jesus Cristo, enquanto o mundo não sente necessidade de conhecer os nossos problemas internos, mas tem sede da mensagem que deu origem à Igreja: o fogo que Jesus Cristo trouxe à terra. A crise da nossa cultura funda-se na ausência de Deus e temos que confessar que também a crise da Igreja é, em boa parte, a consequência de uma difundida marginalização do tema de Deus. Só poderemos ser mensageiros do Deus vivo, se este fogo se acende em nós mesmos. Só se Cristo vive em nós, é que o Evangelho é anunciado por nós, mostra a presença de Cristo e toca o coração dos nossos contemporâneos”. Hoje torna-se necessário despertar e reavivar no coração dos crentes a experiência da Beleza do mistério de Deus connosco: aquela experiência de Isaías, do homem tocado por Deus no mais íntimo do seu ser, envolvido pela Sua santidade como numa nuvem luminosa, purificado e transformado pelo Seu amor como fogo ardente; aquela experiência de S. Paulo, cativado por Cristo, que o leva a exclamar “o amor de Cristo possui-nos, abraça-nos, impele-nos”. Uma experiência que resulta da contemplação de Cristo como Aquele que, em carne e sangue, trouxe a beleza de Deus à terra dos homens, a beleza suprema do amor misericordioso de Deus e a beleza do homem criado à imagem de Deus, renovado pela graça e destinado à plenitude da vida eterna. O mais grave que pode acontecer a um homem é ter medo de Deus, pensar que Ele é seu inimigo ou o limite da sua liberdade e da sua alegria de viver, quando na realidade é a sua fonte e o seu fundamento perenes. Na origem da nossa fé não está um conjunto de dogmas ou preceitos ou um ideal humanista, mas o encontro com a pessoa viva do Ressuscitado e a Sua história de amor, que abre um novo horizonte à vida e lhe imprime um rumo decisivo. “Ou nos enamoramos por Jesus Cristo ou não temos grande interesse como cristãos” (Bento XVI). Contemplar Cristo na Palavra, alimentar-se dele na Eucaristia é então a primeira prioridade. A dimensão contemplativa da vida não é uma fuga aos problemas do mundo; antes constitui uma reserva maravilhosa de humanidade plena, boa e feliz. Trata-se de testemunhar o primado de Deus com a vida, cultivando uma experiência intensa e fiel de oração pessoal e litúrgica e um compromisso generoso de anúncio da Boa Nova. Há necessidade de cristãos adultos, convictos da sua fé, peritos na vida segundo o Espírito, sempre prontos a dar razão da sua esperança. Igreja de Leiria-Fátima, sonho-te, minha Igreja, como uma comunidade contemplativa e eucarística, empenhada na escuta orante e perseverante da Palavra de Deus, continuamente alimentada pelo Pão da vida, vivificada pelo Espírito de santidade popular. 2. Viver a espiritualidade da comunhão Esta beleza do Amor eterno e santo de Deus deve reflectir-se no mistério da Igreja-comunhão. A imagem da barca no Evangelho é eloquente e sugestiva. Estamos todos na mesma barca. A fé não se vive isoladamente, mas em comunhão com os outros. Embarcamos todos na mesma aventura com Cristo, sentindo-nos acolhidos e protegidos na comunidade do povo santo de Deus, a Igreja do amor. Não saborearemos a beleza da fé sem a espiritualidade da comunhão entre nós. Queremos ser Igreja, comunidade cada vez mais acolhedora, onde nos sintamos atraídos e reconciliados no amor, partilhando os diversos dons e os bens, vivendo unidos na simplicidade e verdade e procurando caminhar juntos, segundo o provérbio africano:”se queres chegar depressa corre sozinho; se queres chegar longe, corre juntamente com os outros”. Assim testemunharemos a esta sociedade pós-moderna – que muitas vezes se apresenta como uma multidão de solidões – a possibilidade e a beleza da comunhão, da amizade, da solidariedade. Igreja de Leiria-Fátima, sonho-te, minha Igreja, como a comunidade do amor, casa e escola de comunhão, animada por atitudes de estima, acolhimento e apoio recíprocos, de partilha e co-responsabilidade e, assim, testemunha da infinita caridade de Deus e da comunhão entre os homens. 3. Amar o mundo do nosso tempo No evangelho, Jesus convida os discípulos a “passar à outra margem”, a ir em missão ao encontro dos homens e do mundo. A vida é verdadeira e bela quando se torna dom para os outros. Este mundo não precisa de uma Igreja que se ocupe de si mesma, mas de uma Igreja que com Cristo seja para a vida do mundo, no serviço do amor. Como cristãos somos chamados a promover, com todo o nosso empenhamento, a vida humana e a sua qualidade, recordando que não há qualidade de vida sem vida espiritual de qualidade. Somos chamados a fazer-nos voz dos que não têm voz, a enfrentar com humildade e coragem os desafios do sentido da vida e do vazio espiritual e moral, da justiça social e das tensões internacionais. Se Cristo está no centro da vida da Igreja, esta não pode retirar-se da história em que Ele veio plantar a sua cruz. À fé dos cristãos é pedida a audácia de ideias e gestos de proximidade aos que sofrem e de reconciliação no seguimento de Cristo. Igreja de Leiria-Fátima, sonho-te, minha Igreja, como uma comunidade que ama o mundo do nosso tempo com as suas belezas e potencialidades, com as suas crises e misérias; uma comunidade que com a luz da fé, o dinamismo da esperança e o calor da caridade oferece ao mundo aquele “suplemento de alma” que se torna fonte de uma nova cultura social, de promoção da dignidade da pessoa humana, de diálogo, de reconciliação e de paz. Faz-te ao largo! Faz-te ao largo, minha Igreja! Rema mar adentro! “Sigamos em frente com esperança. Diante da Igreja abre-se um novo milénio como um vasto oceano onde aventurar-se com a ajuda de Cristo” (NMI 58). No caminho acompanha-nos Maria, Estrela do mar e Padroeira dos navegantes em águas difíceis. Com Ela aprenderemos a contemplar a beleza do rosto de Cristo, a viver a espiritualidade da comunhão, a levar ao mundo a infinita misericórdia de Deus como força e como limite divino ao poder devastador do mal no mundo, tal como no-la manifestou em Fátima. Maria, Mãe da Igreja, sustenta a fé eclesial nos momentos de dificuldade e de provação. A Ela peço que guie os meus passos na minha missão de confirmar os irmãos na fé. Junto do seu santuário, na Cova da Iria, em união íntima ao Seu Coração Imaculado, deixemo-nos confortar pelas palavras de Jesus: “Não tenhais medo! Tende confiança! Eu estarei convosco, todos os dias, até ao fim dos tempos!”. Ámen! Aleluia! Sé de Leiria, 25 de Junho de 2006 António Marto, Bispo de Leiria-Fátima

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