Presidente da Comissão Justiça e Paz de Bragança diz que a prova do desinteresse político pelos problemas do Interior se vê na rede de transportes, que não serve quem ali vive ou trabalha
Entrevista conduzida por Ângela Roque (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
Tem manifestado em vários artigos a sua preocupação com o ponto a que Portugal chegou me termos de demografia e desertificação. Pelo que tem observado, nesta campanha os partidos estão atentos e conscientes desta realidade? Ou o ‘país real’ está a ser ignorado?
Só na última semana o assunto foi ventilado em campanha, mas não houve qualquer referência específica em termos de apresentar soluções, e estamos quase como se o assunto não tivesse sido falado. No entanto, em termos de futuro, é talvez o problema mais grave que país vai enfrentar, tal como a Suécia o enfrentou nas décadas de 30 e 40.
Quem vive numa região que também está demograficamente em crise, como Bragança, sente preocupação por parte da classe política em relação a estes problemas concretos?
Aí sim, no interior fala-se muito do problema demográfico, atiram-se muito as culpas para os governos como forma de propaganda política, mas de concreto, o único programa que tem sido lançado é o apoio aos nascimentos, a quem tem filhos. No caso de Vimioso, por exemplo, é com 500 euros por nascimento, que curiosamente deu algum resultado, porque o concelho de Vimioso, na transição da década de 10 para a década de 20 deste século, diminuiu menos a sua quebra demográfica. Manteve os índices de envelhecimento, é evidente, mas diminuiu bastante a sua quebra demográfica. Isso indica que um simples programa de apoio pode fazer alguma diferença.
Mas estes problemas estão identificados há muito. Porque é que não há uma maior ação?
Sabe, no interior pensa-se muito em atirar as culpas para os outros. Em vez de se agir proactivamente, reclama-se, mas as entidades externas não podem fazer tudo, as entidades internas, próprias do interior podem fazer alguma coisa. Tem de haver maior investimento dos municípios e dos governos. Tem de haver programas por regiões, porque elas não são todas iguais, e enquanto isto não for feito, não chegamos a bom porto.
A que é que atribui esta situação a que chegou de inverno e deserto demográfico? Às sucessivas crises, à falta de visão estratégica de longo prazo, às mais opções políticas que foram sendo tomadas?
Se pegarmos em alguns números, temos a dimensão do problema: em 1960 nasciam em média 5000 crianças no distrito de Bragança, hoje nascem 470 ou 480. O inverno vem daí, da ausência de nascimentos. O deserto deriva do inverno, da emigração. E emigração já não é de pessoas desqualificadas, como era na década de 60 e 70, é de pessoas extremamente qualificadas e que deixam o país numa situação de desastre. Eu uso muito a palavra ‘desastre’, porque a nossa melhor inteligência está a ir embora, e os políticos ainda não se deram conta disto.
Falamos da emigração, dos portugueses que partem para fora, e que são gente qualificada, como sublinha. E a imigração, os que vêm? Já nem os imigrantes nos salvam, em termos demográficos?
Não é fácil. Não quero ser pessimista, mas não é fácil, porque Portugal não é atrativo em termos de salários. Se Portugal fosse atrativo em termos de salários e de apoios sociais, então sim, seríamos mais procurados. Mesmo assim, é de notar que desde 1970 – ano em que se nota uma diferença de pessoas de nacionalidade estrangeira em Portugal – até hoje, a população portuguesa já tem origem em 660 mil pessoas que vieram do estrangeiro e já estão nacionalizadas, e isso é indicador de que apesar de tudo somos procurados, mas não suficientemente procurados como são a Alemanha, a França, o Reino Unido, porque aí há poder económico e apoios avultados.
Estamos perante um problema sério. Os estudos mostram que na última década houve uma queda abrupta na população. Como é que se invertem 60 anos de estagnação demográfica em três quartos do território nacional? Ainda vamos a tempo?
Antes de mais penso que os programas de apoio têm que começar pelo que se começou a Suécia, nas décadas de 30 e 40: num Estado Social que dê grandes apoios e privilégios às mães para ficar em casa tratar dos filhos. Depois tem de haver programas de incentivo económico à participação das populações locais com grande orientação, porque na rentabilização dos programas económicos o mais importante é fazer a gestão da orientação dos investimentos, do acompanhamento e supervisão, para que os dinheiros não sejam mal utilizados. Aliás, penso que grande parte dos problemas do interior são problemas de orientação do investimento. Muito dinheiro tem vindo… não direi ‘muito’, comparativamente com as regiões mais desenvolvidas, mas bastante dinheiro tem vindo e esse dinheiro não tem ainda sido suficientemente rentabilizado, e tem de o ser, porque de outra forma estamos a atirar dinheiro e a perdê-lo.
Fala da falta de orientação do investimento, há pouco sugeriu que fossem feitos programas por regiões, porque elas não são todas iguais. Sempre que há eleições fala-se na regionalização, quase como uma ‘varinha mágica’ para resolver os problemas. A criação de regiões está prevista na Constituição (desde 1976). Pode ser uma solução para as questões que está a identificar?
Talvez, mas não tenho ideias definitivas. Porque se fizermos uma regionalização horizontal, que corresponda às coordenações de desenvolvimento regional, estamos pura e simplesmente a aumentar a liquidação do interior.
No último referendo à regionalização eu fui um ativista da região de Trás-os-Montes e Alto Douro e andei pelo terreno a ouvir as pessoas, e as pessoas não discordavam da regionalização, mas perguntavam-me ‘olhe lá, com uma região horizontal como a Norte, o que é que nós ganhamos e o que é que nós perdemos?’. E quando me perguntavam ‘o que é que nós perdemos?’ , eu não sabia responder.
Nessa altura, durante a campanha, fui a Espanha e falei na regionalização, e na perspetiva deles nós devíamos ter cuidado, porque com a regionalização íamos pagar mais impostos: ao município, à região e ao Estado, e o retorno podia não ser suficiente.
Eu não quero com isto pôr em causa a regionalização, agora tem de haver estudos sérios e comparados a nível europeu, em relação aos países que foram regionalizados, nomeadamente os que eram centralizados, como é o caso da Espanha – mas que não criou propriamente regiões porque aquilo são nações desde há muitos séculos, com uma cultura própria. Mas pode ser comparado, por exemplo, com Itália ou com França, porque a França era um país centralizado e também operou regiões por via administrativa.
Eu achava interessante – ou melhor, só achei interessante passados 15 anos, depois de ter estudado mais – aqueles que eram os chavões de 1983/84, quando o assunto foi debatido: o PS tinha a bandeira “regionalizar para desenvolver’, e o PSD a bandeira ‘desenvolver para regionalizar’. Isto é interessante e há que recuperar estes ‘slogans’, porque eles dizem tudo…
Mas não bastam slogans. Nesta altura a generalidade dos partidos com assento parlamentar já disse que está disponível para discutir a regionalização nos próximos anos. Devia ser uma prioridade mas, pelo que diz, bem pensada?
Muito bem pensada. Eu não acredito numa regionalização que não seja simétrica. O que é que eu quero dizer com simetria? Se compararmos o PIB da zona do Porto e Braga, os concelhos mais desenvolvidos – Famalicão, Barcelos, Trofa, Santo Tirso, Guimarães e Braga – há uma dimensão de desenvolvimento muito maior do que, por exemplo, Paredes de Coura, ou Amares, o interior. Agora, podemos comparar Amares ou Mondim de Basto com o interior profundo, falando do distrito de Bragança, com Freixo de Espada à Cinta, Mogadouro ou Alfândega da Fé. Ou seja, se pusermos o Norte interior dependente do Porto, ficamos pior do que dependentes de Lisboa, por uma razão muito simples: os do Porto vão sugar-nos completamente os recursos, até porque foi neste paradigma que foram criadas as NUTS das regiões (Nomenclatura das Unidades Territoriais para Fins Estatísticos).
Criar regiões horizontais, porquê? Para baixar a rácio do nível médio de desenvolvimento face à União Europeia e poder receber mais fundos. O Porto precisa de Bragança, Vila Real e de Viana do Castelo para baixar o seu nível de desenvolvimento e ter acesso aos fundos. Mas, provavelmente, não vai precisar desses distritos para promover o desenvolvimento que deveria promover.
Quando falo de regionalização simétrica, em Portugal só há uma possível: pegar nas antigas províncias – ou, se se entender que oito são demais, pegar no Interior norte…
Estamos a falar do Minho, Trás-os-Montes, Beira Alta?
Exato, as antigas províncias, que não estavam assim tão mal pensadas como isso e que foram substituídas por distritos, porque quando há muitas entidades, reinamos melhor. O doutor Salazar percebeu que vinha dali uma idiossincrasia regional que punha em causa a unidade do país e o poder central, e recuperou os distritos, em 1937.
Portanto, como dizia, ou nós fazemos uma regionalização simétrica, de norte a sul, interior, ou então vamos pôr as regiões em desequilíbrio, as do Interior vão ser sugadas pelas do Litoral – até neste aspeto seria preciso ter diferentes modelos de regionalização –, e as únicas que não serão sugadas serão as que não têm grandes metrópoles no litoral, que é o caso da região Centro e da região do Alentejo, porque as outras serão completamente sugadas por Lisboa e pelo Porto.
Qual tem sido o papel da Comissão Justiça e Paz de Bragança-Miranda na identificação e resposta aos problemas da região?
Nós, neste mandato, temo-nos focado essencialmente nos problemas de apoio à pobreza e também, aquando da pandemia, que ocupou praticamente os dois primeiros anos do mandato, e continua a ocupar, estamos também a chamar a atenção para esses problemas.
Como é que está a situação em Bragança? A pobreza também tem crescido?
Tem sido uma preocupação para a Comissão. Tanto a Cáritas Diocesana como a Cruz Vermelha têm vindo a intervir, a sério, neste problema, e distribuído imensa ajuda. Nalguns casos, pode até haver um excesso de apoio, porque há pessoas que recebem apoios da Cruz Vermelha e vão pedi-los também à Cáritas, para selecionarem o melhor. Tem-se visto aqui alguma distorção, nesse aspeto…
Mesmo em relação a estudantes estrangeiros há um programa muito interessante, no Instituto Politécnico, através dos estudantes cabo-verdianos, os ‘Jovens sem sofá’, que tem promovido ajuda a muitos estudantes, sobretudo os mais pobres, que vêm dos PALOP e estão mais desintegrados.
O setor social e solidário, sobretudo ligado à Igreja Católica, tem estado na linha da frente, para dar resposta às necessidades?
Sempre, através dos Centros Sociais e Paroquiais, sobretudo na infância e na terceira idade. Temos cá também uma associação, que não é da Igreja, a Associação de Socorros Mútuos dos Artistas de Bragança (ASMAB) – que já não é só dos artistas; era, quando foi criada há 152 anos, a partir de 1875 passou a ser de toda a gente –, que também fornece refeições, apoios em roupa, logística, etc.
Bragança tem instituições que estão a trabalhar bem, nesse aspeto, o que falta agora é a otimização dos programas de emprego. Os gestores dizem que, quando uma pessoa cai na rede da pobreza, se não tiver um programa de ação – não é só um apoio -, um programa de ação e de inserção, a pessoa anula-se, despersonaliza-se e acaba por ficar cada vez mais dependente dos programas de apoio. Esta dimensão tem faltado, aqui e por todo o país.
Portugal, proporcionalmente, tem prestado mais apoio aos seus pobres do que a média dos países da União Europeia – isto se compararmos a riqueza de cada país -, mas depois temos uma rede enorme de pobres que caem nesta situação e não recuperam. Isso passará pela reintegração e o trabalho, porque só o trabalho é que permite uma relação social útil.
Quer deixar algum repto ou desafio à classe política, nesta contagem decrescente para as eleições de dia 30?
Devem pensar que tipos de apoios vão dar ao Interior, nomeadamente em perdão de impostos às empresas que aqui se localizarem. Essa é uma dimensão muito reclamada pelos empresários, e na campanha deve discutir-se este aspeto.
Por outro lado, há a dimensão da interação regional, a todos os níveis, mas sobretudo dos transportes. De Bragança à Guarda não há caminho de ferro e praticamente não existem autocarros. Dou este exemplo: tenho uma sobrinha a estuda na Covilhã e a uma filha a trabalhar em Castelo Branco. Sabe quanto é que a minha filha demora, de Castelo Branco a Bragança, para fazer 275 quilómetros, se vier de autocarro? 10 horas. Não há um autocarro nem direto, nem semidirecto. É preciso vir até à Guarda, daí para Viseu e seguir por Vila Real e Mirandela até Bragança. E se fizer este exercício relativamente a todos os municípios que se localizam nesta corda, o problema é idêntico.
Se querem discriminação positiva para o Interior, é preciso pensar nesta dimensão, há que apoiar programas de transporte público, comparticipado pelo Estado. Eu compreendo que as empresas não vão fazer essa ligação direta, mas os municípios, os políticos, o Governo, têm de se chegar à frente: “vamos lá organizar aqui um processo de discriminação positiva no transporte público”. Isto seria extremamente interessante.
Este fenómeno também ocorre com Zamora (Espanha): estamos aqui a 100 quilómetros e só lá podemos ir às segundas, quartas e sextas, regressando às terças, quintas e sábados. O transporte que há é o de Bragança-Paris, Bragança-Berlim, esse existe porque há muitos emigrantes. Mas, Bragança-Zamora não há nenhum. Os problemas do Interior, na Espanha, são parecidos, só que eles já abordaram esta questão há mais tempo do que nós.
A interatividade regional é tão importante nos transportes como nas vias de comunicação. O interior do Interior tem as IP a ligar às capitais das regiões horizontais, mas depois entre Bragança e Mogadouro… Vejam o caso de Coimbra à Covilhã, é completamente obtuso: por Viseu e pela Guarda são 200 quilómetros, mas numa estrada direta seriam 110, 120. Eu isto não entendo, não percebo como é que esse problema nunca entrou nos debates políticos.